Por que, para o realismo internacional, é compreensível o que Putin está fazendo?
É possível compreender o que Vladmir Putin está fazendo sob a perspectiva da teoria realista das relações internacionais – o que não implica aprovar suas ações ou muito menos torcer para que deem certo. Nesse caso, parte-se do princípio de que o Sistema Internacional é formado por Estados que atuam conforme interesses próprios, visando única e exclusivamente à sua segurança nacional
Sob o ponto de vista humanista, liberal-cosmopolita ou do Direito Internacional, não é possível defender ou compreender a invasão da Ucrânia por parte da Rússia. No primeiro caso, porque a guerra fere a dignidade e vida humanas, que valem mais do que qualquer outra coisa. No segundo, porque o conflito armado não faz sentido em um mundo regido pela livre competição e de forte interdependência econômica, onde há uma harmonia de interesses e os problemas internacionais devem ser solucionados pacífica e coletivamente. No terceiro, porque basicamente não se podem desrespeitar os princípios da soberania estatal e da autodeterminação dos povos.
Contudo, pode-se entender o que Putin está fazendo como algo justificável sob a perspectiva da teoria realista das relações internacionais – o que não implica, que fique bem claro, aprovar suas ações ou muito menos torcer para que deem certo. Nesse caso, parte-se do princípio de que o Sistema Internacional é formado por Estados que atuam conforme interesses próprios, visando única e exclusivamente à sua segurança nacional.
Os países utilizam, para tanto, seu poder político e econômico para alcançar posições de vantagem relativa nesse sistema, em que “quem não sobe, cai”, como disse o sociólogo alemão Norbert Elias. Ou seja, para garantir a sua segurança, é preciso expandir-se, de modo que a busca pela paz paradoxalmente se torna a justificativa primeira da guerra. É o chamado dilema da segurança.
Apesar de apresentarem uma visão crítica ao postulado liberal-cosmopolita, enxergando nele um “cobertor” a velar jogos de poder, muitos autores realistas consideram que a atuação de uma potência hegemônica é necessária para a estabilidade global.
No entanto, José Luís Fiori (2007)[1] assinala que a potência hegemônica atua como fonte de desestabilização do sistema internacional, uma vez que as lideranças não escapam ao dilema da segurança. Portanto, “em nome da paz”, persegue o controle universal do sistema, provocando uma expansão contínua e tendencialmente infinita do sistema interestatal capitalista.
A busca pela monopolização completa do poder aponta, no entanto, para a entropia do sistema e a perda da mesma energia que alimenta a acumulação de poder, de modo que, ao mesmo tempo em que destrói, a hegemonia recria seus competidores.
Desde que assumiram a condição de potência hegemônica sem antagonismos, no início da década de 1990, os Estados Unidos envolveram-se em diversas guerras e invadiram ou intervieram política e economicamente em vários países, como Iraque, Líbia e Venezuela. Ao mesmo tempo, ampliaram, em conjunto com seus aliados europeus, a área de influência da Otan, pressionando a Rússia.
Essa ação expansiva do Ocidente segue uma cartilha básica do pensamento geopolítico, de Halford Mackinder, que chamou de “heartland” ou pivô geográfico uma extensa área da Eurásia – majoritariamente ocupada pela Rússia – por se tratar da maior massa contínua de terra do planeta, abrigando o maior contingente populacional e fartos recursos energéticos e naturais. Segundo o geopolítico inglês, quem quer que dominasse essa área, a qual também compreende a Europa Oriental, alcançaria a supremacia na política mundial.
E, caso a Alemanha e Rússia se juntassem, formariam um novo império global. Portanto era preciso haver um conjunto de estados nacionais para separar os dois, isto é, estados-tampão influenciáveis pela Inglaterra, França e EUA.
Isso acabou sendo efetivado no Tratado de Versalhes, em 1919, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Porém, depois da Segunda Guerra, a Rússia fortaleceu a União Soviética e formou o Pacto de Varsóvia, em 1955, em contraposição à Otan, que fora criada seis anos antes.
Agora, pensando no jogo do equilíbrio de poder (balance of power), sob a ótica da realpolitik, Putin tenta retomar territórios com vistas à segurança nacional russa – mas, como frequentemente ocorre em casos de disputas territoriais mundo afora, também lança mão de justificativas de ordem cultural e étnica.
O fato é que a arbitragem nesses casos é complexa, uma vez que todos sempre acham que têm razão, vide o dilema do Tratado de Westphalia: marco fundante do sistema interestatal e do princípio da soberania dos estados, em 1648, o concerto europeu não foi capaz de impedir a primeira guerra mundial, diante de “múltiplas inocências” de estados soberanos com interesses opostos.
O que estamos vendo é, possivelmente, o início de uma nova ordem mundial, que deixa de ser unipolar para se transformar em tripolar, em função da ascensão russa e chinesa e de um certo enfraquecimento dos EUA.
A mudança de status quo assusta, mas – sem entrar no mérito da tragédia que é a guerra na Ucrânia ou qualquer outro conflito armado, os quais sempre devem ser condenados –, há potenciais benefícios na transformação ora em curso.
Cumpre lembrar que a época de ouro do capitalismo, como classificou o historiador britânico Eric Hobsbawm, se deu justamente no período mais intenso da Guerra Fria, quando a União Soviética ainda “batia de frente” com os EUA.
Com isso, os norte-americanos adotaram uma postura relativamente benevolente em certas geografias, não apenas financiando a reconstrução da Europa, com seu Plano Marshall, mas manejando sua taxa de juros, câmbio e balança comercial de forma a contribuir com o desenvolvimento de outros países a fim de trazê-los para o seu lado.
Foi nessa época, por exemplo, que surgiram os Tigres Asiáticos, cuja acelerada industrialização, a partir da década de 1960, funcionou como uma espécie de cordão sanitário a fim de impedir a expansão do comunismo soviético.
A tendência, agora, é que se criem novas margens de barganha para países como o Brasil, os quais devem negociar o melhor que cada uma dessas três potências pode oferecer para seu desenvolvimento econômico e social. Ao contrário do que faz o governo Bolsonaro, a diplomacia não deve ser regida por questões ideológicas, religiosas e eleitoreiras, mas pelo pragmatismo, visando à segurança nacional.
Foi o que fez o príncipe católico francês Cardeal de Richelieu, no século 17, ao se aliar a protestantes e até mesmo a muçulmanos para conter o ímpeto expansionista do Império Habsburgo, ligado à Igreja Católica.
No final da década de 1960, o então presidente norte-americano Richard Nixon retomou as relações com a China comunista para desestabilizar a União Soviética, ao mesmo tempo em que barganhava com os russos, em uma articulação chamada de “diplomacia triangular”.
Nos anos 1970, o regime militar brasileiro intensificou suas relações com a União Soviética, reconheceu a China comunista, ampliou sua representação na Europa Oriental e abandonou seu apoio tácito à política de Lisboa na África. Conhecida como pragmatismo ecumênico, a política externa do general Ernesto Geisel, presidente entre 1974 e 1979, buscava maior independência dos EUA, visando projetar o Brasil para a América do Sul e África – daí a construção da hidrelétrica binacional de Itaipu e a entrada da Petrobras no continente africano.
Que essas histórias possam servir de exemplo para nossas próximas gestões em um mundo que nada tem de inerentemente amigável, como já havia nos ensinado Sigmund Freud.
João Montenegro é jornalista e mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ.
[1] FIORI, J. L.. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.