Em Ruanda, o resgate de uma tradição guerreira a serviço do governo
Longe das celebrações do genocídio de 1994, o governo ruandense persegue a renovação de um antigo dispositivo de formação dos guerreiros da época pré-colonial. Dos mais baixos escalões da administração local às mais altas esferas do poder, um culto à guerra ganha o país.Thomas Riot
As autoridades afirmam que se trata de reavivar a memória dos guerreiros defensores da pátria na época pré-colonial e lutar contra a ideologia que levou ao genocídio dos tútsis em 1994. Para Kigali, esta continua a ameaçar a integridade do território e da população.1 As célebres colinas ruandenses seriam diretamente afetadas, assim como as redes internacionais de refugiados e expatriados, suspeitos de cultivar as divisões sociopolíticas responsáveis pelos morticínios, sobretudo na República Democrática do Congo (RDC), onde Ruanda é acusada de ingerência.2
Mais de vinte anos depois do massacre de cerca de 800 mil tútsis, assim como de hutus que se opunham ao governo interino, a imposição da cultura guerreira do itorerovisa suscitar uma mobilização nacional que tem por objetivo reforçar a legitimidade de um poder apoiado na lembrança do genocídio. A reativação desse culto militar dá origem a ações repressivas e criminosas que atingem indivíduos e grupos contrários à FPR que permanecem ativos no Kivu (RDC) e na África do Sul.
Antes da colonização de Ruanda, quando a parte central do país era governada pelo reino Nyiginya, o itoreroassegurava a formação dos cadetes destinados às armas reais. A instrumentalização política do dispositivo não é nova. Durante a colonização belga, ela atingia os jovens filhos de chefes tútsis chamados a segurar as rédeas do governo autóctone das “mil colinas”. Os europeus usavam uma minoria tútsi para conduzir sua política de administração indireta e explorar a população ruandense, majoritariamente identificada com as linhagens hutus.
Necessidade de criar uma nova ordem nacional
Sob a Segunda República, entre 1973 e 1994, o presidente Juvenal Habyarimana tinha ativado a cultura ntorecomo um meio de mobilização das “massas populares” e de apoio à ideologia de seu partido, o Movimento Revolucionário Nacional Democrático (MRND). O itorerocontribuía então para a fabricação das políticas hostis aos tútsis, considerados os principais opositores das políticas de “desenvolvimento” do governo. A larga difusão dessa ideologia faz pensar que o Estado francês, aliado político e militar de Kigali, não podia ignorar a natureza racista do regime que ia organizar o genocídio.3
Ao mesmo tempo, em Uganda, antigos refugiados tútsis – que partiram após os primeiros morticínios, em 1959 –, formados nas práticas ntore, envolviam-se no combate da FPR criada por Kagame, filho de exilados tútsis que se tornou chefe da informação militar ugandense. Isso conduziria à conquista do poder pela FPR, que ia colocar fim ao genocídio praticado pelas Forças Armadas Ruandenses (FAR) e pelas milícias extremistas interahamwe entre abril e julho de 1994.4
A história de Ruanda o mostra: nas profundas rupturas que o país conheceu, cada transição levantou, de maneira explícita ou não, o problema da criação de uma nova ordem nacional. Durante o período colonial (1897-1962), falava-se de “evolução”: tratava-se de passar do feudalismo – organizado por políticos europeus da administração indireta, tendo por quadros os tútsis designados pelo colonizador belga – para a democracia, temida como o “despertar do povo hutu”. Entre 1961 e 1973, a primeira República foi assim construída sob os auspícios “democráticos” de uma ideologia da “revolução hutu”, que conduziu aos primeiros pogroms antitútsis em 1963 e 1964. Entre 1973 e 1994, por fim, a Segunda República elaborou uma ideologia do desenvolvimento que levou à formação de uma ordem genocida contra os tútsis.
Quando de sua chegada ao poder, o governo Kagame apresentou uma forma contemporânea de tradição como determinante para o futuro do país: ainda aí uma nova ordem nacional devia surgir. Diante do grande número de suspeitos de genocídio, Kagame já havia recorrido à tradição restaurando as jurisdições civis gacaca para julgar os crimes menos graves.5
Em 2008, um plano quadrienal definiu quatro áreas estratégicas para o “retorno” do itorero: a administração local, as escolas, as instituições públicas e privadas e, por fim, a diáspora, com o intuito de permitir um reforço dos laços e uma internacionalização da cultura ruandense. No mesmo ano, a revista Rwanda, muito próxima da linha do governo, denunciava uma “polêmica” a respeito da reativação do itorero. Ela sublinhava que o jornal Umuco, um dos raros semanários de oposição, tinha apresentado a operação a seus leitores como uma imensa manipulação: “O itorero não é mais nem menos do que um novo quadro de sensibilização aos ideais do partido no poder, à imagem da agitação que se conheceu sob o regime Habyarimana”, escreveu um de seus jornalistas.6
O governo exibe de sua parte uma concepção pré-colonial dessa tradição: “O itorero era uma escola para os ruandenses. Era um canal de transmissão entre a nação e a cultura, que veiculava valores como a unidade, o patriotismo, o heroísmo, a humanidade e a mentalidade ruandense”.7 No entanto, a verdadeira natureza da herança do país parece totalmente esquecida. É provável que os dispositivos ntore da época Habyarimana, tal como a reabilitação contemporânea do itorero, trabalhem pela fundação de novas concepções da nação ruandense: racial sob Habyarimana, política sob Kagame.
Em nossos dias, a exaltação do dispositivo representa a base cultural necessária para a formação de uma milícia política a serviço de um regime ao mesmo tempo nacionalista e militarista. Os objetivos foram claramente enunciados: “Unidade nacional ruandense, patriotismo, espírito nacional, expansão nacional e proteção, dignidade e heroísmo dos ruandenses, orgulho de pertencer a Ruanda”.8 O governo se serve da tradição para arregimentar a população, desencorajar qualquer oposição e vigiar sua diáspora na África e no mundo. Por meio das embaixadas e associações de expatriados, o itorero foi transposto para Canadá, Reino Unido e Bélgica, a antiga potência colonial. Na França, a ação de Kigali consiste sobretudo em incitar os jovens, por meio de sua embaixada, a participar dos estágios itorero organizados todo ano no campo militar de Gako, no sudeste de Ruanda.
A renovação do dispositivo desencadeou uma guerra ideológica entre a FPR e certos exilados na RDC e no Canadá, onde a diáspora é particularmente ativa. No Canadá, um movimento itorerofoi lançado em 2011 por quadros enviados pelo governo. Desde a emergência do dispositivo, intensas suspeitas foram formuladas por um grupo de canadenses de origem ruandense e congolesa, o Congresso Ruandense do Canadá (CRC). Essa associação de opositores foi imediatamente identificada por Kigali como uma rede de internacionalização da ideologia genocida. Para esses exilados, o itorerovisaria na realidade envolver os ntorenas atividades que poderiam comprometer a “segurança dos opositores do regime de Kigali e das testemunhas de seus crimes”,9 como declarou Emmanuel Hakizimana, presidente do CRC.
No Reino Unido, o programa foi anulado logo após seu lançamento em seguida à intervenção da Coalizão das Associações de Cidadãos Ruandenses do Reino Unido, um grupo de opositores e dos serviços de informação britânicos. Segundo o jornal Umuvugizi (27 jun. 2011), agentes britânicos teriam descoberto que o itorero, tal como devia ser posto em prática, era “destinado a formar jovens suscetíveis de ser arrolados em atividades de terrorismo visando exilados ruandenses”. Também uma “nota de alerta” denunciava uma “ameaça vital iminente” a dois cidadãos ruandenses que residiam em Londres. Entre 2011 e 2014, o governo de Kagame foi por várias vezes suspeito de organizar a eliminação física de seus opositores no estrangeiro. O assassinato na África do Sul do coronel Patrick Karegeya, em 1o de janeiro de 2014, só fez confirmar essas suspeitas.
Na RDC, as acusações de ingerência na guerra no Kivu10 formuladas em relação a Ruanda se seguiram à publicação em 2010 de um relatório das Nações Unidas.11 O documento descreve crimes de guerra, chegando mesmo a falar de um “genocídio” realizado na RDC entre 1994 e 2003 por forças ligadas ao regime de Kagame.12 Em 2 de agosto de 2012, por ocasião das cerimônias da abertura do itoreropara 258 estudantes e agentes ruandenses da diáspora em Gako, o presidente e o primeiro-ministro, Pierre Damien Habumuremyi, lembraram a posição deles quanto às acusações da RDC sobre o papel de seus país na guerra do Kivu: “Todas essas alegações são falsas. Ruanda não tem nenhum motivo para apoiar o M23. Ao contrário, não envidou esforços para que a RDC conheça a paz”, declarou o primeiro-ministro.13
Diante das redes negacionistas
Durante os meses de julho e agosto de 2013, um novo contingente de 270 ntore da diáspora foi formado em Gako. Conjuntamente, o movimento itorero perseguiu seu desenvolvimento em todas as esferas da administração pública ruandense − por exemplo, na economia e na educação. Se é relativamente fácil compreender o desejo do governo de manter sua hegemonia vinte anos após o genocídio, a generalização burocrática, militar e educativa da cultura guerreira reinventada dos antigos reinos não parece contribuir para reduzir as divisões que separam ainda numerosos ruandenses, tanto no país como na diáspora. Enquanto as redes negacionistas, particularmente ativas na França, em que antigos genocidas encontraram refúgio, continuam a difundir suas interpretações parciais da política de Kagame, essa guerra material e ideológica reaviva as angústias do passado.
Duas concepções radicalmente opostas da nação ruandense se encontram reavivadas: uma propõe um conjunto de subnações (hutu e tútsi) dirigido pela maioria hutu; a outra promove um nacionalismo político fingindo lutar contra as divisões mais antigas. A luta contra a ideologia do genocídio é a maior fonte de legitimação patriótica do governo Kagame; mas os políticos e os jornalistas internacionais poderiam também se interrogar sobre seus aspectos guerreiros e criminosos. Eles contribuiriam assim para tornar mais claro um debate cuja opacidade se renova, sob diferentes formas, a cada geração e segundo os interesses contraditórios dos diversos atores.
*Thomas Riot é pesquisador associado do Institut des Mondes Africains (Imaf), Paris.