Emergência de uma “esquerda fascista” ou degeneração teórica e política?
por que imaginar que não virão novos 2013, novos 2017, com milhões de trabalhadores e estudantes mobilizados, tomando novamente as grandes avenidas do país, como sempre fizeram ao longo da história, já que o povo jamais sucumbiu calado?
Há uma esquerda fascista? Uma esquerda que acha justificável a matança policial na Bahia sair vitoriosa em sua competição com o Estado do Rio de Janeiro, depois de 19 anos de governos do PT naquele Estado nordestino?
Uma esquerda que chancela cortes no BPC de idosos e deficientes carentes, e a privatização de escolas públicas (PPP’s) com dinheiro do BNDES em São Paulo, em parceria com os companheiros bolsonaristas?
Que encara como coerente com seus princípios, permitir a captura unilateral do direito ao FGTS da classe trabalhadora pelos bancos transnacionais, em nome do endividamento que os trabalhadores serão incentivados a fazer para garantir necessidades constitucionais?
Uma esquerda que dá de ombros quando o vice-presidente nacional do PT promete como política de segurança em Maricá (RJ), que em seu mandato “bandido vai pra vala”, com direito a trilha sonora do filme Tropa de elite?
Uma esquerda que julga anti-fascista um novo Teto de gastos versão PT, que torna as novas PPP’s o maior plano de privatização do investimento público da história industrial do Brasil, paralelo ao avanço de todos e cada um dos dispositivos da reforma trabalhista contra o povo?
Enquanto um senador da república, Fabiano Contarato (PT-ES), cobra do governo do seu partido, o endurecimento da política nacional de segurança, propondo inclusive, “aumento do tempo de internação de jovens infratores”?
Uma esquerda que naturaliza o aumento da musculatura das novas e velhas elites agrárias reacionárias, através de um Plano Safra anti-povo, que prioriza o agronegócio da direita e conduz ao aumento dos preços da cesta básica?
Que tolera a demagogia mais oportunista sobre a tragédia palestina, enquanto chama imperialistas otanistas genocidas como Macron de “companheiro”, permite negócios entre a Petrobrás e o sionismo, e não move uma palha para revogar os abomináveis acordos militares entre Brasil e o “Estado” de Israel?
Uma esquerda que se vê contemplada por um orçamento público que mata por inanição os ministérios que concernem às demandas femininas, pretas e indígenas, proporcionando o sequestro destas pautas pela direita chamada de direita?
Que admite transar com as ambições do mais profundo obscurantismo religioso, inaugurando templos e fomentando a expansão dos projetos políticos do neopentecostalismo de extrema direita que se prolifera velozmente?
Uma esquerda que não reage diante da transformação dos brasileiros em cobaias humanas de incontáveis substâncias químicas industriais, proibidas mundo afora, mas toleradas pela ANVISA, dada a mais completa submissão cúmplice deste governo?
Uma esquerda que apoia a privatização de presídios? Mas não só isso, que fecha os olhos diante da transformação do encarceramento de pretos (as) e pobres no Brasil em empresa privada com dinheiro do BNDES? (Presídio de Erechim, RS, em 2023, entre outros). E que diante do inadmissível, se limita a repetir o surrado mantra de Breno Altman de que “é isso ou a volta da extrema direita, dada a atual correlação de forças”?
A resposta, naturalmente, é não. Não existe uma esquerda que dê sustentação a um governo que avança os interesses da direita e da extrema direita — a menos que passe por um dramático processo de degeneração política e teórica. Entre os maiores desses enganos obtusos está a contradição absurda de acreditar que esse avanço possa ser contido justamente por quem o promove. E, se depois de ler tudo isso, alguém ainda considerar que se trata simplesmente de “ódio ao PT” ou de “fazer o jogo da direita”, talvez não seja má ideia considerar pedir ajuda.

Nossa tática deve seguir a mesma, impedir que a “esquerda” liberal prostrada e oportunista siga dominando os tatames onde lutamos, consumindo a pauta e a vontade de luta das massas capazes de recrutamento, em nome de uma esperança puramente eleitoralesca, abstrata e farsante.
O problema nunca foi apenas a reconfiguração do mundo do trabalho e menos ainda uma suposta falta de combatividade do povo. Novos 2013 virão, novos 2017, com 40 milhões de trabalhadores (as) e estudantes (as) mobilizados inundando as grandes avenidas de nossas capitais. Foi ontem! E virão por uma simples razão: porque eles sempre vêm! Porque o povo jamais sucumbiu calado, não há precedente.
Construir uma frente realmente popular por espaços concretos e crescentes de poder contra o capitalismo dependente, abolir as ilusões e impedir que os encantadores de serpentes encham o povo de medo é a nossa tarefa. É urgente superar o dualismo direita tradicional versus cosplay de esquerda, ou liberalismo tradicional versus “liberalismo de esquerda”, com o perdão do oximoro.
Com Bertold Brecht, lembramos que sim, “a cadela do fascismo está sempre no cio”; esteve antes, está agora e estará sempre. E ela não negocia se não for para engordar ou sobreviver. Nos tristes trópicos, o aumento do terrorismo de Estado e a degeneração das condições de vida são velhos conhecidos, evoluem pari passu a qualquer vislumbre de diminuição das taxas de lucro tidas como “aceitáveis”. Não precisamos sequer recorrer ao conceito europeu de fascismo para reconhecê-los.
Estamos diante da aceleração implacável de contradições imanentes à reprodução histórica do capitalismo, tais como a incapacidade deste, de gerar valor e plusvalor suficientes para a remuneração de uma pletora gigantesca de capitais. O que também se manifesta como endividamento generalizado e superprodução de mercadorias ou subconsumo. Diante disto, qualquer governo que se limite ao cínico debate de separar os banqueiros bons dos maus, deve ser combatido sem vacilação.
O velho Marx, olhando pra trás com seus olhos de águia, dizia que a história se repete primeiro como tragédia e depois como farsa. Já tivemos as duas, e agora?
Fernando Augusto de Assis é doutorando em sociologia política pela UFSC e membro da Frente Palestina livre de Joinville.