Entendendo a injustiça ambiental
Embora estejamos falando de desastres ambientais, esses fenômenos também se relacionam com questões de justiça, pois revelam um flagrante desrespeito aos direitos humanos, uma vez que os mais atingidos têm sido os socialmente mais vulneráveis
Com 16 mortes confirmadas, o ciclone extratropical que atingiu o Rio Grande do Sul nos dias 15 e 16 de junho de 2023 é o maior desastre natural relacionado a chuvas intensas das últimas quatro décadas no Estado. O fenômeno provocou estragos em 41 municípios. Segundo a Defesa Civil, 1.538 pessoas ficaram desabrigadas e 13.824 desalojadas, sendo o município de Caará um dos mais atingidos. Desde 1980, não há registros de outro episódio que tenha acarretado tantas perdas humanas devido a enxurradas no Estado. Conforme a Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão do RS, entre 2017 e 2021, mais de 4,4 milhões de pessoas foram direta ou indiretamente atingidas por desastres naturais em 482 municípios do Estado, havendo identificação de 14 mortes: cinco causadas por vendavais, quatro por enxurradas, duas por chuvas intensas, duas por tornados e uma por inundação. Esse não é um evento isolado: lembremos os casos recentes de enchentes e deslizamentos que ocorreram no litoral norte de São Paulo no carnaval de 2023 e as inundações ocorridas em Petrópolis e Pernambuco em 2022.
Todos esses fenômenos podem ser compreendidos como problemas ambientais, é claro, pois, em razão das mudanças climáticas, diversas catástrofes ambientais têm ocorrido no mundo todo, como ciclones, enchentes, furacões, elevações do nível do mar e incêndios florestais, entre outros. Entretanto, embora estejamos falando de desastres ambientais, esses fenômenos também se relacionam com questões de justiça. Isso porque eles revelam um flagrante desrespeito aos direitos humanos, especialmente à dignidade humana, uma vez que os mais atingidos por esses eventos climáticos têm sido regularmente os socialmente mais vulneráveis, como ribeirinhos e moradores de áreas de risco. Casos assim podem ser classificados como de injustiça ambiental ou mesmo de racismo ambiental.
No Brasil, o termo vem ganhando proeminência, principalmente após o desastre de Mariana, ocorrido em Minas Gerais em 2015. Na época, uma barragem da mineradora Samarco se rompeu, jogando rejeitos na bacia no Rio Doce, destruindo uma cidade próxima e matando ao menos 19 pessoas. Das vítimas imediatas do rompimento, 84,5% eram negras. O cenário se repetiu em 2019, na cidade de Brumadinho, também em Minas Gerais. Os dois bairros mais impactados pela onda de rejeitos tinham como maior parte da população pessoas pobres e negras. Com isso, surge o importante questionamento: os desastres ecológicos e as mudanças climáticas também respondem aos vieses, preconceitos e discriminação de toda ordem que pautam as estruturas sociais, conectando-se com importantes questões de justiça?
Nesse sentido, é importante compreender o conceito de justiça ambiental, que propõe uma reflexão a respeito da necessidade de assegurar de forma equitativa a distribuição de ônus e bônus ambientais conforme critérios aceitos socialmente. É injusto que as principais consequências ambientais negativas recaiam apenas em um grupo social, a saber, os mais vulneráveis socialmente, como pobres, indígenas e quilombolas, no caso brasileiro. As reivindicações por justiça ambiental são manifestações relativamente recentes das sociedades contemporâneas, iniciadas na década de 60 e ligadas aos movimentos de direitos civis para os afrodescendentes nos EUA, e buscam acusar e reverter o tratamento desigual dispendido em relação a grupos étnicos vulneráveis. Diz corretamente Rogério Rammê, em sua dissertação de mestrado intitulada As dimensões da justiça ambiental e suas implicações jurídicas (2012): “Atualmente o movimento por justiça ambiental abarca todos os conflitos socioambientais cujos riscos sejam suportados de forma desproporcional sobre populações socialmente vulneráveis ou mesmo os países ditos de ‘Terceiro Mundo’” (RAMMÊ, 2012, p. 23).
O que é injustiça ambiental?
Mas por que esses seriam casos de injustiça ambiental? Exatamente porque são situações que ferem os direitos humanos, uma vez que as ações das pessoas que provocam desequilíbrio ecológico provocam igualmente várias situações que representam uma negação da dignidade humana a certos grupos sociais, especialmente aqueles em situação de pobreza e vulnerabilidade social. Isso porque não é possível conceber como vida digna morar em locais de risco, sem água tratada, esgoto, locais em que a todo momento podem ocorrer deslizamentos e soterramento de pessoas. É importante evidenciar aqui um caráter discriminatório entre os diversos grupos e classes sociais, pois enquanto para grupos sociais com maior poder aquisitivo o meio-ambiente significa áreas verdes, parques, silêncio e ar despoluído, para grupos sociais marginalizados e excluídos significa a limpeza de córregos imundos e a proteção contra inundações e deslizamento de encostas. Como já considerado pela própria ONU em sua resolução Human rights and the environment (Direitos Humanos e Meio Ambiente) n. 1990/41, a degradação ambiental é causa de alterações irreversíveis ao meio ambiente, ameaçando ecossistemas que mantém a vida, a saúde e o bem-estar humanos.
Deixem-me ainda fazer referência a concepção de injustiça tal como apresentada por Judith Shklar para melhor compreender por que esses casos referidos seriam classificados como injustiça ambiental. Em The Faces of Injustice (Yale University Press, 1990), ela defende que o fenômeno da injustiça ocorre quando as vítimas estão presentes, sendo um caso particular e individual de arbitrariedade, de forma que a história, a cultura e o status são fundamentais para a compreensão do fenômeno. Ela inicia a obra fazendo uma distinção importante para nossos propósitos: como saber quando um desastre é uma fatalidade ou uma injustiça? Para ela, se é causado por uma força externa da natureza, com um furacão, é uma desgraça e devemos nos resignar ao sofrimento. Por outro lado, se é causado por um agente com má intenção, que toma uma decisão deliberada, se trata de uma injustiça, de forma que devemos expressar uma forte indignação. Por exemplo, um terremoto é claramente um evento natural, mas os danos causados por ele podem ter causas pessoais ou sociais relevantes, como quando construtores não seguirem o plano correto de construção para economizar no material, ou mesmo no caso das autoridades públicas não terem feito nada para se preparar para essa eventualidade. É importante ressaltar que Shklar defende que a percepção das vítimas é central para se distinguir entre uma fatalidade ou má sorte de uma injustiça, de forma a se conectar prioritariamente com o senso de injustiça da vítima (SHKLAR, 1990, p. 1-14).
Com essa caracterização em mãos, podemos ver que o fenômeno da injustiça ambiental ocorre em um dado país, como o Brasil, por exemplo, quando os impactos dos desastres ambientais recaem de forma desproporcional sobre populações socialmente vulneráveis, tais como pobres, povos originários e a comunidade negra. Por exemplo, enchentes, alagamentos, rompimentos de barragens, invasão de territórios, acesso escasso à água e esgoto tratado ou coleta de lixo são algumas das situações que evidenciam o racismo e a injustiça ambiental que grupos vulneráveis vivenciam ao longo da vida em nosso país, consistindo a injustiça no tratamento arbitrário e preconceituoso que certos grupos recebem, sobretudo, das autoridades públicas.
Mas, ainda há outra forma de injustiça ambiental que pode ser percebida especialmente na relação entre países, ou na relação entre pessoas que vivem em diferentes países e isso porque os países mais ricos são os que mais poluem, mas os problemas ambientais aparecem mais acentuadamente nos países mais pobres. Por exemplo, entre os países mais poluidores estão os Estados Unidos, China, Rússia, Japão e Alemanha, enquanto entre os países mais poluídos estão Bangladesh, Iraque, Paquistão, Índia, Kuwait, entre outros. A respeito da isonômica distribuição de ônus ambientais em nível mundial, o Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), intitulado “Combatendo a mudança climática: solidariedade humana num mundo dividido”, destaca que os países pobres apenas contribuem de modo ínfimo para o aquecimento global, contudo, são eles que mais sofrem e sofrerão os resultados imediatos das mudanças do clima no planeta. No mesmo sentido, Anthony Giddens, em A Política da Mudança Climática (Zahar, 2010) afirma que “a maior parte das emissões que causam a mudança climática foi gerada pelos países industrializados, porém seu impacto se fará sentir com mais intensidade nas regiões mais pobres do mundo” (2010, p. 259).
Exemplo disso seriam os casos de injustiça climática, em que o aquecimento global afeta as regiões do planeta de forma diferente. Estudo recente do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) mostra que cerca de 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas estão altamente expostas a mudança do clima. O relatório esclarece que há uma relação direta entre o subdesenvolvimento e a alta vulnerabilidade a riscos climáticos. O estudo também aponta que, entre 2010 e 2020, a mortalidade humana por inundações, secas e tempestades, foi 15 vezes maior em regiões altamente vulneráveis, como partes da África, sul da Ásia, América Latina e pequenos estados insulares.
Pensando em soluções
Como devemos enfrentar esse problema? Penso em duas linhas de ações, uma de dimensão pública e outra de dimensão privada. A primeira linha de ação seria apostar na governança climática, de forma a pensar a sociedade em conexão com o meio ambiente. Nesse sentido, todas as decisões da administração pública devem ser avaliadas socialmente frente aos riscos e às oportunidades que as emergências climáticas geram, de forma que essas decisões sejam sensíveis aos interesses dos mais vulneráveis. A governança climática está ligada ao desenvolvimento dos países e ao bem-estar da natureza assim como das pessoas, considerando que a construção de soluções ambientais é um processo complexo e de escala global que envolve todos os níveis e é relevante para todos os setores da sociedade. Nesse âmbito devem-se aprovar leis (nacionais e internacionais) de proteção ambiental que evitem injustiças e exijam um tratamento equitativo para todas as pessoas independentemente da cor, nacionalidade ou renda, garantindo que toda pessoa deve ter igual proteção dos riscos ambientais à sua saúde.
A outra linha de ação estaria mais voltada para a consciência individual das pessoas, de forma a se desenvolver uma responsabilidade socioambiental, o que deveria conduzir a um tipo de consumo mais austero ou comedido, considerando a vida humana como interdependente da vida do planeta. Estamos acostumados a pensar que os problemas ambientais seriam resolvidos apenas por leis de proteção socioambiental, o que não está errado. Mas, para além disto, não podemos esquecer que muitos problemas ambientais (se não todos) são gerados pelo tipo de produção e consumo que temos em sociedades contemporâneas, caracterizadas pela produção predatória em larga escala e consumismo. Assim, penso que é relevante refletir sobre nossa responsabilidade em consumir de forma mais sustentável, apostando e incentivando um tipo de consumo mais austero, consumindo o necessário para viver bem, mas considerando os limites apropriados deste consumo. Seria uma maneira de se pensar na necessidade da aquisição da virtude da moderação ou temperança como uma virtude pública central para se alcançar tanto a sustentabilidade como a solidariedade. Nesse sentido, creio que temos muito que aprender com os povos originários no Brasil, que têm um modelo produtivo de subsistência que não está baseado no consumo, conectando de forma orgânica o valor intrínseco da natureza e o bem-estar da comunidade.
Este modelo alternativo coloca em xeque a crença desenvolvimentista e consumista de que os recursos naturais são infindáveis e de que a natureza existe para ser desfrutada. Como dito por Krenak em Ideias para Evitar o Fim do Mundo (Companhia das Letras, 2019), os indígenas não se veem separados da natureza, mas se sentem parte integrante dela. Por isso, as pedras, as montanhas, as árvores são tratadas como pessoas, como sendo seus pais, mães, filhos e parentes. De acordo com ele, a separação das pessoas da mãe Terra é um processo de abstração civilizatória, na qual o consumo as leva ao impedimento de viver a verdadeira cidadania. Em suas palavras: “Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não vem – fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ela é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem uma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza” (2019, p. 9-10).
Assim, a lição aqui seria questionar a ideia ilusória de que maior consumo implicaria necessariamente em maior felicidade, uma vez que os recursos naturais são finitos e os problemas ambientais estão conectados com os problemas sociais. É claro que não devemos descuidar de exigir que os países façam leis ambientais que garantam os direitos humanos de forma irrestrita, bem como que façam acordos multilaterais para a diminuição de emissão de carbono, se comprometendo em limitar o aumento da temperatura global em 1,5º C. Outra medida seria concordar com o financiamento climático, de forma que os países desenvolvidos dariam apoio financeiro aos países em desenvolvimento, que são mais vulneráveis a estas alterações climáticas. Mas, isso não seria necessariamente excludente em relação a um compromisso moral com o bem-estar das outras pessoas e com o valor intrínseco da natureza, o que parece implicar um tipo de responsabilidade com a vida futura do planeta e da humanidade.
Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Pesquisador do CNPq.