Entre a normalidade democrática, a polarização e a mobilização social
A polarização que atravessa o país não é só eleitoral, mas também política e social, opondo dois projetos de sociedade e visões de mundo distintos: a democracia, representada em 2022 pela frente ampla em torno do presidente Lula; e o autoritarismo, o campo da extrema direita liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro
O presidente Lula completou seis meses de mandato em meio a um ambiente positivo e de normalidade. Na economia, o petista colecionou boas notícias nesse período: o PIB vem crescendo mais do que o esperado, a inflação está sob controle e o preço dos alimentos caiu, os postos de trabalho formais crescem, a renda do trabalhador também. Tudo isso, somado ao retorno das políticas públicas para os mais pobres, vem gerando uma espiral positiva de expectativas quanto ao crescimento econômico e de aumento da arrecadação do governo, o que permitirá ainda mais investimentos em 2024.
Na política, a relação com o Congresso assentou e a poeira baixou. As previsões de fim do mundo feitas por analistas da grande mídia diante de um possível conflito entre o presidente Lula e o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, não se confirmaram. O governo vem aprovando com tranquilidade todas as matérias de seu interesse, especialmente o arcabouço fiscal e a indicação do advogado Cristiano Zanin para o Supremo Tribunal Federal. Lira baixou a temperatura em suas queixas públicas e, embora siga fazendo pressão por cargos e emendas, não dita a agenda de Lula.
Ainda na política, o país assiste ao desenrolar da mobilização democrática contra o golpismo do ex-presidente Jair Bolsonaro em duas frentes: a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da tentativa de golpe de 8 de janeiro 2023, composta de senadores e deputados federais; e o julgamento pela inelegibilidade de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em ambos os casos, a extrema direita está na defensiva, sem conseguir mobilizar suas bases para defender Bolsonaro e seu entorno.
A suspensão dos direitos políticos do capitão por oito anos é dada como certa, provavelmente com ampla maioria ou mesmo unanimidade entre os ministros do TSE. O que se discute como consequência não é se haverá manifestações maciças em defesa de Bolsonaro, e sim se ele conseguirá se manter um bom cabo eleitoral em 2024 e 2026, com base em uma estratégia de se apresentar como perseguido e injustiçado pelo “sistema”. Ou seja, tudo dentro da normalidade democrática dos ciclos eleitorais.
Já no Parlamento, a CPI tem se demonstrado um espaço seguro para Lula, com a rejeição dos requerimentos da oposição que buscam implicar integrantes do atual governo em uma suposta sabotagem que teria facilitado ou mesmo estimulado o quebra-quebra em Brasília. E, em paralelo, vem aprovando os pedidos de quebra de sigilo telemétrico e bancário dos membros do entorno bolsonarista mais próximos do ex-presidente, sobre os quais pesam fortes indícios de conspiração golpista e corrupção.
Por fim, é preciso mencionar, neste balanço dos seis meses do governo, a atuação internacional de Lula, que recoloca o país em posição de destaque nos debates globais. A viagem do presidente à Europa no fim de junho ficou marcada por dois discursos históricos do petista, ambos em Paris. No primeiro, falando para 20 mil pessoas, Lula reafirmou o compromisso do Brasil com o desmatamento zero da Amazônia e cobrou os países ricos pela dívida histórica com o planeta a partir da Revolução Industrial no século XVIII. No segundo, Lula estava cercado de chefes de Estado que participavam da Cúpula sobre o Novo Pacto de Financiamento Global e criticou duramente os documentos de fóruns internacionais que nem sequer mencionam o combate às desigualdades como uma prioridade. O líder brasileiro insistiu que enfrentar as desigualdades de renda, raça e gênero deve ser tão prioridade quanto combater a emergência climática.
A normalidade e a popularidade do presidente Lula
Tal normalidade expressa na dimensão econômica, política e internacional remete aos primeiros mandatos de Lula, entre 2003 e 2010, especialmente o segundo, quando o presidente conseguiu resultados consistentes de crescimento econômico, controle da inflação e das contas públicas, combate às desigualdades e melhorias concretas na vida da maioria da população brasileira. Não por acaso, Lula saiu da Presidência com aprovação recorde de 90% e elegendo Dilma Rousseff sua sucessora.
Entretanto, a popularidade atual de Lula segue longe daquele patamar histórico. O conjunto de três pesquisas de opinião feitas ao longo do mês de junho mostra que o presidente tem 37% de aprovação, com rejeição variando entre 27% e 28%.
Análises otimistas afirmam que seria questão de tempo para a popularidade de Lula subir, alavancada pela persistência de um cenário econômico positivo. Essa esperança parte do pressuposto de que o restabelecimento da normalidade democrática poria fim ao tipo de polarização que o Brasil vem vivenciando desde o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma em 2016 e, principalmente, desde que Bolsonaro se converteu na principal liderança da direita brasileira em 2018.
Contudo, nada indica que a polarização vá arrefecer. Isso porque, conforme afirmamos no projeto de Monitoramento Eleitoral de 2022, feito pelo Observatório Político Eleitoral (Opel) em parceria com o Le Monde Diplomatique Brasil, a polarização que atravessa o país não é só eleitoral, mas também política e social, opondo dois projetos de sociedade e visões de mundo distintos: a democracia, representada em 2022 pela frente ampla em torno do presidente Lula; e o autoritarismo, o campo da extrema direita liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
O Monitoramento Eleitoral do Opel demonstrou que tal polarização foi além das eleições presidenciais, pautando a disputa em quase todos os governos estaduais (as exceções foram Pernambuco e Rio Grande do Sul – neste caso, com o atual governador Eduardo Leite conquistando a vaga no 2º turno contra a extrema direita por apenas 2 mil votos a mais que o PT); em quase todas as disputas para o Senado; no Parlamento federal e estadual, com as bancadas do PT e do PL sendo as maiores; e nos eixos temáticos, com dinâmicas de renovação democrática – bancada do cocar, candidaturas antirracistas, candidaturas feministas e candidaturas de movimentos sociais – versus dinâmicas autoritárias, como a bancada da bala, as disseminação das fake news e o papel das lideranças evangélicas conservadoras.
É bem verdade que o pleito municipal de 2024 apresentará um quadro de muita diversidade, uma vez que as configurações locais organizam a disputa nas cidades para além das linhas de força nacional. Ainda assim, será possível ver a polarização se manifestar em disputas estratégicas: é o caso da cidade de São Paulo, onde se dará um verdadeiro terceiro turno da eleição de 2022, com Guilherme Boulos, do Psol, representando o presidente Lula, e o atual prefeito, Ricardo Nunes, sendo apoiado por Bolsonaro e, principalmente, pelo governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, que busca se credenciar para substituir o ex-presidente caso sua inelegibilidade se confirme.
O mais provável, portanto, é que dificilmente Lula tenha uma rejeição muito abaixo de um terço do eleitorado. E sua capacidade de aumentar a aprovação não dependerá somente das realizações de governo, mas também estará ligada ao elemento da mobilização social.
A normalidade e a mobilização social
A mobilização social é um elemento central para o fortalecimento de qualquer arranjo democrático, e no Brasil não foi diferente. A Constituição de 1988 não teria tantos direitos sem a intensa mobilização popular, com centenas de caravanas de norte a sul do país que lotaram as galerias do Congresso e pressionaram os deputados. Tampouco é possível pensar nas experiências de governos progressistas do PT sem o conjunto de mobilizações dos movimentos sociais que foram se acumulando desde as greves do ABC lideradas por Lula no fim dos anos 1970, ainda sob a ditadura militar.
Hoje, contudo, as dinâmicas de mobilização social enfrentam desafios significativos na atualidade, e, novamente, o Brasil não é exceção. Há, de partida, as dinâmicas de individualização recorrentes de décadas de neoliberalismo hegemônico no mundo; soma-se a isso o processo de plataformização da política, com o monopólio que as Big Techs exercem sobre o debate público nas redes sociais; por fim, mas não menos importante, destaca-se a emergência global e nacional de uma extrema direita que mobiliza suas bases nas redes e nas ruas. No Brasil, tal mobilização incluiu um movimento golpista com os acampamentos nos quartéis-generais do Exército e os ataques de 8 de janeiro de 2023.
Esse quadro de extrema direita nas ruas vem enfraquecendo no Brasil como consequência da derrota do golpismo bolsonarista. As redes de financiamento foram desmobilizadas e os cabeças do movimento estão sendo investigados e punidos.
No mesmo sentido, o fato de a frente democrática brasileira ser liderada pelo presidente Lula implica uma dinâmica política que rejeita os valores neoliberais e traz para o centro do palco a luta pela desigualdade e a afirmação do papel do Estado como indutor do desenvolvimento. Esses dois elementos combinados abrem uma grande oportunidade para que a sociedade civil brasileira retome dinâmicas de mobilização mais ampla, capazes de alterar a correlação de forças, uma vez que tanto o neoliberalismo quanto a extrema direita estão em um momento de defensiva na conjuntura nacional.
Não se trata de propor que os movimentos sociais inventem a roda, e sim que o campo progressista siga investindo em dinâmicas de luta política que tiveram efeito extremamente positivo durante a pandemia de Covid-19, quando os movimentos sociais se organizaram para distribuir máscaras, álcool gel e comida para o povo das periferias.
Se o estrago da Covid-19 não foi maior no povo pobre, isso se deu graças à mobilização social diversa e incansável. Nesse processo, surgiram cozinhas solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a união do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para levar às cidades comida saudável, campanhas de arrecadação de alimentos e organização comunitária, como a Tem Gente com Fome, impulsionada pela Coalizão Negra por Direitos, e outras levadas a cabo por sindicatos e ONGS.
Outra política que resultou da mobilização social durante a emergência sanitária foi a conquista do Auxílio Emergencial para milhões de pessoas que perderam suas atividades econômicas diante das necessárias políticas de isolamento social. O governo genocida de Bolsonaro propôs um voucher de R$ 200 a um número limitado de pessoas e por um período curto de tempo. Os movimentos sociais e o ativismo conseguiram pressionar o Congresso a aprovar o auxílio de R$ 600 para milhões de pessoas, com resultados positivos no combate às desigualdades entre 2020 e 2022.
É preciso retomar redes e articulações desse tipo durante o terceiro mandato do governo Lula. Somente com o enraizamento e a territorialização das forças democráticas em torno de valores como a solidariedade e a dignidade seremos capazes de consolidar a vitória democrática de 2022, instalando um novo tipo de normalidade, no qual as desigualdades de classe, raça e gênero no Brasil sejam de fato combatidas.
*Josué Medeiros é cientista político e professor da UFRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (Opel) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (Nudeb).