Entre o despejo e a xenofobia: o futuro incerto dos refugiados em campos não-oficiais na Cidade do Cabo
“Nós somos como peixe em um aquário. Mesmo gritando, ninguém pode ouvir nossas vozes. Mesmo chorando, ninguém pode ver nossas lágrimas”, relata morador do campo de refugiados de Wingfield
A questão do refúgio e da imigração na África do Sul mobiliza debates importantes em muitos setores sociais. Nas eleições presidenciais deste ano, por exemplo, a pauta da migração aparecia em destaque nas plataformas dos principais partidos políticos, apresentando diferentes propostas em relação às fronteiras e à imigração ilegal. Atualmente, propostas de revisões legislativas para o livro branco sobre cidadania, imigração e proteção de refugiados estão em andamento, ao mesmo tempo que pessoas em campos de refugiados na Cidade do Cabo estão sob risco iminente de despejo, aumentando a situação de vulnerabilidade desta população. Essas ações têm gerado preocupações em relação ao cumprimento das obrigações internacionais para a proteção das pessoas refugiadas e o futuro dos refugiados no país.
A África do Sul é um dos países signatários da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados das Nações Unidas (1951) e do Protocolo de 1967, que definem as pessoas passíveis de obterem a proteção de outro Estado em caso de perseguição “por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas […], ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele” (p. 2). O país também adere à convenção de 1969 da Organização da Unidade Africana (OUA), que rege questões específicas dos refugiados no continente Africano. Em consonância aos protocolos internacionais, o país conta com a Refugees Act 130 de 1998, com o intuito de garantir os direitos das pessoas refugiadas de maneira integrada.
Atualmente, estão no país cerca de 250.250 refugiados e solicitantes de asilo e o país não conta com uma política de atendimento em campos de refugiados, a fim de incentivar a integração com a sociedade. Apesar disso, na Cidade do Cabo há pelo menos dois campos não-oficiais, que a princípio foram destinados às pessoas que participaram de manifestações em dezembro de 2019 demandando a realocação em um terceiro país. Naquele ano, houve um aumento de ataques xenofóbicos na África do Sul em relação aos 10 anos anteriores, segundo a plataforma Xenowatch, desenvolvida pelo Centro Africano para Migração e Sociedade (ACMS) da Universidade de Witwatersrand, que coleta informações sobre xenofobia.
As manifestações se iniciaram em frente à ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), mas, após conflitos com a polícia, o grupo foi abrigado pelo reverendo Alan Storey na Igreja Central Metodista, há duas quadras do local. Mais pessoas se uniram aos 200 presentes inicialmente, e na igreja ficaram cerca de 600 a 900 pessoas acampadas, segundo o reverendo. Houve conflitos entre lideranças que levaram à divisão em dois grupos, dentro e fora da igreja. Após cinco meses, ambos acampamentos foram dissipados pela polícia, com o argumento da necessidade de isolamento social devido à pandemia da COVID-19. As lideranças foram presas e uma delas foi deportada posteriormente.
A vida nos campos de refugiados
As pessoas foram levadas para dois campos de refugiados, o Wingfield Camp e outro em Bellville. Entre visitas e entrevistas com residentes de Wingfield, identifiquei que, atualmente, residem cerca de 28 famílias, totalizando 135 pessoas. No início, o grupo contou com doações de refeições prontas para consumo, três vezes ao dia, mas com o fim da pandemia se mantiveram apenas eventuais entregas, especialmente de igrejas, para que as pessoas pudessem preparar seus alimentos individualmente. Na área externa, foram improvisadas pequenas cozinhas com toldos de plástico e madeira, com fogareiros com lenhas que foram doadas. A cobertura é importante para ser possível cozinhar em dias de chuva, mas ao mesmo tempo, torna o ambiente sufocante para preparar os alimentos por conta da fumaça que a madeira libera, um agravante para quem tem doenças respiratórias. A cozinha anteriormente ficava dentro do toldo principal, mas foi removida para o lado de fora para diminuir o risco de gerar um grande incêndio.
Este grande toldo branco de plástico conta com divisões improvisadas de quartos com pedaços de madeira, onde seus moradores buscam alguma privacidade. Como as famílias ficam próximas umas das outras, é alto o risco de doenças contagiosas se espalharem rapidamente, como casos de tuberculose que já foram vivenciados no local.
Ainda na área externa, há apenas 10 banheiros químicos, cinco para homens e cinco para mulheres. Estes banheiros são limpos apenas uma vez por semana, o que gera risco de infecções e medo especialmente de que as crianças fiquem doentes. Com o frio e as chuvas, a vida no local se torna ainda mais difícil. Em julho deste ano, o alto volume de chuvas deixou o local alagado por dias.
Um dos moradores do campo me relatou seu sentimento perante a situação: “nós somos como peixe em um aquário. Mesmo gritando, ninguém pode ouvir nossas vozes. Mesmo chorando, ninguém pode ver nossas lágrimas”. Este forte depoimento ressalta que mesmo o sofrimento não é capaz de mobilizar compaixão ou gerar mudanças, pois não existe a perspectiva de que mudem para uma situação melhor ou que sua demanda pelo reassentamento em um terceiro país seja atendida. Diante desta situação já bastante precária, a possibilidade de ter algum lugar para morar já se mostra incerta.
Risco de despejo iminente
No final do mês de julho deste ano, o despejo ficou mais próximo de se concretizar. O novo ministro do Departamento de Assuntos Internos, Dr. Leon Schreiber, junto com o prefeito da Cidade do Cabo, Geordin Hill-Lewis, apareceram em um vídeo direcionado aos cidadãos de áreas da cidade que são próximas aos dois campos que abrigam os refugiados. Nele, abordam que o despejo das pessoas desses locais deverá ser feito em breve, porém sem dar explicações sobre o futuro destino dos moradores, que estão ali há quatro anos. O ministro fala no vídeo em restaurar a “lei e a ordem”, mas sem mencionar como a lei irá proteger os refugiados, que estão em situação de vulnerabilidade.
As pessoas desses campos acompanham as notícias sem certezas sobre o que irá acontecer e sem respostas para suas demandas relacionadas à segurança no país. Enquanto isso, o medo da violência xenófoba persiste, e o governo não demonstra vontade política para seu enfrentamento. Neste sentido, um grupo chamado “Operação Dudula”, em ação desde 2021, aborda diretamente as pessoas refugiadas ou que solicitam asilo no país alegando combater a imigração ilegal, porém, na prática, questionam diretamente a presença de qualquer imigrante, os acusando de levar para a África do Sul drogas, armas e criminalidade, ou de sugar os escassos recursos financeiros existentes, com demandas por saúde e educação. Uma pessoa do campo me enviou um vídeo mostrando uma abordagem da organização: um grupo de pessoas se coloca ao redor de dois refugiados etíopes, enquanto um homem da Operação Dudula os intimida, falando claramente que deveriam voltar para seu país de origem e lutar por ele, ao invés de ficar na África do Sul. Apesar das filmagens que mostram a atuação do grupo, este segue com suas práticas e inclusive se tornou partido político neste ano. As abordagens circulam entre refugiados, aumentando o medo da xenofobia sul-africana.
Para além das imagens que circulam, as experiências pessoais trazem também relatos de xenofobia e violência. Duas pessoas do campo me relataram a tentativa de ter seus pequenos negócios antes de estar no local e a impossibilidade de seguir adiante, devido a cobrança de valores por gangues para funcionar. As ameaças iniciais culminaram em destruição do negócio, violência física e sexual quando não conseguiram mais pagar o valor mensal que lhes foi imposto. Segundo a Xenowatch, desde 1994, 5.328 imigrantes tiveram suas lojas saqueadas no país. Também foram registrados 1.099 incidentes xenofóbicos e 674 mortes de imigrantes. Os pesquisadores da plataforma afirmam que os números podem ser maiores, pois nem todos os casos são denunciados.
Para além da xenofobia, as pessoas refugiadas na África do Sul também enfrentam dificuldades em conseguir trabalho devido a altíssima taxa de desemprego (em torno de 33%) e uma longa espera para obter sua documentação para o refúgio, ficando anos como “solicitantes de asilo”. Os regulamentos da Lei dos Refugiados estipulam que os pedidos de asilo deveriam ser julgados pelo Departamento de Assuntos Internos dentro de 180 dias após a apresentação de um pedido de asilo. Na prática, o país tem um número muito grande de processos de asilo pendentes, em torno de 184.200, e um dos períodos de análise mais longos do mundo.
Outra dificuldade é a distância dos apenas cinco Escritórios de Recepção de Refugiados que existem no país, e a necessidade constante de viajar para seguir com o processo burocrático no mesmo escritório. Muitas pessoas acabam mudando de endereço e têm dificuldade em se deslocar para esses lugares, especialmente por questões financeiras. Esta situação, em conjunto com outros fatores, leva a um estado emocional de estresse e sofrimento, dificultando a vida dos refugiados no país. Diversas pessoas me relataram a sensação de limbo e desesperança de conseguir ter uma vida digna no país.
Mudanças no livro branco sobre cidadania, imigração e proteção de refugiados
O Departamento de Assuntos Internos sul-africano apresentou, em abril de 2023, uma proposta de revisão do livro branco sobre cidadania, imigração e proteção de refugiados, que foi aberta para comentários de organizações e da sociedade civil. Iniciada há quatro anos, uma nova lei será desenhada a partir desses comentários e apresentada ao parlamento, passando deste novamente para o Departamento de Assuntos Internos, que abre uma nova escuta pública. Posteriormente, o parlamento irá aprovar ou rejeitar a lei e solicitar a assinatura do presidente.
Esta revisão tem como um de seus objetivos melhorar os processos sobre imigração, cidadania e direitos dos refugiados na África do Sul. Ao mesmo tempo, ela vem sendo criticada por organizações que atuam com a proteção de pessoas refugiadas, como a Scalabrini e a Lawyers for Human Rights (LHR), especialmente por conta da proposta de retirada temporária e posterior reinserção com reservas nas Convenções da ONU de 1951 e ao Protocolo de 1967, com a alegação de que o país não tem recursos socioeconômicos para conceder aos refugiados. Os riscos destas retiradas é de que o governo não assine novamente e ao que aconteceria aos refugiados ou solicitantes de asilo que estão no país, já que as convenções garantem o princípio de não-devolução, ou seja, de que as pessoas que entram no país não sejam deportadas a seu país de origem.
Com a abertura da revisão da lei para comentários da sociedade em geral, foi criada uma petição em um site, assinada genericamente por “cidadãos sul-africanos”. Ela conta com mais de 3 mil assinaturas e propõe medidas rigorosas relacionadas à migração de maneira geral. Há uma série de comentários de apoio, através dos quais nota-se especialmente a associação da imigração com a criminalidade, a demanda por segurança e uma “sobrecarga do sistema” em termos econômicos. Há ainda quem defenda deportações em massa dos imigrantes ilegais, e de qualquer imigrante.
Apesar da petição não representar a sociedade sul-africana como um todo, ela traz à tona discursos de senso comum sobre os imigrantes que circulam na sociedade e chegam até os refugiados, retroalimentando medos e desconfianças entre cidadãos e imigrantes. Assim, a xenofobia chega ao campo de refugiados através de diversas vias – de vídeos, petições e comentários à violência de fato em suas diversas formas, seja física, sexual ou na negação do acesso a direitos – e sua insegurança apenas aumenta. A revisão da lei compõe este cenário de maneira crítica, pois gera insegurança com a retirada e posterior reinserção nas convenções de 1951 e protocolo de 1967, ao mesmo tempo que não há ações efetivas para combater a xenofobia no país.
Fernanda Martinelli é mestranda em antropologia pela Universidade de São Paulo e pesquisa refúgio na África do Sul.
Esta pesquisa está sendo realizada graças ao apoio que recebi em diferentes momentos da CAPES, CNPq e Fapesp.