Ernesto, “pero sin perder la ternura”
Fazer memória a Che Guevara não é tecer uma apologia dogmática pelos seus atos ou crenças, mas atestar que na contemporaneidade já não existem figuras que trocariam uma vida calma pela engenhosidade ativa numa revolução
Morto o homem, restou para sempre o mito. Desvelando a figura do revolucionário e guerrilheiro, encontramos um intelectual apaixonado por filosofia, literatura e boas histórias.
Nascido em Rosário, na Argentina, o jovem Ernesto Guevara de La Serna cursa a escola médica de Buenos Aires entre os anos de 1945 e 1951. No ano seguinte, visita a Colômbia, a Venezuela e o Peru, onde começa tratar pacientes com lepra. Em março de 1953 se forma em Medicina, e quatro meses depois decide viajar por toda a América Latina: começa pela Bolívia, uma experiência transformadora que mostrou o impacto da revolução acontecida no país no ano anterior.
Podemos dizer que o ano de 1953 foi marcante para o jovem Ernesto, pois além do primeiro contato com experiências revolucionárias na América do Sul obteve o primeiro contato com um grupo de sobreviventes do ataque ao Moncada, em San José, na Costa Rica.
Para entender esse fato histórico: o ataque armado à guarnição do exército de Moncada, em Santiago de Cuba, foi uma tentativa de depor o regime ditatorial de Fulgencio Batista, em julho de 1953, liderado por Fidel Castro, todavia massacrado pelas tropas de Batista, condenando e prendendo Castro e os outros sobreviventes. O ataque teve um saldo fracassado diante das expectativas, com mais de 50 combatentes capturados.
No início de 1954, já na Guatemala, conhece Ñico López, um veterano de guerrilheiro do ataque ao Moncada, figura importante naquela revolução, que proporcionou ao jovem médico as primeiras histórias sobre o processo revolucionário pela ótica dos militantes e guerrilheiros.
A vida de Ernesto no país da América Central não foi fácil. Sua formação médica não garantiu ingresso na área da saúde, pelo contrário. Para sobreviver arranjou diversos empregos esporádicos no intuito de permanecer por mais tempo no local. Foi nessa época que Ernesto estuda os escritos marxistas, dando início, concomitantemente, com o envolvimento ativista político e a busca por conhecer os revolucionários cubanos exilados, depois do fracasso de Moncada. A gradativa imersão na organicidade do ativismo revolucionário galgou Ernesto à consciência anti-imperialista e socialista, não restrita ao conhecimento teórico dos livros, mas fincada na práxis libertadora. Prova disso foi a apresentação como voluntário na luta contra as forças mercenárias patrocinadas pela CIA, que invadiram a Guatemala em junho de 1954. O presidente guatemalteco, Jacobo Arbenz, dez dias após o início da invasão renuncia. Dois meses depois da intervenção Ernesto foge, encontrando refúgio na Cidade do México.
No ano seguinte, 1955, Ernestro reencontra Ñico Lopez, que providencia prontamente um encontro com Raúl Castro. Tendo por objetivo organizar uma frente armada para invadir Cuba, Fidel chega ao México em julho. Nesse mesmo mês, Ernesto e Fidel se conhecem. Duas personalidades que nutriam semelhanças e diferenças, entretanto tangiam ao mesmo horizonte de transformação política e social.
Após prisão e soltura, Fidel foge para o México, lugar onde encontraria seus companheiros de luta exilados. Desse companheirismo houve o “batismo” do apelido de Ernesto, como “Che” devido sua identidade cultural, já que costumava se dirigir como “Tchê”, costume da região dos Pampas. Fidel e Ernesto se impressionaram mutuamente: Castro pelo entusiasmo, fé e dedicação de Ernesto pela ação revolucionária; Guevara pelo destemor e audácia de Fidel pela causa socialista. Um complementava o outro.
Aos poucos “Che”, que outrora foi admito como chefe médico da primeira expedição em Cuba, se tornou o símbolo de guerrilheiro heroico pela sua firmeza e capacidade de pôr em prática os conhecimentos de guerrilha, sendo peça essencial na Revolução Cubana. Além disso, a liderança natural de Ernesto e sua forte personalidade trouxeram à tona o óbvio: ali estava um guerrilheiro que entraria para a história, não só de Cuba, mas de toda a América Latina.
A vida de Ernesto
Todos sabem que Ernesto se tornou um símbolo quase mitológico de resistência e luta política, ultrapassando as esferas da polarização ideológica quando o assunto é seu legado. Concordando ou não, quase todos já ouviram falar ou viram seu rosto estampado, seja em outdoors (não tão comum), camisas (era comum nas últimas décadas), ou assessórios estilizados diversos. Seu retrato, inclusive, precede sua fama: muitos não saberão dizer quem é, mas reconhecem sua imagem de “algum lugar”. Todavia, pouco se fala de sua vida privada e familiar, que reduz Ernesto à figura de guerrilheiro impiedoso ou sanguinário (muito propagado pelos seus opositores).
Ernesto foi filho mais velho de um casal de classe média argentina, de ascendência espanhola. Teve dois irmãos e duas irmãs. Desde cedo, “Ernestito” (como era carinhosamente chamado pelos íntimos) nutriu forte empatia pela triste realidade social assolada na região onde vivia, que possivelmente influenciou sua guinada ideológica para a esquerda, bem como a própria tendência de sua família que comungava dos mesmos ideais e perspectivas. Seu pai, Ernesto Guevara Lynch, além de ser ferrenho admirador dos republicanos da Guerra Civil Espanhola organizou, durante a Segunda Guerra Mundial, um pequeno agrupamento de ativistas que espionaram possíveis núcleos nazistas na cidade de Córdoba. Ernestito, inclusive, foi participante do agrupamento montado por seu pai.
Com seu pai aprendeu xadrez. Conforme foi crescendo, Ernestito se tornou amante da literatura e da filosofia, em especial autores como Pablo Neruda, Antonio Machado, César Vallejo, Emilio Salgari e Júlio Verne. Não menos importante, era exímio leitor de Franz Kafka, Albert Camus e Jean-Paul Sartre, um dos seus preferidos. Sobre o último, em 1960, pouco mais de um ano após a derrubada de Fulgencio Batista do poder, esteve com Che Guevara, acompanhado da filósofa Simone de Beauvoir, em encontro no Banco Nacional de Cuba, onde conversaram e fumaram charutos – uma das maiores especialidades do local, até os dias atuais.
Ernesto ocupava o cargo de presidente do Banco Nacional e ministro da Indústria quando encontrou o filósofo existencialista francês. Sartre se admirou com o vigor físico e intelectual de Ernesto, assim como de todos os outros revolucionários, apaixonados pela causa. Naquele dia, Sartre deixou de lado o convencional cachimbo, compartilhando o momento ímpar com o “puro” fumo nacional cubano oferecido por Che Guevara. Sobre o revolucionário, o filósofo francês classificou-o como “o ser humano mais completo de nossa época”.
Casamentos e filhos
Ernesto se casou duas vezes: com a líder peruana comunista Hilda Galdea, em 1955, e posteriormente em 1959 com a combatente cubana Aleida March. Com Hilda teve uma filha, com mesmo nome da mãe, falecida em 1995. Com Aleida teve quatro: Aleida, Camilo, Celia e Ernesto. Por conta das empreitadas revolucionárias e viagens pela América Latina, Che não participou ativamente da criação e amadurecimento dos filhos. A filha mais velha, Aleida Guevara, hoje importante pediatra e ativista cubana, contou que mesmo com pouco tempo de convivência teve uma relação muito boa com seu pai: ele sempre enviava histórias e desenhos em cartões postais. Ao The Guardian, em 2009, conta uma história envolvendo seu irmão Camilo:
“Meu irmão Camilo foi repreendido na creche por usar palavrões, e minha mãe confrontou Che porque ele tinha o hábito de xingar — como todos os argentinos. Ele estava na África e escreveu para Camilo dizendo que não podia xingar na escola, ou Pepe, o jacaré [inventado por Ernesto] morderia sua perna. Então ele teve que parar de xingar para proteger seu pai”.
Para além, recorda em entrevista para o Brasil de Fato, em 2023, que só tomou consciência da importância da figura de seu pai bem mais tarde, mas havia sofrido um forte impacto quando reparou na comoção nacional por conta da morte de Che, em outubro de 1967.
“Eu não tinha sete anos quando meu pai morreu. Lembro-me de viajar em um carro, olhar pela janela e, de repente, ver muitas fotos dele. Fotos enormes. Eu ainda não conseguia ler, então não sabia realmente o que elas diziam. Perguntei às pessoas por que tantas fotos do meu pai? Ninguém me respondeu. Havia muita tristeza nas ruas. Foi a primeira vez que percebi que meu pai era alguém importante”.
O legado de Ernesto
Podemos afirmar que um autêntico revolucionário é movido por um profundo sentimento de paixão, de amor pela causa. A coerência pelo que se pensa e crê transpõe o sujeito do estágio de mediocridade ao patamar da excelência. Podemos ser firmes e convictos no que acreditamos, mas sem perder a docilidade e sensibilidade dos momentos. Daí a famosa frase de Ernesto: “Hay que endurecerse sin perder jamás la ternura”. Essa dialética se desenvolve na chamada “Teoria do Coco”, coletado no livro autobiográfico de Che intitulado “Pasajes de La Guerra Revolucionaria”, em que diz que devemos ser “duros por fuera, pero blandos por dentro”.
Arriscar–se pelo que crê é louvável. Fazer memória a Ernesto não é tecer uma apologia dogmática pelos seus atos ou crenças, mas atestar que na contemporaneidade já não existem figuras que trocariam uma vida calma pela engenhosidade ativa numa revolução. Militamos pelo celular, criamos notas de repúdio nas redes sociais. Abraçamos o mundo, sem estar no mundo. No máximo utilizamos uma camiseta ou boton do revolucionário, como forma de pertencimento à causa socialista.
Ernesto era diferente. Tenho minhas dúvidas se ele compraria uma camisa do Che Guevara.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras.