Escola e universidade com todas as partes
O que está sendo feito neste país através de fórmulas obscurantistas como “escola sem partido” e de ameaças às ciências, seja através de bloqueios orçamentários que atingem as universidades públicas no seu conjunto, seja através de ataques às ciências humanas, notoriamente à Sociologia e à Filosofia?
Todo e qualquer curso de formação superior possui um documento chamado Projeto Político Pedagógico (PPP), que é aprovado por cada instituição de ensino superior vinculada ao Ministério da Educação, no quadro de deveres, marcos e garantias constitucionais. Em conformidade com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) toda escola deve possuir um Projeto Político Pedagógico. Por que o PPP? Entre outras razões, porque neste país, como em qualquer outro que, em sua formação, recebeu a influência, entre outras, da cultura ocidental, entende-se que a ciência (a procura do conhecimento verdadeiro) é inseparável da formação ético-política, assim como na Grécia antiga a procura pelo conhecimento Verdadeiro era inseparável da busca do Bem e na Europa iluminista a reflexão crítica era inseparável da tarefa emancipadora que Kant atribuía à razão. Ao ideal liberal do iluminismo, somaram-se ao longo do século XX os esforços progressistas que entendiam que a universidade é inseparável da sociedade em que está inserida e deve, pois, desempenhar uma função social e contribuir para sua transformação, no sentido de combater discriminações e superar desigualdades. Não havendo um liame necessário capaz de unir política e ciência e observando em tragédias como o nazismo, o colonialismo e a escravização que a razão pode racionalmente produzir a barbárie (como viram H. Marcuse em relação ao holocausto e A. Césaire em relação à colonização européia na África), tais esforços buscaram criar as condições para que a razão pudesse ser exercida na direção da emancipação humana, incluindo a compreensão mais ampla da inserção do ser humano em um mundo vivo, sustentada por um “princípio responsabilidade” (conforme H. Jonas) vis-à-vis do conjunto das formas de vida e de sua importância para as gerações futuras. Desse modo, a partir do entrecruzamento de diferentes perspectivas ético-políticas, a universidade afirmou através de suas mutações ao longo da história a sua natureza mais elementar, desde seus estabelecimentos na Europa Medieval, qual seja, ser um consortium, uma reunião de pessoas para viver em toda sua amplitude a experiência do pensamento nas suas mais diversas expressões e áreas do conhecimento: produções teórica e técnica, ciência fundamental e aplicada, formação acadêmica e profissional.
Pois bem, o que está sendo feito neste país através de fórmulas obscurantistas como “escola sem partido” e de ameaças às ciências, seja através de bloqueios orçamentários que atingem as universidades públicas no seu conjunto, seja através de ataques às ciências humanas, notoriamente à Sociologia e à Filosofia? Séculos de ascensão da humanidade, de emancipação e de progresso estão sendo solapados ao se reduzir à doutrinação ideológica a compreensão dos conteúdos ético-políticos que toda formação científico-profissional deve implicar. A escola e a universidade são fundamentalmente sem um partido na sua natureza mais elementar, porque elas são o espaço de todas as partes, inclusive, para retomar uma noção de J. Rancière, a “parte dos sem-partes”, quer dizer, discriminados e excluídos, para o exercício livre e crítico do pensamento. Ninguém é ingênuo a ponto de afirmar que haja um exercício desinteressado da razão. O desafio democrático não é fazer valer o consenso, mas garantir a vida do dissenso, o “acordo discordante” (conforme G. Deleuze) dos interesses, irredutível a maniqueísmos de tipo esquerda/direita. A luta de certos grupos para reduzir o que é de todas as partes e da parte dos sem partes ao sem partido, e de resto, a uma impossível neutralidade, trai o desejo de que a universidade seja delimitada no quadro da parte da sociedade que lhes interessa, no sentido de conformidade às suas preferências e princípios em detrimento do fato da irredutível alteridade no mundo.
A consequência imediata de tais ameaças pode ser o contentamento ressentido daqueles que, temerosos de enfrentar os desafios postos pela contemporaneidade, buscam refúgio em simulacros de valores que os fazem levar uma vida contraditória e se apoiar em ídolos que apelam para instintos repugnantes contra bodes expiatórios. Assim, partes da sociedade que se sentem ameaçadas pela desagregação do liame social, de que as violências diversas são sintomas, defendem o direito de acesso às armas ao invés de privilegiar o combate às desigualdades seculares como meio de produzir uma nova coesão social mais justa. Ora, as ciências em geral e as humanidades em particular são centrais nesse processo de transformação da sociedade. Como nos ensinou F. Fanon, quando a razão busca responder ao irracional da violência de maneira desarrazoada ela nada obtém a não ser mais irracionalidade, em outras palavras, mais violência. Não é, pois, fortuito que muitos dos que são alérgicos à duração do pensamento reflexivo e vivem a golpes instantâneos de tuítes ao mesmo tempo defendam as armas e classifiquem o exercício reflexivo e crítico do pensamento como doutrinação, quando, na verdade, somente ele e uma educação de qualidade podem criar as condições de uma sociedade democrática.
Mas há também uma consequência a médio prazo desse ataque à educação: o Brasil corre o risco de perder o compasso das transformações rápidas e consistentes, contínuas e irreversíveis pelas quais o mundo passa no campo da tecnologia, do trabalho, do conhecimento, inseparáveis de interesses político-econômicos, político-militares de que a chamada guerra fria das novas tecnologias de informação não é senão um caso ao lado das disputas no campo das nanociências, da biotecnologia, etc. Para elas concorre a produção científica em diversas áreas. Frentes de inovação por todo o mundo, no Vale do Silício ou em Shenzen, trabalham em regime de cooperação entre as diversas áreas, com participação das humanidades e, notoriamente, da filosofia. A Universidade da Singularidade, por exemplo, que atravessou o Atlântico para se instalar na França, oferece formações que vão da exploração da Inteligência Artificial às novas fontes de energia, mas em todas elas envolve uma dimensão ética, política, filosófica e do direito. Nesse cenário, o país necessita de uma política estratégica e de mais investimentos no campo da produção científica e da formação.
Certamente, não basta denunciar ameaças. As universidades precisam igualmente de renovação e de respostas estratégicas e disruptivas aos desafios da contemporaneidade, o que não significa que ela deve ser subserviente a fins meramente utilitários e a interesses hegemônicos, mas repensar sua responsabilidade na sociedade em que está inserida, no caso brasileiro, a formação acadêmica e profissional como meio de inclusão social através da inserção qualificada no mercado de trabalho, da formação ética e cidadania e da produção de conhecimento em áreas estratégicas para o país. Ignorando essa realidade, além da obsolescência em um mundo que se transforma rapidamente, corre-se o risco de efetuar algo como um estelionato acadêmico-profissional, massacrando gerações que terão diplomas e formações a tal ponto enrijecidas que jamais habilitarão ninguém a ocupar qualquer posto de trabalho que represente a possibilidade de crescimento e de superação de uma condição desfavorável, ou seja, a transformação efetiva (e não somente retórica) da sociedade. É forçoso admitir que há espaços de clausura e enrijecimento seja em torno de interesses econômicos de elites intelectualmente atrasadas que ignoram as mutações do próprio mercado, seja em torno de ideias ditas progressistas, mas fatigadas para as mudanças. De um lado, tecnocratas que representam interesses econômicos imediatos, de outro, epistemocratas que se auto-proclamam representantes da verdade em matéria de “transformação social”. Como a universidade é o espaço plural por excelência, as vozes dessas partes também têm seu lugar, apesar de sua crença unidimensional. Mas elas são insuficientes.
Um exemplo de ideia fatigada no campo dito progressista. Não é surpreendente que aqueles que fazem cruzada contra o Ocidente vejam agora algo de si mesmos nos ataques contra a ciência em nome de uma identidade massiva e imutável que seria preciso proteger custe o que custar. Sabemos que as ideias de academia, ciência e universalidade foram e são atacadas, pois simbolizariam para certas correntes de pensamento militante o colonialismo eurocêntrico. Ao invés de evidenciar como essas expressões, apesar de ter integrado um agenciamento que presumiu etnocentricamente sua identidade como universal e os “outros” como particulares, possuem dimensões que manifestam uma face singular da humanidade, importante mas que não esgota sua irredutível multiplicidade, sendo incontornável, pois, que a universitas expresse essa multiplicidade, há quem as recuse por completo. Todos se lembram dos estudantes da SOAS (School of Oriental and African Studies, de Londres) que defenderam a exclusão em sua formação de filósofos brancos como Platão, Descartes e Kant. O interesse era legítimo: combater o racismo. Mas o meio de fazê-lo não era razoável: excluir pura e simplesmente do currículo ao invés de, como sublinhou o filósofo senegalês S. B. Diagne, “pensar com (quer dizer também, talvez, ‘contra’) Platão, com Descartes ou com Kant” e multiplicar um currículo de ensino de filosofia, ainda delimitado provincianamente na Europa, patriarcalmente circunscrito aos homens filósofos, com o rico material de filosofias da Ásia, da África, da América-Latina, das mulheres filósofas, das filosofias ameríndias, etc. J. Derrida lembrava, no tocante ao seu diagnóstico sobre esse tema: “o europeocentrismo e o anti-europeocentrismo são os sintomas da cultura missionária e colonial”. A polarização infernal e a lógica da lacração em torno de identidades massivas e seus absolutismos produziram o deserto pelo qual atravessamos hoje e uma saída não será criada a não ser com uma “nova suavidade” para o singular, para falar como F. Guattari, com uma sensibilidade para o “diverso” e para o “Todo-Mundo”, retomando essas noções do escritor e filósofo martinicano E. Glissant incontornáveis para pensarmos o devir da humanidade e da vida neste Planeta.
O fato é que as universidades estão longe de ser reduzidas ao polo mais enrijecido em torno de ideias e, em certos casos, de arcaísmos, de certas correntes militantes e não podem ser punidas, sob esse pretexto, por aqueles que parecem desejar represar o rio, impedir compulsivamente toda e qualquer vazão, em resposta ao medo obsessivo de enfrentar as mudanças e sua exigência de criação. Com as punições na forma de sucessivas restrições orçamentárias e de ataques à educação e à universidade, esse país deixará de possuir um espaço de formação profissional e de produção de conhecimento estratégico para o país. Sempre é possível, para alguns, auferir com isso algum benefício, mas o punhado de gente que sorri com essa perseguição sofrerá certamente seus efeitos em um mundo cosmopolita em que o próprio capitalismo cognitivo exige cada vez mais uma formação ampla, transdisciplinar, contínua e inovadora, não sendo possível priorizar escola em detrimento de universidade, ciências exatas e biológicas em detrimento de humanas, ensino técnico em detrimento do teórico.
A sociedade brasileira precisa se mobilizar para cobrar o respeito e o tratamento holístico da educação se desejar um futuro melhor, ainda mais em um momento em que a educação no mundo parece, como diagnosticou a filósofa estadunidense M. Nussbaum, constituir o alvo principal da ofensiva lançada contra a democracia. A sociedade precisa compreender que a defesa das ciências em geral, das humanidades e da filosofia em particular é incontornável para a sustentação da democracia em seu sentido pleno.
Cleber Daniel Lambert da Silva é doutor em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos e pela Universidade de Toulouse Jean Jaurès e professor na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.