Esquerdas europeias em crise: um balanço das eleições de 2017
Enquanto as esquerdas “desaprenderam” a se comunicar com os trabalhadores e com os mais pobres, a extrema-direita e os populistas têm estreitado sua capacidade de diálogo com esses grupos
Todas as análises sobre a conjuntura política europeia colocam em relevo duas conclusões parcialmente complementares: de um lado, o aprofundamento da crise de representatividade traduzida na desconfiança do eleitorado em relação ao establishment; de outro, a multiplicação de alternativas populistas e de extrema-direita.
As disputas eleitorais ocorridas ao longo deste ano fornecem exemplos bastante eloquentes sobre ambos os fenômenos. Contudo, quando o assunto é a perda de credibilidade dos partidos convencionais, nota-se que o quadro é particularmente inquietante para as legendas de esquerda. Após sofrerem derrotas na França, na Alemanha, na Holanda e na República Tcheca, 2017 se encerra com somente 7 dos 28 países da União Europeia (UE) sendo governados pelas esquerdas tradicionais.
França
A impopularidade recorde do ex-presidente socialista François Hollande tornava remota sua reeleição. Por essa razão, o Partido Socialista (PS) organizou disputas primárias, cujo vencedor foi Benoît Hamon. Apresentando um programa mais à esquerda do que o de seus correligionários, o candidato contou com o apoio de intelectuais importantes, dentre os quais Thomas Piketty e Edgar Morin. Entretanto, seu posicionamento gerou conflitos com seus pares, levando parte dos membros do PS mais inclinados à direita a apoiar o centrista Emmanuel Macron, abandonando Hamon em plena campanha presidencial.
Ao lançar mão de propostas econômicas defendidas por Piketty, Hamon poderia inspirar a modernização das esquerdas europeias em crise. Além da renda universal, apresentada como “a política social do século XXI”, o candidato propunha a criação de um imposto sobre as transações financeiras dentro da zona do euro, visando a assegurar uma espécie de refundação social da União Europeia. Outras medidas incluíam a taxação dos superlucros dos bancos franceses, a instrumentalização do Banco Público de Investimentos para injetar capitais em pequenas e médias empresas e o combate ao desemprego mediante o incremento dos investimentos governamentais em áreas estratégicas.[1]
No entanto, Hamon sofreu uma derrota acachapante, terminando a disputa em quinto lugar, com pouco mais de 6% dos votos. Longe de ser uma tragédia pessoal, o mesmo revés atingiu em cheio o PS, que vivencia verdadeiro colapso. Atualmente, os socialistas ocupam apenas 31 assentos na Assembleia Nacional, enquanto na última legislatura somavam 284. A situação é grave a ponto de especialistas apostarem no desaparecimento do partido.
Alemanha
O centenário Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) é uma das agremiações partidárias mais longevas e tradicionais da Europa, mas nos últimos setenta anos conseguiu eleger apenas três chanceleres. Contudo, sua bancada sempre exerceu um importante contrapeso aos conservadores de centro-direita, levantando temas da agenda social para serem debatidos no parlamento.
Neste ano, a perda de capital político do SPD se tornou evidente: foi o pior desempenho do partido desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ao obter 20% dos votos, a sigla não só mostrou-se incapaz de viabilizar uma oposição de esquerda, mas acabou optando por barganhar, pela terceira vez, seu ingresso como coadjuvante na chamada Grande Coalisão. A coligação ratificaria a liderança dos democratas-cristãos de Angela Merkel, mas ao menos evitaria um novo jogo eleitoral em 2018.
As negociações entre os dois grupos políticos ocorrerá ao longo de dezembro. O acordo envolve dois objetivos basilares: garantir que o eixo franco-alemão continue sendo o alicerce estável da União Europeia e conter o avanço da Alternativa para a Alemanha (AfD). Essa é a primeira vez, desde a derrocada do Terceiro Reich, que a extrema-direita coloca os pés no Bundestag, elegendo 92 deputados. A cúpula social-democrata teme que a convocação de novas eleições possa ter um duplo efeito negativo: fortalecer ainda mais os radicais da AfD em detrimento do SPD.
Holanda
O movimento nacional-populista de Geert Wilders foi contido graças à virada de última hora do Partido Popular Liberal-Democrata (VVD), de centro-direita. Ainda assim, a derrota de Wilders precisa ser relativizada. De um lado, seu partido continua sendo a segunda força na Câmara Baixa e, de outro, forçou o VVD a realizar algumas concessões ao discurso neoconservador para angariar parte do eleitorado inclinado a votar pelas bandeiras da extrema-direita.
Por sua vez, a esquerda tradicional foi a grande derrotada no embate eleitoral holandês. O Partido Trabalhista recebeu parcos 5,7% dos votos, registrando o pior resultado da sua história. Atualmente, os trabalhistas contam com somente nove deputados na Câmara Baixa, reforçando a tendência de queda que vinha desde as eleições para o Senado e para o Parlamento Europeu.
República Tcheca
O Partido Social-Democrata Tcheco (ČSSD) foi igualmente massacrado nas urnas, transitando da posição de primeira força política para o pior desempenho eleitoral após a abertura democrática dos anos 1990. Na Câmara dos Deputados, sua representação declinou para apenas quinze cadeiras.
O mais curioso é que o país não passa por problemas econômicos. O crescimento do PIB no último ano (2,4%) foi maior do que a média da UE e o índice de desemprego é muito baixo (3,5%), motivo pelo qual as lideranças do ČSSD encontram-se perplexas diante do quadro de rejeição popular contra o antigo governo de esquerda.
O novo primeiro-ministro Andrej Babiš – também conhecido como o “Trump tcheco” – lidera o partido populista de direita Ação dos Cidadãos Descontentes. Seu êxito eleitoral pode ser parcialmente explicado pelo desejo dos cidadãos de tentar anular o processo de adesão do país ao euro, evitando assim o aumento da tutela de Bruxelas. Por outro lado, o caso da República Tcheca contribui para jogar ainda mais luz sobre o peso relativo das variáveis de natureza subjetiva, tais como o clima de desconfiança em relação à classe política tradicional e a crescente filiação ao discurso xenofóbico.
As razões do declínio
São muitas as razões que explicam a decadência das esquerdas na União Europeia. Uma abordagem centrada no nível de análise sistêmico destacaria a impotência da política ante os efeitos da aceleração da globalização e da capacidade de mobilidade do capital.[2] Enquanto este último é dinâmico, poderoso, veloz e sem fronteiras, a política continua constrangida por limites territoriais, pela prática do lobby e pela imposição de reformas econômicas derivadas da doutrina liberal.
Um enfoque de natureza conjuntural poderia indicar a crise de 2008 como referencial cronológico. Na zona do euro, a transferência de soberania para órgãos supranacionais limitou a autonomia nacional para elaborar agendas econômicas alternativas no enfrentamento aos efeitos da crise. Imposto por tecnocratas, o receituário de viés liberalizante do “consenso de Bruxelas” acelerou o desmonte do Estado de bem-estar social, elevando os índices de desigualdade, a sensação de insegurança quanto ao futuro e a redução do poder de compra. Entre 2010 e 2014, por exemplo, os salários tiveram uma queda real em 18 dos 28 estados da UE.[3]
Outras explicações podem contemplar variáveis localizadas fora da esfera econômica. A corrupção, a pós-verdade, o estresse migratório e o espectro do terrorismo têm impactado o imaginário europeu, impulsionando a recuperação do discurso nacionalista e o desgaste da classe política convencional, considerada incapaz de lidar com os problemas contemporâneos.
Neste contexto, as esquerdas tradicionais encontram muita dificuldade para apresentar um programa que reafirme seus compromissos primordiais de redução das desigualdades e de manutenção de um regime de proteção e inclusão social. Por essa razão, a perda de credibilidade – que atinge o establishment político como um todo – acaba provocando maiores danos naquelas forças de esquerda.
Desde a concepção da ideia de “terceira via”, popularizada através do livro homônimo de Anthony Giddens, as esquerdas tentam se refundar. Não obstante, no que tange à práxis econômica, as propostas pouco se diferem daquelas de seus rivais de centro-direita. Ainda que as referências à terceira via tenham desaparecido, a restrição do campo de ação continua em vigência. As reformas trabalhistas do chanceler Gerhard Schröder (SPD) e do presidente François Hollande (PS) são dois casos que exemplificam essa vinculação a um “liberalismo envergonhado”.
Diante dos desafios da paralisia programática no campo econômico, alguns partidos de esquerda buscaram ampliar seu leque de ação ao defender bandeiras classificadas como progressistas, a exemplo do ambientalismo ou do aprofundamento das liberdades civis, aproximando-se de movimentos identitários associados às minorias.
Enquanto as esquerdas “desaprenderam” a se comunicar com os trabalhadores e com os mais pobres, a extrema-direita e os populistas têm estreitado sua capacidade de diálogo com esses grupos. Na França, por exemplo, quase 40% dos operários votaram por Marine le Pen no primeiro turno.[4]
É verdade que a retórica dessas variantes de direita recai no clássico cardápio de respostas fáceis – nacionalismo, protecionismo e/ou xenofobia – para resolver problemas extremamente complexos. Contudo, seu êxito eleitoral recente é inquestionável, ocupando lacunas deixadas pelas esquerdas. Estas parecem incapazes de se reinventar. Dentro da União Europeia, um caso que poderia inspirar alguma possibilidade plausível de renovação foi a candidatura de Hamon, que incluía a proposta de Piketty para a reestruturação democrática e social da zona do euro.[5] No entanto, na hora de escolher sua opção de esquerda, os franceses preferiram abraçar o populismo de Jean-Luc Mélenchon.
Tendo em vista que não existe vácuo na política, o fortalecimento das novas direitas pode ser parcialmente interpretado como um epifenômeno da perda de credibilidade dos partidos de esquerda, conforme demonstram os resultados eleitorais de 2017. É inquestionável que os desafios pela frente não são nada fáceis, mas os dois objetivos se entrecruzam: é necessário refundar as esquerdas democráticas para conter o crescimento da extrema-direita e do populismo.
*Leandro Gavião é doutorando em História Política na Uerj, com estágio doutoral na Université Sorbonne Nouvelle. É professor do Curso Clio/Damásio e coordenador do Núcleo de Estudos Internacionais Brasil-Argentina (Neiba-Uerj).
[1] Benoît Hamon. Mon projet pour «Faire Battre le Cœur de la France». Paris: Parti Socialiste, 2017.
[2] Apesar dos diferentes referenciais teóricos, é o que afirmam autores como Jean-Marie Guéhenno, Jacques Rancière, István Mészáros e Zygmunt Bauman.
[3] Hervé Nathan. Terra nova pointe les dégâts du «consensus de Bruxelles». Marianne, 13 maio 2014.
[4] Claire Gaveau. Présidentielle 2017: ouvriers, chômeurs, jeunes… Qui a voté quoi?. RTL, 25abr. 2017.
[5] Thomas Piketty. Changer l’Europe, maintenant. Le Monde – le blog de Thomas Piketty, 22 dez. 2015.