O Estado havia transformado os ciclistas em inimigos
“Quem ousaria ser contrário a um grupo de pessoas que pratica atividade física e promove a alegria e a saúde? Quem ousaria não apoiar um passeio que, mesmo sem organizadores, mobilizou participantes de vários bairros da capital e de outras cidades do Estado, simplesmente por propagar a ideia de chegar até a praia usando a bicicleta?” Confira relato de Aline Os, ciclista e gestora do projeto Selim Cultural, sobre a Tradicional Descida a Santos realizada no dia 10 de dezembro de 2017
Chego à estação Pinheiros pouco depois das 6 horas da manhã. No trem, as bicicletas se juntam a muitas outras em direção à Estação Grajaú. Concluído o sobe e desce da Avenida Belmira Marin, partimos para as travessias de balsa na península do Bororé, bairro que, ainda que próximo a uma das regiões mais violentas de São Paulo, transborda calma e frescor em toda sua extensão.
No trajeto, relembro das vezes que já tinha estado no Bororé: a primeira, em uma curta visita interrompida por uma tempestade típica da região; a segunda, em minha primeira vez percorrendo a Rota Márcia Prado, acessando a Estrada de Manutenção – um caminho com muito verde de mata nativa, de onde se percebe trechos de uma Imigrantes que “flutua” em meio a formações rochosas e de onde se avista a Baixada Santista de forma privilegiada. A proximidade com a natureza deixa a experiência muito mais intensa. Não é à toa que, ainda que não oficializado e com um pequeno trecho de desmoronamento, ciclistas insistam em passar por essa estrada como parte da rota para chegar ao litoral.
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Ao acessar a Rodovia dos Imigrantes era possível perceber um sem fim de ciclistas que já ocupavam o acostamento. Lembrei-me de quando, na infância, viajava pela estrada e observei um grupo de ciclistas competindo. Uma lembrança agradável percorreu minha memória e sorri quando uma garota acenou para o grupo de ciclistas de dentro do carro. Muitos desses ciclistas estavam em sua primeira participação da “Tradicional Descida para a Praia”, então pairava no ar um misto de euforia, alegria, curiosidade e companheirismo.
Grupos de ciclistas com mulheres, homens, crianças, adolescentes, coloridos, básicos, com bicicletas simples ou não, mas todos com a certeza de que participavam de uma festa linda! Afinal, quem ousaria ser contrário a um grupo de pessoas que pratica atividade física e promove a alegria e a saúde? Quem ousaria não apoiar um passeio que, mesmo sem organizadores, mobilizou participantes de vários bairros da capital e de outras cidades do Estado, simplesmente por propagar a ideia de chegar até a praia usando a bicicleta?
Ao chegar à alça de acesso do trecho conhecido como Interligação Planalto, os ciclistas foram redirecionados para a via que leva para a Rodovia Anchieta. Foi possível pedalar esse trecho quase sem carros passando pelo grupo, de forma que muitos ciclistas ocuparam as faixas de rolamento que estavam livres. A verdade é que todos acreditavam a essa altura que teríamos o apoio da Ecovias e da Polícia Rodoviária para realizar a descida, pois os comentários entre os participantes falavam de um possível agrupamento dos ciclistas logo mais adiante. A formação do comboio seria uma forma inteligente de controlar o tempo que ocuparíamos a via e minimizar riscos durante a descida.
Na Anchieta uma grande massa de ciclistas já estava a algum tempo aguardando a liberação da pista. Caminhando em meio àquela multidão, amigos se encontravam, compartilhavam lanches e relatos, ainda com a euforia e alegria de ver a festa de tanta gente de bicicleta, embora ignorasse os dizeres dos luminosos na rodovia que alertavam sobre um impedimento judicial para a descida.
Todos estavam ali de forma pacífica e não pretendiam desistir ou retornar para São Paulo antes de chegar ao litoral. Foi quando um dos luminosos passou a indicar: “Ciclistas, evitem transtornos”. Em segundos aconteceram as primeiras explosões: bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha eram lançadas contra os civis. Não haveria mais possibilidade de negociação.
Nesse momento os primeiros ciclistas invadiram a pista de subida, gritando: “Pela contramão!!!! Pela contramão!!!”. O grupo começou a avançar, ainda que lentamente, em direção ao acesso. Muitos ciclistas fizeram a mesma manobra enquanto se perguntavam se era seguro. Aos gritos de “não tem arrego”, “ocupar e resistir”, “vamos invadir a contramão”, todos compreendiam que o clima não era mais amistoso e que o Estado havia transformado em inimigos todos os ciclistas que ali estavam.
Houve tempo apenas de cobrir o rosto com algum tecido e passar entre os carros, colocando-se em risco na descida pela mão contrária. Em segundos o choque iria fechar aquele acesso e atacar com balas de borracha, gás e jatos de água quem ainda estivesse por perto.
Quem invadiu a pista contrária e pedalou entre os carros pôde perceber ciclistas agitados, estressados, ameaçados em seu direito de ir e vir. Em 1 minuto quase tudo tinha ficado para trás, inclusive a massa que não tinha conseguido descer. O que era para ser um domingo agradável de pedal havia se tornado um dia angustiante para todos.
Durante os primeiros cinco ou dez minutos foi surpreendente perceber que os carros e carretas que subiam reduziram suas velocidades e passaram a ocupar uma única via, deixando a outra livre para a descida dos ciclistas. O que parecia uma ação suicida acabou assim que a maioria acessou a pista de descida vazia uma vez que estava bloqueada logo mais acima. Os momentos seguintes deveriam ser de máximo proveito, ainda que alguns tenham confessado que imaginavam que a cada curva feita encontrariam um bloqueio e as bombas do choque, o que nunca aconteceu.
Pneus furados foram consertados com a ajuda de novos amigos, um cadeirante desceu escoltado por outros tantos ciclistas, uma criança, entre várias, chegou ao litoral acompanhada dos pais em sua bicicleta; uma ação que poderia ter sido incentivada pelo poder público e promovida pela concessionária, não coibida com balas e bombas.
Nunca saberemos quem realmente aproveitou aquela descida. A adrenalina da fuga do confronto se juntou àquela liberada nos trechos de alta velocidade. A euforia no final da serra era tamanha que muitos não se deram conta de que nem todos estavam ali, já que ciclistas não paravam de chegar, de passar, de pedalar.
As notícias do que teria acontecido naquele dia só chegariam algumas horas depois, dando conta dos tantos que foram impedidos de concluir o trajeto, voltando para casa pela contramão da Imigrantes ou insistindo na descida acessando a Estrada de Manutenção por trechos secundários, de lama e mata fechada. A ação desastrosa da Polícia Militar orquestrada pelo governo do estado com apoio de um juiz, que aceitou defender uma empresa que se entende proprietária de um espaço público quando deveria apenas administrá-lo, ficará na memória dos milhares de ciclistas que lutam para que uma rota cicloturística segura entre a capital e o litoral, a Rota Márcia Prado, seja concluída. Até que isto aconteça, muitos continuarão exercendo o direito de pedalar pelas vias existentes, ainda que os acessos sejam restringidos.
Naquela tarde de domingo, a cidade de Santos aguardava todos os que furaram os bloqueios na intenção de usufruir de um banho de mar depois de horas sob sol forte. Alguns vídeos dos ciclistas que concluíram a descida contagiavam com sua enorme alegria, que era interrompida quando chegavam mensagens dos amigos que não tiveram a mesma sorte. Para muitos o gosto do sal do mar foi sobreposto pelo amargo de uma decisão judicial falha, que só atendeu ao capital e se esqueceu de atentar para as demandas da sociedade civil.
Ano que vem a descida vai ser maior.
*Aline Os é ciclista e gestora do projeto Selim Cultural.
As ilustrações que compõem este material sobre a Tradicional Descida para Santos fazem parte do livro CARtoons: Atropelando a ditadura do automóvel, de Andy Singer (Autonomia Literária & Avocado Edições, 2018). Mais informações em: http://autonomialiteraria.com.br/loja/quadrinhos/cartoons-atropelando-a-ditadura-do-automovel/.