A operação de repressão à descida foi impecável
“Muitas das pessoas não haviam se preparado para uma viagem de mais de 80 km com água, comida e ânimo. Com a volta em subida e debaixo de um sol de meio dia, pude presenciar diversas pessoas deitadas nas sombras curtas de pontes e passarelas e uma garota caindo por exaustão”. Veja relato de André Baceti, empresário e ciclista urbano há dez anos em São Paulo, sobre a Tradicional Descida a Santos realizada no dia 10 de dezembro de 2017
A eficiência da operação de repressão à descida de Santos foi impecável. Lembro de comentar horas depois, embaixo do sol de meio dia voltando para São Paulo, como seria possível um pequeno contingente de policiais conter uma massa tão grande de ciclistas? Além disso, uma massa de carros (30 quilômetros dizem) também foi detida pelo contingente da Polícia Militar.
Fomos conduzidos para uma emboscada, isso foi claro, conduzidos pela esperança de estarmos certos, na maior possibilidade de estarmos errados. A contradição entre a abertura da Rodovia dos Imigrantes para os ciclistas após o pedágio e as placas de sinalização que pediam aos ciclistas que evitassem transtornos de acordo com ordens judiciais nos deu um sentimento de vitória.
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Passamos por policiais no caminho, nenhum aviso foi dado por eles. Pedalamos por mais de 50 quilômetros sem problemas, com pistas abertas e um sentimento de que chegaríamos ao nosso destino. Diversas pessoas ao nosso redor claramente não eram ciclistas frequentes. Para todos, o passeio na tradicional descida para Santos seria uma vitória, uma história para contar ao chegar no trabalho na segunda-feira, um evento familiar, de amigos, namorados, estreitando laços. Era isso que passava entre todos nós: chegar à Santos. Parar em algum restaurante, comer um bom prato com bicicletas estacionadas ao redor.
Ao chegar ao posto policial na Anchieta, local escolhido para o bloqueio policial, ainda carregávamos essa esperança. O local fora escolhido não por acaso, militarmente favorável para a defesa da posição. Duas pistas cercadas por uma mata fechada em vale com o posto em posição acima do nível da rodovia, local perfeito mesmo com um contingente policial reduzido. Ficamos aguardando por mais de uma hora o desenrolar da situação, várias informações nos foram passadas: a possibilidade de uma assinatura de um juiz que estava sendo buscada de carro por alguma das pessoas que participavam do evento; a esperança de que a polícia entenderia que o evento legítimo deveria continuar; rotas alternativas que em pouco tempo foram também foram fechadas.
Mas o ponto final de todas essas indagações chegou através do batalhão de choque. Naquele momento pude entender porque o governo do estado de São Paulo gastou R$ 30 milhões na compra de seis blindados chamados de Guardião. No Rio de Janeiro, o mesmo equipamento é conhecido como Caveirão. Todos nós apressamos a retirada, escutando ao fundo bombas de gás estourando, escoltados por carros da PM que em sua função de vaqueiros nos conduziram de volta à Rodovia dos Imigrantes para São Paulo, fechando na transversal a possibilidade de voltar à estrada no sentido Santos.
Após a condução de volta à Imigrantes sentido São Paulo, não existiam mais polícias, a rodovia não estava mais aberta para os ciclistas. Muitas das pessoas não haviam se preparado para uma viagem de mais de 80 km com água, comida e ânimo. Com a volta em subida e debaixo de um sol de meio dia, pude presenciar diversas pessoas deitadas nas sombras curtas de pontes e passarelas e uma garota caindo por exaustão. O pior era o ânimo, fomos vencidos em uma batalha que não lutamos.
O que mais me impressiona é a eficiência de todo o processo, fomos tratados como um número, direcionados como um gado e bloqueados por um exército. Não houve apreço por cada um dos integrantes, as individualidades foram suprimidas. Só assim atos bárbaros são executados: a supressão da individualidade dos executados permite atitudes arbitrárias sem culpa e a supressão das individualidades dos executores permite atitudes arbitrárias sem consequências.
As concessionárias das rodovias são obrigadas a zelar pela segurança de todos os usuários: operações neblina, descida/subida, comboios, são todas operações que permitem a segurança de seus usuários. Resta saber por que uma empresa que apresenta distribuição de dividendos de R$ 32.188.613,87 (dados de 2017) não é capaz de assegurar a segurança de 4 mil pessoas em um fim de semana de baixo fluxo em um horário de pouco movimento.
*André Baceti é empresário e ciclista urbano há dez anos em São Paulo.
As ilustrações que compõem este material sobre a Tradicional Descida para Santos fazem parte do livro CARtoons: Atropelando a ditadura do automóvel, de Andy Singer (Autonomia Literária & Avocado Edições, 2018). Mais informações em: http://autonomialiteraria.com.br/loja/quadrinhos/cartoons-atropelando-a-ditadura-do-automovel/.