Desde 2008, a “Tradicional descida (de São Paulo) para Santos” de bicicleta é realizada anualmente por milhares de paulistanos e pessoas de outras cidades, estados e países. Inicialmente chamada de Bicicletada Interplanetária, na sua 10ª edição ela reuniu mais de 4 mil ciclistas que pedalaram rumo ao litoral.
Conhecida como um passeio tranquilo no que se refere ao preparo físico e gastos financeiros, a cada ano fica mais conhecido, tendo sido organizado alguns anos pela CicloBR, chegando a ter mais de 10 mil participantes. Atualmente, milhares pessoas decidem participar graças à divulgação e realização autônoma, como toda bicicletada. De forma tranquila e com uma bicicleta comum, em menos de cinco horas de pedal é possível chegar ao litoral, saindo do cinza do asfalto e cruzando a Mata Atlântica até o oceano.
Para mim, com a antiga vontade de fazer esse trajeto, a oportunidade de descer com o grande grupo surgiu cinco dias antes, quando o André Baceti, empresário e ciclista urbano há dez anos em São Paulo, me contou que iria ter a descida no domingo. Fui buscar o evento e já tinham 10 mil interessados e quase 4 mil pessoas confirmadas no facebook.
No dia 10 de dezembro, junto com a Aline Os, ciclista e gestora do projeto Selim Cultural, vivemos a cidade de uma forma inacreditável, cruzando ela no sentido sul, saíndo do Grajaú rumo à Ilha do Bororé, que é uma península com nome de ilha, na qual é possível chegar de balsa, cruzando a represa Billings, e conhecendo um pouco da área rural da maior cidade da América do Sul. O André optou por outro caminho, saiu pela Avenida Paulista. Nos encontramos algumas horas depois, quando havia o bloqueio da estrada pela polícia e todos os ciclistas vindo da Paulista, ABC e Grajaú se aglomeraram formando uma enorme massa na Anchieta.
Apesar de termos a mesma vontade de fazer aquele passeio quando iniciamos o dia, logo após fomos separados pela tropa de choque. Eu acabei me desencontrando da Aline e de uma parte do nosso grupo, e o André foi impedido de chegar até Santos. Aos milhares esses relatos foram se multiplicando. Histórias bem sucedidas, como a minha e da Aline, de gente que com sorte chegou ao litoral. Relatos de histórias como a do André, que teve que voltar sob a pressão e o jato de água do “caveirão”. E pessoas que, impedidas de descer pela rodovia, mesmo sem estarem preparados, pegaram a estrada da manutenção com muita lama e, gastando mais de 10 horas, chegaram ao litoral, como no vídeo a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=f6MWEO1g4Vg&feature=youtu.be.
Confira a seguir os relatos de cada um:
“Por um momento, a estrada foi das pessoas”, por Carolina Bernardes
“O Estado havia transformado os ciclistas em inimigos”, por Aline Os
“A operação de repressão à descida foi impecável”, por André Baceti
Poderia ser diferente?
A resposta é sim, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, que prevê algumas responsabilidades das rodovias tanto para o Estado como para as concessionárias. Segundo o Artigo 21. II, entre essas responsabilidades está a de “planejar, projetar, regulamentar e operar o trânsito de veículos de pedestres e de animais, e promover o desenvolvimento da circulação e segurança de ciclistas”.
A concessionária Ecovias, responsável pelo sistema Imigrantes-Anchieta, se omite desde o recebimento da concessão em 1998 – e que vale até 2024 –, nunca respeitando o Código Nacional de Trânsito que a obriga a oferecer opção para diversos modais, como pedestre e ciclistas.
Apesar da própria Ecovias emitir uma nota dizendo que entende que a segurança dos ciclistas está comprometida na rodovia, a única alternativa que eles encontraram é sempre tentar proibir a descida e não oferecer alternativas, dificultando através da burocracia o exercício por parte das pessoas de seus direitos. Em quase vinte anos de concessão e dez edições da descida, sistematicamente a Ecovias, além de não tomar nenhuma providência para melhor atender aos cidadãos, ciclistas e outros modais, usuários das estradas, passou a investir na luta jurídica, entrando inclusive em mais de uma comarca, para levar a cabo a proibição do encontro.
Além disso, existe a proposta da Rota Marcia Prado. Um estrada alternativa, chamada “estrada de manutenção”, que poderia ser utilizada como roteiro de cicloturismo, trilhas para caminhadas, com paisagens ainda mais bonitas, regada de cachoeiras. Ela precisa estar bem cuidada. Contudo, no momento, um de seus trechos apresenta um grande deslizamento por descuido e falta de interesse do Estado e da concessionária.
*Carolina Bernardes é cicloativista e gestora de projetos sociais.
As ilustrações que compõem este material sobre a Tradicional Descida para Santos fazem parte do livro CARtoons: Atropelando a ditadura do automóvel, de Andy Singer (Autonomia Literária & Avocado Edições, 2018). Mais informações em: http://autonomialiteraria.com.br/loja/quadrinhos/cartoons-atropelando-a-ditadura-do-automovel/.