Estratégia para uma reconquista
A volta dos debates sobre crescimento e imigração reforça a ideia de que a ordem neoliberal retomou o ritmo de cruzeiro. A crise não parece tê-la abalado permanentemente. Além de esperar que revoltas espontâneas provoquem uma resposta, quais prioridades e qual método podemos imaginar para mudar a realidade?Serge Halimi
“O país exige experimentações audaciosas e sustentadas.
O bom senso é escolher um método e tentá-lo. Se ele falhar, admita o erro francamente e tente outra coisa. Mas, acima de tudo, tente alguma coisa!”
Franklin Roosevelt, 22 de maio de 1932.
Cinco anos se passaram desde a falência do Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008. A legitimidade do capitalismo como modo de organização da sociedade foi atingida; suas promessas de prosperidade, de mobilidade social e de democracia não são mais uma ilusão. Mas a grande mudança não aconteceu. Os questionamentos do sistema ocorreram sem abalá-lo. O preço de seus fracassos acabou mesmo sendo pago pela anulação de uma parte das conquistas sociais que lhe tinham sido arrancadas. “Os fundamentalistas do mercado se enganaram em quase tudo e ainda assim dominam a cena política mais completamente do que nunca”, constatou o economista norte-americano Paul Krugman já há quase três anos.1 Em suma, o sistema se mantém, mesmo no piloto automático. Para seus adversários, isso não é um elogio. O que aconteceu? E o que fazer?
A esquerda anticapitalista rejeita a ideia de uma fatalidade econômica, pois entende que vontades políticas a organizam. Ela deveria ter concluído disso que a crise financeira de 2007-2008 não abriria uma estrada real para seus projetos. O precedente dos anos 1930 já sugeria: em função das circunstâncias nacionais, alianças sociais e estratégias políticas, a mesma crise econômica pode levar a respostas tão diversas como a chegada de Hitler ao poder na Alemanha, o New Deal nos Estados Unidos, a Frente Popular na França e a não muita coisa no Reino Unido. Bem mais tarde, com poucos meses de intervalo, Ronald Reagan teve acesso à Casa Branca e François Mitterrand ao Palácio do Eliseu; Nicolas Sarkozy foi derrotado na França, Barack Obama foi reeleito nos Estados Unidos. O que equivale a dizer que a sorte, o talento e a estratégia política não são variáveis acessórias que suplantariam a sociologia de um país ou o estado de sua economia.
A última vitória dos neoliberais deve muito ao socorro da cavalaria dos países emergentes. Porque o “sacolejo do mundo” foi também a entrada na dança capitalista dos grandes destacamentos de produtores e consumidores chineses, indianos e brasileiros, os quais serviram de exército de reserva para o sistema no momento em que ele parecia agonizar. Apenas na última década, a parcela da produção mundial dos principais países emergentes aumentou de 38% para 50%. A nova fábrica do mundo também se tornou um de seus principais mercados: em 2009, a Alemanha exportou mais para a China do que para os Estados Unidos.
A existência das “burguesias nacionais” – e a aplicação de soluções nacionais – colide, portanto, com o fato de que as classes dominantes em todo o mundo estão agora interligadas. A menos que se permaneça mentalmente na calmaria do anti-imperialismo dos anos 1960, como esperar ainda, por exemplo, que uma resolução progressista dos problemas atuais possa ter como artífices elites políticas chinesas, russas e indianas tão especuladoras e venais como seus homólogos ocidentais?
No entanto, o refluxo não foi universal. “A América Latina”, destacava há três anos o sociólogo Immanuel Wallerstein, “foi a success storyda esquerda mundial na primeira década deste século. Isso é verdade por duas razões. A primeira, mais perceptível, porque os partidos de esquerda ou de centro-esquerda ganharam uma sucessão impressionante de eleições. Em seguida, porque os governos latino-americanos assumiram pela primeira vez coletivamente seus distanciamentos em relação aos Estados Unidos. A América Latina tornou-se uma força geopolítica relativamente autônoma.”2
No entanto, a integração regional, que configura para os mais audaciosos o “socialismo do século XXI”, pavimenta o caminho, para os outros, de um dos maiores mercados do mundo.3 Ainda assim, o jogo continua a ser mais aberto no antigo quintal dos Estados Unidos do que dentro do ectoplasma europeu. E, se a América Latina conheceu cinco tentativas de golpe de Estado em menos de dez anos (Venezuela, Bolívia, Honduras, Equador e Paraguai), é talvez porque as mudanças políticas impulsionadas por forças de esquerda realmente ameaçaram ali a ordem social, transformando as condições de existência da população, o que demonstra que existe mesmo uma alternativa, que nem tudo é impossível, mas que para criar as condições para o sucesso é preciso iniciar as reformas estruturais, econômicas e políticas, as quais remobilizam as camadas populares que a falta de perspectiva tinha trancado na apatia, no misticismo ou no desconhecimento. É talvez também dessa forma que se combate a extrema direita.
Como suprimir a ordem mercantil
Certo. Mudanças estruturais, mas quais? Os neoliberais plantaram tão bem a ideia de que “não havia alternativa” que convenceram seus adversários a tal ponto de estes às vezes esquecerem suas próprias propostas… Vamos recordar algumas delas, tendo em mente que, por mais ambiciosas que pareçam hoje, o mais importante é resgatá-las sem demora, sem nunca esquecer que um eventual caráter rude atribuído a elas deve ser relacionado à violência da ordem social que elas querem desfazer.
Essa ordem… como contê-la e depois suprimi-la? A extensão da parcela do setor não comercial, e da gratuidade também, responderia com um só golpe a esse duplo objetivo. O economista André Orléan lembra que, no século XVI, “a terra não era um bem transacionável, mas sim um bem coletivo e não negociável, o que explica o vigor da resistência contra a lei sobre o fechamento das pastagens comunais”. Ele acrescenta: “O mesmo se dá hoje com a mercantilização da vida. Um braço ou sangue não se apresentam para nós como mercadorias, mas o que vai acontecer amanhã?”.4
Para fazer frente a essa ofensiva, talvez fosse necessário definir democraticamente algumas necessidades básicas (moradia, alimentação, cultura, comunicações, transportes), fazer que fossem financiadas pela comunidade e oferecê-las de modo a satisfazer a todos. Ou, como recomendado pelo sociólogo Alain Accardo, “estender rápida e continuamente o serviço público até a satisfação ‘gratuita’ de todas as necessidades fundamentais na medida de sua evolução histórica, o que só é economicamente concebível por meio do retorno para a comunidade de todos os recursos e de todas as riquezas que servem ao trabalho social e que são produzidas pelos esforços de todos”.5 Assim, em vez de tornar solvente a demanda aumentando fortemente os salários, o caso seria socializar a oferta e garantir para cada um novas prestações de serviços em espécie.
Mas como evitar a passagem de uma tirania dos mercados para um absolutismo estatal? Comecemos, diz o sociólogo Bernard Friot, por universalizar as conquistas populares que aos nossos olhos funcionam, como a previdência social, contra a qual lutam ferozmente os governos de todos os matizes. Esse mecanismo emancipadorque, graças ao princípio da contribuição, socializa uma parte importante da riqueza financia as pensões dos aposentados, as indenizações dos doentes, os benefícios para os desempregados. Diferentemente do imposto arrecadado e gasto pelo Estado, a contribuição não é objeto de acumulação e, em seu início, foi gerida principalmente pelos próprios trabalhadores. Por que não seguir adiante?6
Deliberadamente ofensivo, tal programa apresentaria uma tripla vantagem. Política: embora passível de reunir uma coalizão social muito ampla, dela não poderiam se apropriar os liberais ou a extrema direita. Ecológica: evita um novo impulso keynesiano que, ao estender o modelo existente, resultaria em “uma soma de dinheiro […] injetada nas contas bancárias para ser redirecionada para o mercado consumidor pela política publicitária”.7 Ele também enfatiza as necessidades que não serão atendidas pela produção de bens em países de baixos salários, seguida por seu transporte em contêineres de um extremo ao outro do planeta. Finalmente, uma vantagem democrática: a definição das prioridades coletivas (o que se tornará gratuito, o que não se tornará) não seria mais reservada a eleitos, a acionistas ou a mandarins intelectuais provenientes dos mesmos meios sociais.
Uma abordagem desse tipo é urgente. No estado atual da relação de forças sociais global, a robotização acelerada do emprego industrial (mas também dos serviços) pode de fato criar tanto uma nova renda para o capital (queda do “custo do trabalho”) como um desemprego em massa cada vez menos indenizado. A Amazon ou os sites de busca demonstram todos os dias que centenas de milhões de clientes confiam a robôs a escolha dos lugares onde vão passear, de suas viagens, de suas leituras, da música que ouvem. Livrarias, jornais e agências de viagens já estão pagando o preço. “As dez maiores empresas da internet, como Google, Facebook ou Amazon”, ressalta Dominic Barton, diretor da McKinsey, “criaram quase 200 mil postos de trabalho.” Mas ganharam “centenas de bilhões de dólares de capitalização na bolsa”.8
Para resolver o problema do desemprego, a classe dominante se arrisca por consequência a chegar ao cenário temido pelo filósofo André Gorz, a usurpação contínua dos domínios ainda regidos pela gratuidade e pela doação: “Onde vai parar a transformação de todas as atividades em atividades passíveis de pagamento, tendo a remuneração como razão e o rendimento máximo como finalidade? Por quanto tempo poderão resistir às barreiras muito frágeis que ainda impedem a profissionalização da maternidade e da paternidade, a procriação comercial de embriões, a venda de crianças, o tráfico de órgãos?”.9
A questão da dívida tem a ver tanto com aquela da gratuidade quanto com aquilo que revela seu pano de fundo político e social. Nada mais comum na história que um Estado preso pelo pescoço por seus credores que, de um jeito ou de outro, se desvencilha do aperto destes para não infligir a seu povo uma austeridade perpétua. Foi o que fez a República Soviética ao se recusar a honrar empréstimos russos tomados pelo czar. Foi o que fez Raymond Poincaré, que salvou o franco… desvalorizando-o em 80%, amputando em igual medida o encargo financeiro da França, que foi pago em moeda depreciada. Foi também o que fizeram os Estados Unidos e o Reino Unido do pós-guerra, que, embora não tivessem um plano de austeridade, ao deixarem subir a inflação, dividiram quase por dois o peso da dívida pública.10
Depois, como a dominação do monetarismo obriga, a falência tornou-se sacrilégio, a inflação passou a ser perseguida (inclusive quando sua taxa tateia o zero) e a desvalorização foi proibida. Mas, embora os credores tenham sido liberados do risco de calote, eles continuam a reivindicar um “bônus de crédito”. “Em uma situação de superendividamento histórico”, observa, no entanto, o economista Frédéric Lordon, “não há escolha entre o ajustamento estrutural ao serviço dos credores e uma forma ou outra de ruína deles”.11 A anulação de uma parte da dívida resultaria em privar os investidores e financiadores, independentemente de sua nacionalidade, depois de lhes ter concedido tudo.
O garrote imposto à comunidade vai se soltar mais rápido à medida que esta última recuperar as receitas tributárias que trinta anos de neoliberalismo dilapidaram. Não apenas quando se questionou a progressividade do imposto e se acomodou à extensão da fraude, mas também quando se criou um sistema tentacular em que a metade do comércio internacional de bens e serviços passa por paraísos fiscais. Os beneficiários não se resumem aos oligarcas russos ou a um ex-ministro francês do orçamento: eles incluem sobretudo empresas tão protegidas pelo Estado (e tão influentes na mídia) quanto Total, Apple, Google, Citigroup e BNP-Paribas.
Otimização fiscal, “preços de transferência” (que permitem situar os lucros das filiais nos lugares onde os impostos são baixos), alteração do domicílio das sedes sociais: os montantes assim subtraídos à comunidade de forma absolutamente legal se aproximariam de 1 trilhão de euros, apenas para a União Europeia, ou seja, em muitos países, uma perda de rendimentos maior do que a totalidade do encargo de sua dívida nacional. Na França, apontam muitos economistas, “mesmo recuperando apenas metade do dinheiro envolvido, o equilíbrio orçamentário seria restaurado sem sacrificar pensões, empregos públicos ou investimentos ecológicos para o futuro”.12 Cem vezes anunciada, cem vezes adiada (e cem vezes mais lucrativa do que a sempre lembrada “fraude dos auxílios sociais”), a “recuperação” em questão seria ainda mais popular e ainda mais igualitária pelo fato de os contribuintes comuns não poderem por si reduzir seus rendimentos tributáveis pagando royalties fictícios para suas subsidiárias das Ilhas Cayman.
Seria possível adicionar à lista de prioridades o congelamento dos altos salários, o fechamento da Bolsa, a nacionalização dos bancos, o questionamento do livre-comércio, a saída do euro, o controle dos capitais… Muitas opções já apresentadas nestas colunas. Por que então privilegiar a gratuidade, o nivelamento da dívida pública e a recuperação fiscal? Simplesmente porque, para desenvolver uma estratégia, imaginar sua base social e suas condições políticas de aplicação, é melhor optar por um pequeno número de prioridades em vez de compor um catálogo destinado a reunir na rua uma multidão heteróclita de indignados que se dispersaria na primeira tempestade.
A saída do euro certamente mereceria estar entre as urgências.13 Todo mundo agora entende que a moeda única e a quinquilharia institucional e jurídica que lhe dá suporte (Banco Central independente, pacto de estabilidade) proíbem qualquer política que ataque ao mesmo tempo o crescimento da desigualdade e o confisco da soberania por uma classe dominante subordinada às exigências do mundo financeiro. No entanto, por mais necessário que seja, o questionamento da moeda única não garante nenhuma reconquista nessa dupla frente de batalha, como demonstram as orientações econômicas e sociais do Reino Unido e da Suíça. A saída do euro, um pouco como o protecionismo, se apoiaria além disso em uma coalizão política que mistura o pior e o melhor, e no interior da qual o primeiro termo no momento se sobrepõe ao segundo. O salário universal, a amputação da dívida e a recuperação fiscal permitem uma varredura bem ampla, talvez até mais, mas deixando de lado os convivas indesejados.
É inútil imaginar que esse “programa” disponha de uma maioria em algum parlamento do mundo, seja ele qual for. As transgressões que ele prevê incluem muitas regras apresentadas como intangíveis. No entanto, quando se tratava de resgatar seu sistema em perigo, não faltou audácia aos próprios liberais. Eles não recuaram diante de uma alta significativa do endividamento (o qual tinham assegurado que faria disparar as taxas de juros). Nem diante de um forte estímulo orçamentário (o qual tinham alegado que desencadearia a inflação). Nem diante do aumento dos impostos, da nacionalização dos bancos falidos, de uma taxação forçada sobre os depósitos, do restabelecimento do controle dos capitais (Chipre). Em resumo, “quand les blés sont sous la grêle, fou qui fait le délicat”(quando o granizo cai sobre o trigo, cada um tenta salvar o seu). E o que é verdade para eles vale para nós, que sofremos muito de modéstia… Não é, portanto, nem fantasiando um retorno ao passado nem esperando reduzir a magnitude das catástrofes que se vai restaurar a confiança, que se vai combater a resignação em não ter em última análise nenhuma outra escolha possível senão a alternância de uma esquerda e de uma direita que põem em prática mais ou menos o mesmo programa.
Audácia? Falando do meio ambiente, André Gorz reclamava em 1974 “que um ataque político, lançado em todos os níveis, arranca [do capitalismo] o controle das operações e contrapõe a ele um projeto totalmente diferente de sociedade e de civilização”. Porque convinha, segundo ele, evitar que uma reforma na frente de batalha do meio ambiente fosse paga com uma deterioração da situação social: “A luta ecológica pode criar dificuldades para o capitalismo e forçá-lo a mudar; mas quando, após ter resistido por muito tempo pela força e pela astúcia, ele viesse a ceder finalmente porque o impasse ecológico se tornara inevitável, ele absorveria esse constrangimento como absorveu os outros. […] O poder de compra da população seria comprimido e tudo se passaria como se o custo da despoluição fosse tirado dos recursos de que as pessoas dispõem para adquirir bens”.14 “Desde então, a despoluição transformou-se por sua vez em um mercado, em Shenzhen, por exemplo, onde empresas pouco poluidoras vendem a outras o direito de exceder sua cota regulamentar. Enquanto isso, o ar viciado mata mais de 1 milhão de chineses por ano.
Refletir sobre a montagem das peças
Se não faltam ideias para recolocar o mundo nos trilhos, como fazer que elas escapem do museu das potencialidades não realizadas? Nos últimos tempos, a ordem social suscitou inúmeros protestos, das revoltas árabes aos movimentos dos indignados. Depois das grandes multidões reunidas contra a guerra do Iraque, há dez anos, dezenas de milhões de manifestantes tomaram as ruas, da Espanha ao Egito, passando por Estados Unidos, Turquia e Brasil. Eles chamaram a atenção, mas não conseguiram muita coisa. Seu fracasso estratégico ajuda a balizar o caminho a seguir.
É próprio das grandes coalizões de protesto procurar consolidar seu número, evitando as questões polêmicas que as dividem. Cada um adivinha quais temas fariam despedaçar uma aliança que, por vezes, só se apoia em objetivos generosos, mas imprecisos: melhor distribuição de renda, democracia menos mutilada, rejeição às discriminações e ao autoritarismo. À medida que a base social das políticas neoliberais encolhe e chega a vez de as classes médias pagarem o preço da precariedade, do livre-comércio, do alto custo da educação, fica também mais fácil montar uma coalizão majoritária.
Juntar sim, mas para quê? As reivindicações muito gerais ou numerosas têm dificuldade para encontrar uma expressão política e se inscrever a longo prazo. “Em uma reunião de todos os líderes de movimentos sociais”, nos explicou recentemente Artur Henrique, ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), maior central sindical do Brasil, “reuni os vários textos. A agenda das centrais incluía 230 pontos; a dos camponeses, 77; e assim por diante. Somei tudo: dava mais de novecentas prioridades. E perguntei: ‘O que será feito, concretamente, com tudo isso?’”. No Egito, a resposta foi dada… pelos militares. A maioria das pessoas se opôs por todo tipo de excelentes razões ao presidente Mohamed Morsi, mas, por falta de outro propósito além de garantir sua queda, deixou-se o poder para o Exército, correndo o risco de se tornar hoje refém e amanhã vítima. Pois não ter um roteiro muitas vezes leva a depender de quem tem um.
A espontaneidade e a improvisação podem favorecer um momento revolucionário. Elas, contudo, não garantem uma revolução. As redes sociais incentivaram a organização paralela das manifestações; a falta de organização formal permitiu escapar – por um tempo – à vigilância da polícia. Mas o poder ainda se conquista com estruturas piramidais, dinheiro, ativistas, máquinas eleitorais e uma estratégia: qual bloco social e qual aliança para qual projeto? A metáfora de Accardo se aplica aqui: “A presença sobre uma mesa de todas as partes de um relógio não permite que alguém que não tenha o esquema de montagem o faça funcionar. Um esquema de montagem é uma estratégia. Na política, pode-se proceder a uma sucessão de gritos ou refletir sobre a montagem das peças”.15
Definir algumas prioridades principais, reconstruir a luta em torno delas e parar de complicar tudo para provar seu próprio virtuosismo é desempenhar o papel do relojoeiro. Pois uma “revolução Wikipédia, a que cada um acrescenta conteúdo”,16 não vai consertar o relógio. Nos últimos anos, ações localizadas, explosivas, febris, deram à luz uma contestação romântica de si própria, uma galáxia de impaciências e desamparos, uma sucessão de desânimos.17 Na medida em que as classes médias são muitas vezes a espinha dorsal desses movimentos, tal inconsistência não é surpreendente: elas só se aliam às categorias populares em um contexto de extremo perigo – e com a condição de recuperar muito rapidamente a direção das operações.18
No entanto, também se coloca, e cada vez mais, a questão da relação com o poder. Quando mais ninguém imagina que os principais partidos e as instituições existentes mudem por menos que seja a ordem neoliberal, cresce a tentação de privilegiar a mudança das atitudes em relação à mudança das estruturas e das leis, de abandonar o campo nacional para reinvestir em âmbito local ou comunitário na esperança de criar aí alguns laboratórios de vitórias futuras. “Um grupo aposta nos movimentos, nas diversidades sem organização central”, resume Wallerstein; “outro adianta que, se não tem poder político, você não pode mudar nada. Todos os governos da América Latina têm esse debate.”19
Mede-se, no entanto, a dificuldade da primeira aposta. De um lado, uma classe dirigente solidária, consciente de seus interesses, mobilizada, senhora do terreno e da força pública; de outro, inúmeras associações, sindicatos, partidos políticos, ainda mais tentados a defender seus domínios, sua individualidade, sua autonomia, pelo fato de temerem que sejam recuperados pelo poder político. Sem dúvida, eles também ficam por vezes embriagados pela ilusão da internet que os leva a pensar que fazem diferença porque têm um site na web. O que eles chamam de “organização em rede” torna-se então a máscara teórica de uma falta de organização, de pensamento estratégico, não tendo a rede outra realidade que não a circulação de comunicados eletrônicos que todos seguem e ninguém lê.
A ligação entre os movimentos sociais e intermediários institucionais, contrapoderes e partidos sempre foi problemática. Tendo em conta que não há mais um objetivo primordial, uma “linha geral” – e menos que nunca um partido ou um cartel que a encarnaria –, é preciso “se perguntar como criar o global a partir do particular”.20 A definição de algumas prioridades que questionam diretamente o poder do capital permitiria armar os bons sentimentos, atacar o sistema central, identificar as forças políticas que também estão ali dispostas.
A utopia liberal queimou sua cota de sonhos
No entanto, será importante exigir delas que os eleitores possam, por meio de um referendo, revogar seus eleitos antes do final do mandato; desde 1999, a Constituição da Venezuela contém uma disposição desse tipo. Muitos chefes de governo tomaram decisões importantes (idade da aposentadoria, compromissos militares, tratados constitucionais) sem ter previamente recebido um mandato de seu povo. Este obteria assim o direito de vingar-se de uma forma diferente que não a de reinstalar no poder os irmãos gêmeos daqueles que acabam de enganar sua confiança.
É suficiente, então, esperar pelo momento certo? “No início de 2011, não éramos mais que seis pessoas ainda partidárias do Congresso para a República [CPR]”, lembra o presidente tunisiano Moncef Marzouki. “Isso não impediu que o CPR obtivesse a segunda maior pontuação nas primeiras eleições democráticas organizadas na Tunísia, alguns meses depois…”21 No contexto atual, o risco de uma espera muito passiva, muito poética, seria de ver outros – menos pacientes, menos hesitantes, mais perigosos – aproveitarem o momento para explorar em seu proveito uma raiva desesperada, que busca alvos, não necessariamente os melhores. E como, além disso, o trabalho de demolição social nunca para sem que se contribua para isso, pontos de apoio ou centros de resistência, de onde partiria uma eventual reconquista (atividades não mercantis, serviços públicos, direitos democráticos), correm então o risco de ser anulados − o que tornaria ainda mais difícil uma vitória posterior.
O jogo não está perdido. A utopia liberal queimou sua cota de sonhos, de absoluto, de ideal, sem a qual os projetos de sociedade murcham e depois perecem. Ela só produz privilégios, existências frias e mortas. Uma inversão ocorrerá. Cada um pode fazer que ela aconteça antes.
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).