A experiência revolucionária dos cordões industriais
Com a crise de abastecimento causada pelas greves e paralisações patronais, os operários dos cordões industriais em articulação com a população de suas respectivas regiões foram responsáveis por estruturar e organizar um novo sistema de relações comerciais para neutralizar o efeito da crise sobre a população
Este ano completa-se meio século do 11 de setembro sul-americano, o golpe militar chileno, comandado por Augusto Pinochet, que violentamente poria fim ao governo de Salvador Allende. É notória a publicação de um conjunto expressivo de análises, rememorações e o resultado de todo esse processo que desarticulou as forças progressistas e revolucionárias chilenas. O foco, como não deveria deixar de ser, é na destruição da democracia chilena, em particular do governo da Unidade Popular. Tais análises, no entanto, deixam de lado os principais avanços daquele período, feitos diretamente pelos trabalhadores autônomos em luta, em paralelo ou em confronto ao governo.
A propósito dos 50 anos do golpe chileno, busco, neste texto, reconstituir uma das mais expressivas e importantes experiências de auto-organização de trabalhadores na América Latina: os cordões industriais. Ainda pouco conhecida no Brasil, a experiência dos cordões aponta para a relação de tensão entre experiências revolucionárias e o Estado (mesmo que, sob direção, esteja um governo autointitulado socialista).
Uma das hipóteses que gostaríamos de sublinhar aqui é que Allende foi derrubado não apenas por causa de suas reformas, mas fundamentalmente porque ele foi incapaz de controlar o movimento revolucionário que se desenvolveu espontaneamente na base da UP. A junta militar que se instalou no poder claramente percebia a ameaça de um processo revolucionário e se empenhou em eliminá-la com todos os meios a sua disposição. Não foi por acaso que a resistência mais forte à ditadura ocorreu naquelas áreas onde o poder dos trabalhadores tinha avançado mais longe: os cordões industriais.
Construção do socialismo pela via institucional
Allende ganhou as eleições presidenciais do Chile em 1970 com apoio da Unidade Popular. A Unidade Popular visava a “construção do socialismo” pelos moldes institucionais, congregando uma maior participação política dos trabalhadores. Apostava também na tomada do poder legislativo e executivo, além de visar o desenvolvimento da economia por meio da nacionalização de áreas econômicas.
Essa política de nacionalização das indústrias foi implementada com o propósito de reduzir a dependência econômica em relação ao capital estrangeiro. Nesse sentido, após as eleições vitoriosas, a Unidade Popular instituiu um programa para a divisão dos setores da economia em áreas de gestão específicas. A Área Social seria controlada pelo Estado, a Área Mista jungia o Estado e setores privados, e a Área Privada que coligava pequenas e médias empresas, sendo estas últimas protegidas de possíveis tentativas de expropriação por parte do operariado. É neste programa que aparece a questão da participação política dos trabalhadores. No entanto, esta participação só se deu nas áreas sociais e em algumas indústrias e empresas das áreas mistas, onde o Estado tinha maior poder de decisão. Por consequência, o grosso da população operária, que ainda se localizava nas áreas privadas, permaneceu sem qualquer forma de participação.
Esta participação política, entretanto, não se configurou um efetivo controle operário sobre os meios de produção das indústrias chilenas. O programa, que foi na realidade elaborado pela Central Única de Trabajadores de Chile em colaboração com o governo de Allende, limitou a participação dos trabalhadores a meros espaços consultivos, sem poder de decisão e deliberação, uma autoridade ainda mantida principalmente nas mãos da burocracia estatal.
Este foi, sem dúvidas, um dos fatores que fizeram uma parcela da classe operária chilena daquela época, à medida que ia avançando suas lutas, a gradualmente perder suas esperanças na Unidade Popular e suas ações que minavam qualquer tipo de autonomia e auto-organização do movimento operário. Qualquer tipo de ação dos trabalhadores que extrapolassem as vias institucionais, qualquer tipo de radicalização, expressão das iniciais formas de auto-organização e tomada de suas consciências revolucionárias, eram afligidas pelo governo de forma incisiva.
Greve patronal
A situação política do país se intensifica com a greve patronal de outubro de 1972, iniciativa dos empresários donos dos meios de circulação fundamentais do país (tanto o transporte de mercadorias quanto o transporte urbano de pessoas). Um conjunto do empresariado chileno, as confederações industriais e as multinacionais do setor de minérios foram os responsáveis pela articulação da greve patronal, além das transportadoras. Tal articulação contava com o apoio e financiamento do governo norte-americano.
A paralisação do setor de transporte prejudicou todo o sistema de distribuição e abastecimento, trazendo para a população em geral e, de forma mais profunda, para as classes subalternas, uma crise de consumo, desde a básica alimentação até o transporte coletivo. Como agravante, a Sociedad de Fomento Fabril e a confederação do comércio varejista e pequena indústria instruem as fábricas a se solidarizarem com a greve das transportadoras e paralisarem suas atividades; a Confederação da Produção e do Comércio conclama a não abertura do comércio. Muitos sindicatos, organizações autônomas e ramificações de movimentos sociais tomam posição e entram em greve. Nas ruas, grupos de extrema-direita atacam os caminhões em operação e realizaram 52 ataques contra torres de transmissão de energia, linhas ferroviárias e empresas estatais.
Nesse sentido, os proprietários de caminhões, passo a passo, obtiveram o apoio das organizações patronais bem como uma expressiva parcela dos setores auxiliares da burguesia chilena. Em síntese, a greve patronal significou a resposta da burguesia daquele momento histórico vivido no Chile, colocando em xeque tanto o governo de Salvador Allende, quanto as iniciais formas de organização e mobilização dos trabalhadores. A reação do governo ante à situação das greves patronais expressou, de forma clara e sistemática, a sua política limitada e sua posição de colaboração com a burguesia nacional. Allende adotou a conciliação com a burguesia e demais classes auxiliares da mesma, medida presente em praticamente todo o seu mandato.
A primeira medida foi a mudança da linha econômica do governo, demitindo o ministro Pedro Vuskovic, independente, para assumir Orlando Millas, do Partido Comunista, objetivando frear as nacionalizações, congelar os salários e negociar um acordo com a Democracia Cristã (DC), partido de oposição, a propósito da extensão das propriedades sociais. O resultado desse processo foi que, das 120 inicialmente previstas para passar à área de propriedade social (20% do total), restariam apenas 49. A segunda medida, mais dura e em franca oposição aos trabalhadores, foi outro acordo com a DC para a inclusão de comandantes das forças armadas ao gabinete no executivo. Este gabinete, cívico-militar, tinha dois objetivos: garantir as eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas durante a greve patronal. O conjunto destas medidas ficaram conhecidas como plano Prats-Millas, em “homenagem” aos seus articulares, o general Prats, comandante do exército, e Orlando Millas, novo ministro da economia.
Nesse contexto, os trabalhadores enfrentavam uma desafiadora dualidade de objetivos. Eles precisavam responder e resistir tanto ao avanço do capital internacional, com suas práticas tradicionais de exploração e estratégias inovadoras de dominação, quanto à burocracia estatal e sindical que, aparentemente, se autodeclarava como um governo popular, de orientação socialista e supostamente em representação dos trabalhadores.
A reação de parcela da classe operária e demais trabalhadores explorados foi a radicalização. O rompimento absoluto com a institucionalidade e o desenvolvimento, mesmo que embrionário, da auto-organização de suas lutas. A criação e o desenvolvimento dos cordões industriais é resposta e consequência direta desta conjuntura, tanto de ataque do capital quanto daqueles que dizem representar os trabalhadores. É esta resposta bem como seu processo e suas consequências que veremos a seguir.
Cordões industriais
O esboço e criação do primeiro cordão industrial nos arremete ao final de junho de 1972, antes mesmo da greve patronal de outubro, onde os cordões industriais se alastram por todo o país, criando um impacto político sem precedentes na história chilena. É importante expressar aqui este processo, demonstrando que a radicalização das lutas operárias chilenas é fruto de um acúmulo de experiências, imbuídas de contradições e avanços.
No início de abril de 1972, diversos movimentos populares na região industrial de Cerrillos-Mapú iniciaram um processo de formação de colaboração e solidariedade política organizada. Esta região abarcava uma grande concentração de indústrias, bairros populares e acampamentos (sem-teto), onde todos eles apresentavam graves problemas de infraestrutura (transporte, escola, hospitais e etc.) e abastecimento. O estopim da revolta da população foi o precário serviço de transporte público oferecido pela municipalidade.
O conjunto dos movimentos populares, trabalhadores e diversas direções de partidos políticos convocaram a população a tratar do problema, debater uma plataforma política e organizar um Conselho Comunal de Trabalhadores, tendo como inspiração a organização e experiência dos soviets da revolução russa. Este conselho organizou um documento a ser entregue às autoridades locais que não compareceram à atividade. Sob a organização e mobilização feita sobretudo por operários que viviam e trabalhavam na comuna, a principal deliberação do documento foi a necessidade de “suplantar ambos – la Municipalidade y el Alcalde – por um organismo paralelo próprio de los Trabajadores, o Consejo Comunal” (PESTRANA; THEREFALL, 1974: p. 110-11).
Embora o êxito inicial do conselho, as exigências não foram acolhidas em sua totalidade por parte do governo e nem a mobilização da população em geral conseguiu se manter. No entanto, uma parcela dos movimentos persistiu em sua organização, e em junho de 1972, durante uma série de greves e ocupações nas empresas Perlak (conserva de alimentos), Polycron (indústria química e fibras sintéticas) e El Mono (alumínio), a comunidade de Maipú retomou sua mobilização. De acordo com Elisa de Campos Borges (2014), os trabalhadores fizeram denúncias contra os proprietários das empresas, acusando-os de promover boicotes à produção, realizar vendas no mercado paralelo, reduzir a compra de matérias-primas e até mesmo esconder produtos, o que contribuiu para a escassez de bens no mercado. A principal demanda dos trabalhadores era a intervenção do governo nas indústrias e sua incorporação nas Áreas de Propriedade Social (APS). A proximidade geográfica das empresas e o apoio fundamental da população local acabaram por incentivar a formação de uma coordenação conjunta no movimento.
O governo Allende, querendo manter a legalidade de seu governo, estabeleceu inúmeras barreiras para evitar a estatização das empresas demandadas pelos trabalhadores. Como resultado, esse desenvolvimento começou a gerar desilusão entre os trabalhadores, principalmente, devido à crise nas negociações com os representantes do Estado. Esse contexto propiciou a criação de um Comando de Coordenação das Lutas dos trabalhadores do Córdon Industrial Cerrillos-Maipu. Tal movimento surgiu durante uma reunião que contou com a presença de trabalhadores de cerca de 30 empresas, com a participação em massa de trabalhadores autônomos, além de alguns ligados aos partidos de esquerda chilena. No total, esse grupo englobou aproximadamente meio milhão de trabalhadores. É criada uma plataforma do Comando de Coordenação de Lutas contendo 12 pontos, buscando articular pautas comuns a camponeses, plobadores e operários. Alguns deles: apoiavam o governo e o presidente na medida em que ele representasse as lutas e mobilizações dos trabalhadores; exigiam a expropriação das empresas monopólicas assim como daquelas que não cumprissem os compromissos laborais; controle operário da produção por meio da constituição de Conselhos de delegados eleitos pela base; aumento de salários; dissolução do Parlamento; instalação da Assembleia Popular; e ocupação de todos os fundos expropriados e controle camponês mediante conselho de delegados.
Trancoso (1988) demonstra que o Comando Coordenador/Cordão Cerrillos foi o primeiro esboço de uma coordenação geográfica dos trabalhadores chilenos e que rompeu com os canais e instituições sindicais. Ainda nesta época existia apoio ao governo Allende, mas só quando este contribuísse para a luta e mobilização dos trabalhadores.
Respostas dos trabalhadores
Com a chegada da greve patronal de outubro de 1972, os trabalhadores já haviam experimentado organizações de forma autônoma. Nesse sentido, a reação às consequências da greve (desabastecimento, ataques e atentados da direita, sabotagens etc.) foi imediata. A resposta dos trabalhadores foi a massiva e generalizada tomada de fábricas e a consolidação dos cordões industriais em todo o território chileno. As ocupações não obedeceram a nenhum critério utilizado pelo governo Allende; indistintamente as fábricas foram ocupadas, sobretudo as das áreas privadas, onde os trabalhadores não tinham nenhum controle sobre a produção. Nasceram assim os cordões de Vicuña Mackenna e Estación Central em Santiago e de Hualpencillo, em Concepción, em consequência da paralisação de outubro.
Os intentos da burguesia em fomentar o caos foram predominantemente impedidos pelos esforços dos trabalhadores e da população em geral, que, por iniciativa própria, colocaram os meios de produção em operação por meio de uma auto-organização eficaz. Allende, como já dissemos anteriormente, busca a saída da crise a partir da conciliação com a burguesia; nesse sentido, diminui o número de fábricas a serem nacionalizadas e coloca o exército para garantir o cumprimento dessa medida. No entanto, como o grande número de apoiadores do governo eram trabalhadores, não podia se utilizar da repressão para retomar as fábricas recuperadas e estabilizar o seu governo frente aos acordos que firmara com a Democracia Cristã e a burguesia. Nesse sentido, o governo da Unidade Popular utiliza da burocracia sindical para tentar cooptar e convencer os operários a retrocederem e saírem das fábricas ocupadas.
É emblemática a discussão entre um operário e um burocrata da CUT no famoso e clássico documentário A Batalha do Chile do cineasta Patrício Guzmán: o operário, em resposta ao sindicalista da CUT, demonstra que a ocupação das fábricas não trata-se tão-somente de uma defesa do governo Allende; significa, mais do que isso, um processo de transformação social a partir dos trabalhadores, que superou a própria institucionalidade e o apoio do Estado, já que estes estão alheios aos interesses dos trabalhadores.
Solidariedade
A ocupação das fábricas trouxe, além do controle operário, novas formas de sociabilidade e distribuição de bens consumíveis. A solidariedade entre as indústrias, bem como o intenso debate e intercâmbio tanto de ideias, quanto de experiências laborais possibilitou novas formas, mesmo que embrionárias, de uma sociabilidade oposta aos valores burgueses e aos interesses capitalistas.
Com a crise de abastecimento causada pelas greves e paralisações patronais, os operários dos cordões industriais em articulação com a população de suas respectivas regiões (muitos deles organizados em comandos comunais) foram responsáveis por estruturar e organizar um novo sistema de relações comerciais para neutralizar o efeito da crise sobre a população. Assim, se incumbiram de tomar os comércios, a se responsabilizarem pela distribuição e pelo transporte; na utilização do caminhão da fábrica para transportar leite às poblaciones, na organização das feiras populares, no intercâmbio de produtos e de matérias-primas entre as fábricas, e na formação de comitês de defesa com pobladores e operários contra possíveis ataques.
Com um pouco mais de um ano existência, os cordões industriais conseguiram agrupar grande parte do operariado chileno, especialmente em Santiago, mas também em cidades como Arica, Concepción, Antofagasta e Osorno. E como se dava a auto-organização dos trabalhadores dos cordões industriais? Após a criação e consolidação dos cordões, os trabalhadores começaram a sistematizar a forma de organização. Segundo Trancoso (1988), começa-se a adotar, a partir do primeiro semestre de 1973, um modelo orgânico, com especificidades locais de cada cordão industrial. Um exemplo desse modelo inclui as assembleias de trabalhadores de cada indústria ou empresa por cordão, nas quais seriam eleitos de 2 a 3 representantes para compor o seu conselho.
Nesse sentido, nas assembleias aconteciam as deliberações das ações de cada cordão. Devido à pouca documentação e registros, é difícil analisar a dinâmica interna de cada cordão industrial. Mas podemos afirmar em linhas gerais que as formas de organização variavam de região para região, além de que as reuniões eram abertas, livres, e muitas vezes contavam com a participação de pobladores da região.
No primeiro dia de fevereiro de 1973, divulgado pelo jornal Tarea Urgente (1973), surge a primeira plataforma de luta em conjunto dos cordões industriais do período com as principais bandeiras e orientações para os trabalhadores das várias indústrias que compunham o movimento. Muitas dessas reivindicações entraram em conflito com as políticas e propostas da Unidade Popular, indicando uma relação inequívoca de confronto.
Em 11 de setembro de 1973, o Golpe de Estado executado pelo exército chileno fez com que bruscamente o avanço dos trabalhadores parasse. A experiência dos cordões industriais durou pouco tempo. Mas durante esse breve período, o avanço da consciência de classe, a ameaça de rompimento com as relações capitalistas, bem como com o governo e as burocracias sindicais e partidária, demonstra o caráter revolucionário desta experiência.
Enquanto o exército bombardeava o Palácio de La Moneda destruindo a resistência do governo Allende, tropas rumavam para os cordões industriais para reprimir e aniquilar qualquer tipo de resistência à ditadura militar que estava por vir. Mesmo com uma inicial resistência por parte dos trabalhadores, a desigualdade de forças fez com que o exército esmagasse toda e qualquer tipo de resistência. Centenas de mortos por parte dos explorados e oprimidos. Aos agitadores, mais avançados politicamente, foram relegados aos campos de concentração que se tornaram os estádios de futebol chilenos. As lideranças do governo, que sobreviveram, rumaram ao exílio. Para os trabalhadores que não tinham a opção de fugir, restou apenas a experiência da barbárie e do terror.
Gabriel Teles é sociólogo, professor e pesquisador pelo Grupo de Pesquisa Teorias do Autoritarismo (USP), Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade (UFG) e Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social (UNB). Contato: [email protected]
Referências
CORREA, Sofia; FIGUEROA, Consuelo (Org.) História del siglo XX chileno: balance paradojal. Santiago: Editorial Sudamericana, 2001.
CURY, Márcia Carolina de Oliveira. O protagonismo popular experiências de classe e movimentos sociais na construção do socialismo chileno (1964-1973). Tese de doutorado, Campinas, 2013.
CURY, Márcia Carolina de Oliveira. Sindicatos e cordões industriais: a constituição de novas relaações soicais na construção do socialismo chileno (1972-1973).
PESTRANA, Ernesto; THEREFALL, Mônica. Pan Techo y Poder. El Movimiento de Pobladores de Chile (1970-1973). Buenos Aires: Ed. Planteos, 1974.
TRANCOSO, Hugo Cancino. Chile: la problemática del Poder Popular en el proceso de la via chilena al socialismo – 1970-1973. Ed. AARHUS, University Press, 1988.