Quando a falta de referências se transforma em dinheiro (para alguns)
Os coaches em geral atuam como agentes centrais de acomodação e aceitação de um contexto desolador de desemprego, precarização e uma muito relativa falência do Estado
Existem alguns nexos, algumas conexões, entre o cenário sociopolítico que experimentamos na atualidade e o universo coach que vem se delineando nos últimos anos. A transferência de um Estado garantidor de direitos sociais – chamado por alguns de Estado do bem-estar e por outros de Estado-providência – para um Estado regulador da atuação da iniciativa privada, que marca o que chamamos de neoliberalismo, sem dúvida, é um passo dado rumo à compreensão do que vem ocorrendo.
O intuito, aqui, não é desmerecer ou depreciar as pessoas que foram espertas a ponto de perceberem uma perda quase absoluta de referências, horizontes e perspectivas e conseguiram converter isso em rios de dinheiro. Deve ser muito triste, muito lamentável, enriquecer a partir da perda de referência alheia, e é igualmente triste ver que um cenário desolador se transformou em um enorme nicho de mercado. Portanto, não é um texto engraçado, nem depreciativo, nem irônico, nada disso. A ideia aqui é oposta, é a de elaborar questionamentos e proposições que estimulem o debate, não sobre o trabalho do coach, especificamente, mas sobre o cenário desolador sobre o qual ele emerge de maneira muito bem-sucedida.
E tal emergência possui um ponto de partida que apresenta algumas características: a já anteriormente mencionada reconfiguração do que conhecemos como Estado, a falência do que poderíamos chamar de “espírito público”, a sobreposição do individual sobre o coletivo, o descrédito que alveja o conhecimento científico sistematizado e as instituições responsáveis por sua propagação – apesar da crítica aqui registrada de que o que conhecemos como conhecimento científico sistematizado desconsidera e descarta muitos saberes –, a precarização das relações de trabalho e os avanços tecnológicos (o que o geógrafo Milton Santos chama de meio técnico-científico informacional). Embora cada item possa ser analisado individualmente, o que temos é a junção de todos eles, de modo que o resultado seja o contexto atual. É importante sinalizar que alguns dos problemas supracitados não são exatamente novos. Porém, em termos de combinação, aí sim, temos uma novidade.
Diante disso, podemos supor que os coaches em geral atuam como agentes centrais de acomodação e aceitação de um contexto desolador de desemprego, precarização e uma muito relativa falência do Estado. “Muito relativa”, pois o que conhecemos como Estado não faliu. Na verdade, ele aceitou o avanço, a intromissão dos setores privados, passando ele a atuar como regulador. Ele não faliu, tornou-se permissivo. Com isso, esvai-se o que chamo de “espírito público” que, no fim das contas, significa um zelo em relação aos rumos de toda uma coletividade, o que pode ocorrer na arena institucional ou não.
Os últimos anos são emblemáticos no que diz respeito ao descrédito que paira sobre instituições responsáveis pela produção e difusão do conhecimento científico sistematizado. Tivemos uma vacina sendo alvo de descrença, além de todo o atraso proposital com base nos piores argumentos. Uma vacina não se produz ao acaso, como sabemos. Ela é fruto de muitas pesquisas e testes. Outro exemplo reside na proposta do homeschooling, algo estarrecedor. Isso, para não mencionar as reformas educacionais que foram na direção de empobrecer ainda mais as escolas das camadas mais pobres, o que, indiretamente, significa enriquecer as escolas das camadas mais ricas. Posso citar, também, os ataques sofridos por Ricardo Galvão, quando apontou, com base em evidências, os recordes de desmatamento que a Amazônia sofria. Enfim, inúmeros são os fatos que comprovam o fato de instituições científicas públicas terem caído em um limbo.
No que diz respeito à precarização das relações de trabalho, é importante considerar que, se em épocas passadas havia dois polos mais ou menos bem definidos – o emprego sendo um deles e o desemprego seu oposto –, agora, entre eles, temos uma infinidade de subcategorias, o que indica que as pessoas podem, atualmente, não ser desempregadas, sendo que, estas mesmas podem não ser plenamente empregadas. São as pessoas que trabalham por conta própria, a enorme maioria sem condições de investir no próprio trabalho. e que estão desprovidas de direitos básicos, totalmente desamparadas aos olhos da legislação. Sabemos que isso não vem de hoje, mas a questão é que hoje tal fato se torna mais notório e engloba uma quantidade maior de pessoas. Para a sorte dos criadores e donos de aplicativos, os únicos que ganham nessa história, existe o mito do empreendedorismo. Os trabalhadores precarizados, à mercê da sorte e desprovidos do básico se veem como empreendedores, e não como profissionais em situação extrema de precariedade. Temos, portanto, uma avalanche de entregadores e motoristas sem vínculos com nada, nem com ninguém. São eles por eles. São os que alugam bicicletas, que são suas ferramentas de trabalho, e que, mesmo sendo ferramentas de trabalho, não são disponibilizadas pelo aplicativo ao qual trabalham. Equipamentos de proteção? Nem pensar. São eles e elas que se arriscam para fazer entregas, sem a garantia de um salário e sem a segurança no caso de acidentes. Rodam a cidade em suas bicicletas, enquanto as SUVs dos vencedores rasgam o espaço urbano.
As tecnologias operam como uma máquina de costura, costurando toda a tragédia anteriormente exposta. Os meios de comunicação e as redes sociais aceleraram a difusão de mentiras, os aplicativos fazem com que o trabalho seja cada vez mais precário, sem que os precarizados percebam sua real condição, e podcasts são a mola mestra de toda a sorte de atrocidades, usando, em alguns casos, uma concepção propositalmente distorcida de liberdade de expressão, enfim. Obviamente, digo essas coisas a partir do viés negativo. Existem tecnologias muito boas para a humanidade, existem podcasts de qualidade e por aí vai. Além disso, as redes sociais são usadas para propagar, através de fotos com amplo alcance em relação às visualizações, sempre com legendas rasteiras, supostas conquistas materiais.
No meio de um contexto pontilhado por tantos aspectos péssimos, emerge uma figura portadora de um discurso salvacionista, moralista e politicamente perigoso. Salvacionista, pois essa figura tem toda uma suposta receita de bolo para que alguém enquadrado em uma situação de penúria se torne alguém vencedor. Moralista, pois, através de jargões fáceis de digerir e totalmente adequados ao status quo essa receita é difundida (mediante pagamento, sempre). E a parte mais importante é o discurso politicamente perigoso. E é politicamente perigoso, pois transfere para o indivíduo a responsabilidade sobre a solução de problemas historicamente e socialmente criados. É o sonho do neoliberalismo, que busca mercantilizar tudo aquilo que for possível, a começar pela vida, e individualizar problemas pela via da culpa, preguiça e falta de esforço. Essa é a figura do coach.
“Trabalhe enquanto eles dormem” talvez seja a principal frase, ou uma das principais. De maneira muito apropriada, é a jornalista Fabiana Moraes quem mostra que há 20 milhões de brasileiros e brasileiras exercendo trabalho noturno. Trata-se de cerca de 10% da população trabalhando enquanto dormimos. E é bem provável que não enriqueçam com isso.
Por meio da venda de cursos online, mentorias (?), dentre outros produtos, eles conseguem oferecer uma diversidade enorme de receitas-para-a-vitória. E é na tríade salvacionismo-moralismo-discurso político perigoso que essa nova figura emerge. A ideia de que apenas você pode fazer com que você mesmo não seja um fracasso em forma de gente, discurso que estimula fortemente o individualismo doentio que tanto presenciamos, esvazia toda uma necessidade de políticas públicas comprovadamente fundamentais.
Em 2003, o pesquisador Pedro Demo publicou um livro chamado Pobreza da pobreza, em que o autor apresenta uma pesquisa cujo tema pode ser percebido através do título. Trata-se de uma pesquisa com recorte espacial situado nas cidades satélites de Brasília. Uso esse livro como exemplo, pois fica evidente que, em muitos casos, pessoas se colocam como culpadas por problemas historicamente constituídos. Ele serve de exemplo, também, pois, tendo sido publicado há pouco mais de vinte anos, ainda soa atual. Para a maioria das pessoas entrevistadas pelo autor, a falta de esforço e de estudo foi a grande causa da própria pobreza. O segundo grupo, intermediário, acredita que um Deus queria que tais pessoas passassem por uma vida de privações materiais. Somente o grupo minoritário, o terceiro, percebia o quadro socioeconômico extremamente desigual que sempre afetou o Brasil como um problema histórico.
Seria uma irresponsabilidade enorme acreditar que uma pesquisa, apenas, e por melhor que seja, daria conta de toda a realidade brasileira. No entanto, mesmo antes da avalanche do “clique em saiba mais”, “ganhe R$100.000 em sete dias” etc., já era possível perceber que o Brasil era um prato cheio para o avanço de pessoas capazes de sentir que os obstáculos impostos pelo cotidiano fariam com que muitas pessoas se agarrassem a promessas, por mais insanas que fossem. O desespero faz isso. O deslocamento de algumas horas para um trabalho ruim e mal remunerado faz isso. As dificuldades cotidianas fazem isso. A falta de políticas públicas adequadas faz isso.
A partir do desrespeito com diversas carreiras, dentre as quais podemos destacar a Psicologia, o alguém-que-ninguém-nunca-viu aparece de forma repentina, prometendo aquilo que muitas pessoas sonhariam em ter. Fotos em Dubai, carros milionários, mansões… Na era da lente de contato dental, fica difícil saber o que é verdade e o que não é. Mas o fato é que, para os mais desavisados, sobretudo para os mais jovens, que já nasceram com internet e naturalizam o que ali circula como verdade absoluta, essas coleções de supérfluos soam como sonhos e possibilidades. O horizonte antes perdido passa a ser encontrado. Novas referências surgem. As piores.
É importante notar, para concluir, que o que temos é uma figura – e não me cabe discutir aqui se é uma profissão ou não, pois meu objetivo não é julgar. Mantenho a afirmação já feita: são pessoas suficientemente espertas, que perceberam um grande nicho em uma população que carece do básico – que se encaixa perfeitamente na agenda neoliberal e, indo além, elas buscam transformar essa agenda em uma engrenagem capaz de envolver cada vez mais pessoas. O discurso politicamente perigoso, que está situado entre o individualismo perverso, a motivação desmedida e a privatização de tudo é algo que deveria nos preocupar em um país que, apesar de tantas atrocidades, tem um histórico de luta por aquilo que é ou deveria ser público.
Jornalismo tendencioso é lamentável no tempo de hoje. Seria imparcial se ouvisse as partes antes de alegar que coaches enriquessem a custa da desgraça alheia. Lamentável.
Andréia Souza
Jornalista
Master Coach
Neurocientista