Falta Estado e sobram armas
Durante as eleições, 28 favelas do Rio de Janeiro receberam milhares de soldados para assegurar a “normalidade” do processo. Mas será que a presença de homens, helicópteros e veículos blindados retrata alguma situação cotidiana? Ou essa tranqüilidade é apenas para quem está fora das favelas?
O processo de (re)democratização no Brasil é ainda incipiente e frágil. Entre seus avanços podemos destacar a realização de conferências temáticas, os conselhos paritários, o referendo realizado em 2005 sobre a restrição do uso de armas por parte da população (Desarmamento) e o recém-concluído processo eleitoral nos municípios de todo o país, em outubro de 2008.
Estes sinais de avanço precisam, no entanto, ser valorizados e analisados com o devido senso crítico. Nem sempre a existência de instrumentos democráticos assegura processos libertários e transformadores, especialmente quando os meios para sua realização não estão democratizados.
Um exemplo dessa situação contraditória pode ser percebido nestas eleições. O avanço tecnológico coloca o nosso sistema de votação entre os mais avançados e seguros do mundo, mas a ausência e a omissão do Estado brasileiro para garantir os direitos de cidadania, antes e durante o período das campanhas eleitorais, ameaçam a livre e democrática expressão do voto.
A profusão de “centros sociais”, redutos eleitorais e mesmo a coação física são componentes presentes neste processo eleitoral. E a democracia não avança com candidatos que se baseiam em discursos e práticas fisiológicas, assistencialistas e violentas.
A eleição de 2008 trouxe um fato novo, ao menos para eleitores do Rio de Janeiro, que pode ser um prenúncio para outras cidades brasileiras. Trata-se do crescente vínculo entre grupos armados locais e a representação política estatal. A construção do discurso da segurança, tema central da disputa eleitoral, reforça no imaginário da população a importância da presença de xerifes locais como provedores de proteção.
A eleição atual não marca o início desse vinculo perverso. Esta situação já foi exposta, há exatos 10 anos, pelo professor José Cláudio Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em seu livro Dos barões ao extermínio – Uma história da violência na Baixada Fluminense, cujo conteúdo é uma descrição corajosa e responsável da influência dos grupos de extermínio no processo eleitoral da Baixada Fluminense.
As milícias hoje representam, de forma remodelada, esses antigos grupos da Baixada. O controle armado do território, a imposição de regras de conduta e o domínio sobre as atividades econômicas são alguns elementos que identificam as ações praticadas pelas milícias. Sua presença no município se concentra destacadamente nas zonas oeste e norte da cidade. E cada vez mais elas disputam a representação política formal como estratégia de legitimidade e impunidade.
Paralelamente a esta “nova” dinâmica de controle territorial, muitos cartéis de venda varejista de drogas nas favelas do Rio seguem práticas semelhantes e escoam o “voto da comunidade” naqueles personagens mitificados como “protetores da comunidade”, impedindo a presença de candidatos externos e coagindo o lançamento de outras candidaturas internas – diferentemente daquelas apoiados pelo tráfico. Essa medida, guiada por determinações locais, tem o intuito de estabelecer um “porta-voz”, referendado, para os interesses daquela(s) comunidade(s). A política se enfraquece e ganha ênfase a lógica do micropoder.
Milicianos e comerciantes de drogas impõem, através das práticas de ameaça, coerção e extorsão a “indicação de um candidato único” para determinada região. Cenas chocantes, relatos assustadores de atos violentos, garantem a criação desses “novos currais eleitorais”. Essa nova realidade contribui para garantir que o Estado esteja ausente desses espaços populares e viabiliza cada vez mais a participação de “representantes comunitários forjados” nos cargos e postos dos poderes públicos constituídos.
A “CPI das Milícias”, criada em 2008 na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, vem debatendo o significado de redes criminosas se protegerem por meio de representação parlamentar ou pela presença em cargos públicos. Conduzida pelo deputado estadual Marcelo Freixo, PSOL-RJ, a CPI colheu o depoimento de integrantes desses grupos, vários deles parlamentares, bem como consultou um conjunto de renomados especialistas no tema da Segurança Pública do Rio de Janeiro. É bom lembrar que a ALERJ cassou, somente em 2008, o mandato de três deputados e confirmou a prisão de um de seus parlamentares. Dois destes deputados são membros da polícia civil.
Mas o que está sendo feito para proteger, ou usando uma linguagem policial, blindar o processo eleitoral ou as câmaras legislativas da presença dessa rede criminosa? Será esse um problema do eleitor? Dos partidos? Das próprias comunidades que já sofrem com a dupla opressão da presença de grupos armados ilegais e da ausência do Estado? Difícil dizer.
Forças policiais nacionais foram convocadas pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ) para “garantir a normalidade nas eleições de 2008 em áreas dominadas pelo tráfico ou pela milícia”. No total, 28 favelas do Rio de Janeiro receberam a presença de milhares de soldados para assegurar a “normalidade” do processo de eleição. Será que a presença de 3.500 homens, cinco helicópteros e três veículos blindados – somente nos complexos da Penha e do Alemão – retrata alguma normalidade? A tranqüilidade é para quem está fora ou dentro das favelas?
Será que é de força policial que carecemos para enfrentar este que parece ser um problema estrutural? Afinal, se o Estado reconhece a presença da coerção no período eleitoral, como negar que essa situação não se dê antes e depois do pleito? Em que medida a população pode confiar no sistema eleitoral de um Estado que não lhe oferece proteção no cotidiano? Questionamentos desta ordem reforçam a idéia de que o que precisa ser protegido é o sistema, não as pessoas. As forças armadas e o Estado defendem a institucionalidade, não a população.
Esta situação não deve ser percebida como um caso isolado, mas como parte de um contexto complexo e imperioso, que coloca a todos como reféns, em alguma medida, desta estrutura. Em última análise, coloca a própria democracia em risco.
A questão central deste modelo está no enfraquecimento das redes sociais locais e no uso das armas de fogo tanto por agentes criminosos quanto por agentes públicos de segurança. São duas faces da mesma realidade, que mutuamente se alimentam e contribuem para a criação de ilhas de despotismo dentro de um ambiente formalmente democrático.
Até onde a democracia pode conviver com as forças armadas como mecanismo de defesa da própria democracia? Será que o debate e a participação social são práticas compatíveis com a presença ostensiva e intimidadora das armas de fogo?
Este debate, no Brasil, precisa ser encarado com responsabilidade e seriedade pelas autoridades governamentais e pela sociedade civil. As chances de se morrer vítima de uma arma de fogo são maiores no Brasil do que em países em guerra. São quase cem pessoas que morrem, por dia, vítimas de tiros. Em 2006 foram assassinadas cerca de 35 mil pessoas. O Brasil, com menos de 3% da população mundial, responde por 11% das mortes por armas de fogo no mundo.
Segundo informe do relator da ONU para execuções sumárias, muitos policiais no Brasil promovem execuções ao arrepio da lei, aumentando consideravelmente o número de pessoas mortas por emprego de armas de fogo. O relatório aponta os dados do Instituto de Segurança Pública, órgão da administração estadual, onde apenas os policiais em serviço, no ano de 2007, mataram 1.330 pessoas. São três pessoas mortas por dia, o que representa 18% do número total de mortes no estado do Rio de Janeiro.
A insegurança toma conta da cidade. Falta tranqüilidade no deslocamento, nos espaços de trabalho ou mesmo dentro das próprias residências. Policiais são mortos por serem policiais; bandidos são mortos por não se acreditar na eficácia da Justiça; indivíduos são vítimas de balas lançadas a esmo ou por pequenas desavenças corriqueiras. Cenas e cenários que evidenciam a banalização da morte e da vida.
A violência armada não produz os mesmos efeitos em toda a cidade. O confronto armado em áreas de favelas – pensando aqui apenas no contexto urbano – torna inevitável que esses territórios produzam os principais números de vítimas fatais. Seja no confronto entre grupos criminosos rivais, ou pelo enfrentamento com as forças policiais. As principais vítimas diretas são em sua maioria jovens, negros, de baixa escolaridade, cuja expectativa de vida é muito reduzida, justamente por seu envolvimento com atividades criminosas e suas precárias condições de vida. Jovens comprometidos, a ponto de matar ou morrer a qualquer momento. Meninos que aprenderam que portar armas é um símbolo de poder, respeito, sustento e autoproteção. O controle daquele território pode custar a própria vida. Nada vale mais que isso. Nem mesmo a vida.
No caso de favelas e periferias, a ausência de uma malha de proteção estatal pode dar espaço às tentativas de dominação do território, geralmente acompanhadas de violência, fundadas no discurso da ordem e da punição. A incursão de forças policiais nessas áreas é fortemente impulsionada pela opinião pública e pela mídia, que cada vez mais se tornam elementos determinantes das políticas de segurança.
Quando os controladores das favelas expandem suas regras para atores ou espaços identificados da sociedade, aí o Estado reage energicamente. O cerco do Complexo do Alemão, conjunto de favelas na zona norte, na época do Pan Americano de 2007; o tanque do exército apontado para a comunidade da Mangueira, também na zona norte; a presença da polícia no entorno das comunidades no período eleitoral. Todas essas são imagens que retratam a mesma idéia. O que acontece dentro das comunidades é um problema interno, mas em nome da institucionalidade o que ocorre ali não pode ou não deve extrapolar os limites dessas áreas.
Extorsão e lucros
Grupos criminosos armados se apropriam dos territórios abandonados pelos poderes públicos e lá fazem sua morada, estabelecendo as regras e controlando os serviços essenciais para a população local. Seus lucros são inacreditáveis, mesmo se tratando de áreas pauperizadas, pois oferecem serviços básicos e essenciais para milhares de pessoas: sistema de transporte local, venda de gás, TV a cabo, sistema de segurança, compra e venda de imóveis, entre outros. A combinação de um sistema de venda monopolista e um mecanismo direto de cobrança contribui para a realização de ganhos muito elevados.
Esses espaços urbanos têm ordenamentos próprios, assegurados a partir do controle armado local. As “ordens” são dadas de maneira direta e clara, e são acatadas pelos membros daquela comunidade. Entretanto, quando é preciso estabelecer interlocução com a chamada “sociedade” – que inclui membros do Estado e da iniciativa privada – o interlocutor é necessariamente uma associação local (geralmente a Associação de Moradores). A resistência a esse processo de cooptação de lideranças comunitárias e associações locais, em muitos casos provocou um desfecho trágico, como mortes ou expulsão de famílias inteiras da comunidade.
A reduzida presença de aparelhos públicos e a baixa qualidade dos serviços oferecidos geram impacto negativo sobre as redes de solidariedade locais, que se vêem cada vez mais fragilizadas como canais de mediação e de prevenção da violência.
Ao mesmo tempo, em contraposição ao discurso imobilizador e repressor da violência, as comunidades de baixa renda apontam para novos mecanismos de organização. Pequenas iniciativas locais muito criativas e bem-sucedidas conseguem manter seu funcionamento e atuação graças ao seu forte apelo comunitário e base local. Há boas razões para supor que existem, de forma camuflada e invisível, incontáveis ações espalhadas pelas comunidades brasileiras que produzem iniciativas como os pré-vestibulares comunitários, movimentos de juventude, associações de vítimas e familiares de vítimas da violência, egressos, exemplos da força espontânea e resistente.
São redes respeitadas e mantidas pelo vigor do trabalho de pessoas comprometidas com aquele território ou com seus moradores. Novamente aqui aparece a idéia de proteção do território e identidade cultural. Surgidas do interior da comunidade, essas experiências provocam um choque positivo, enfrentam o isolamento geográfico proposto por grupos armados (que separam para controlar) e reivindicam a presença do poder público como mecanismo legitimador e garantidor da cidadania. Essas micro-iniciativas surgem e desaparecem de forma veloz, de acordo com a dinâmica e acontecimentos locais. Sem a articulação com o poder público elas tendem a ter vida curta e baixíssima influência local.
Uma política de prevenção à violência e reconstrução social é geradora de espaços de diálogo e oportunidades, para isso a ação pública deve ser direcionada ao fortalecimento de grupos locais, por meio de propostas transparentes e duradouras. O grande desafio é que essa política precisa do Estado e não apenas da polícia. Apoiar o fortalecimento dos grupos associativos locais é agir justamente no rompimento do controle armado do território. Trata-se de estimular espaços de mediação de conflitos, oportunidades de trabalho e renda, cursos profissionalizantes e atividades de cultura e esporte.
Os moradores de áreas conflagradas não podem sofrer o duplo castigo da ausência do poder público combinado com a opressão dos grupos armados locais. A questão da violência está na agenda prioritária dos governos e dos indivíduos, e seu combate precisa ser encarado como uma política de Estado, conseqüente e contínua, que privilegie o diálogo e a prevenção, à punição e ao enfrentamento.
Falta talvez aos governantes perceber que todos sairão perdendo enquanto a lógica do enfrentamento armado for o fundamento de uma política de segurança. O caminho da superação dessa violência letal e do processo de integração das cidades fragmentadas é e será mais democracia, mais direitos e mais oportunidades.
*Pedro Strozenberg é diretor executivo do Instituto de Estudos da Religião (Iser).