“Fazer teologia a partir das periferias existenciais”
Em termos mais amplos, a comparação entre religião e cidade impele todos os atores das cidades a pensarem o espaço como um lugar de revelação poética e espiritual, e a recuperarem, por meio de seus Projetos, com P maiúsculo, o sentido das relações entre as pessoas como uma estrutura social sobre a qual reordenar as “periferias existenciais”
Nos dias que antecedem o funeral do Papa Francisco, as imagens que povoam as redes sociais são, principalmente, de dois tipos: aquelas em que ele aparece solitário — ora trágicas, ora solenes, como na Praça São Pedro durante o período da Covid — ou aquelas em que aparece em aglomerações em muitas partes do mundo, como no registro de sua vinda ao Brasil. Todas essas imagens, porém, reforçam sua paixão pela dimensão urbana: “A cidade me encanta, sou um cidadão de alma…”.
Entretanto, a cidade que ele mencionava sempre foi a periferia, ou melhor, algo mais específico: a periferia existencial, a mais difícil e a mais penosa, e que é destacada nas conclusões do grande encontro dos bispos e demais participantes da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe (CELAM) publicada no denominado Documento de Aparecida (2007). Como o próprio documento afirma, “A V Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho é novo passo no caminho da Igreja, especialmente a partir do Concílio Ecumênico Vaticano II”.
Dessa experiência particular de cidadão da metrópole, como se pode ver em uma das imagens mais surpreendentes já registradas, na qual ele está sentado no metrô de Buenos Aires, derivam outras ações e atenções especiais. Dentre outras, sem esquecer o Movimento “Laudato Sì”, basta recordar brevemente duas ações muito significativas, e conceitualmente conectadas, sobre os temas da conversão ecológica e da sustentabilidade total: o compromisso global e a pesquisa internacional de Fare teologia dalle Periferie Esistenziali (Fazer teologia das periferias existenciais), e a reflexão programática sobre os Sfide delle culture urbane (Desafios das culturas urbanas), esta contida na Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” de 2014.
“Fazer Teologia a partir das Periferias Existenciais” é, de fato, um projeto de pesquisa da Seção de Migrantes e Refugiados do Dicastério (tribunal da Cúria Romana) para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral da Santa Sé. Este é um grupo de trabalho internacional com o objetivo de desenvolver essa premissa e renovar a teologia a partir de baixo, do ponto de vista dos marginalizados. O grupo é ainda considerado portador de um saber que o capacita a reabrir o debate sobre Deus, especialmente em lugares degradados por tensões e conflitos. Convicto de que os marginalizados podem ensinar com sua experiência de vida, o grupo destaca o trecho Desafio das Culturas Urbanas, um verdadeiro manifesto para a cidade contemporânea, lançado no início do Pontificado do Papa Francisco e que dá atenção prioritária às energias liberadas espontaneamente nessas mesmas periferias existenciais.
Algumas frases deixam clara a missão da Igreja nesses contextos, que passa, então, a ser a de revelar a espiritualidade latente com naturalidade, valorizando o que se encontra naquele lugar: “Precisamos reconhecer a cidade a partir de um olhar contemplativo”.
Assim, a cidade, habitat de mais da metade da população mundial, emerge como protagonista de toda a exortação apostólica, em muitas passagens nas quais comparece como pano de fundo da vida e como condição para a ativação das relações humanas:
[…] ‘Uma nova cultura pulsa e se projeta na cidade.’ A leitura do assentamento em seus limites físicos, mas também em seu potencial social, torna-se então a base para repensar suas estruturas e configurações: ‘Casas e bairros são construídos mais para isolar e proteger do que para conectar e integrar.’
E ainda:
Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os diferentes, e que fazem dessa integração um novo fator de desenvolvimento! Como são belas as cidades que, mesmo em seu projeto arquitetônico, estão repletas de espaços que conectam, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro!
O que se destaca dessa comparação abre uma perspectiva positiva, que pode ser apropriadamente traduzida para os diversos campos disciplinares, pois abre uma nova abordagem ao contexto físico sobre o qual intervir. Elas falam de uma lógica da projetação com as pessoas, de compartilhar objetivos e de colocar em movimento o desafio coletivo necessário para redimir as periferias. Mas também dizem algo mais: que não faz sentido impor formas ou imaginar um novo mundo ordenado onde as regras parecem ausentes.
Em vez disso, precisamos imaginar uma maneira diferente de captar os sinais de vida, do desejo de criar comunidade. Precisamos nos dispor a assumir uma nova atitude para projetar os espaços de forma mais adequada e coerente com o seu contexto. Em nossas periferias, isso significa conectar núcleos já existentes (edifícios públicos de uso coletivo, como escolas, centros comunitários, postos de saúde, parques e instalações esportivas) por meio de novos caminhos projetados para as pessoas. Na realidade de nossos contextos, isso significa ordenar o espaço urbano para criar lugares para se viver, e viver bem, criando áreas protegidas onde as pessoas possam se encontrar e compartilhar experiências.
Mesmo sem ser um especialista, tais propostas dos documentos supracitados tocam em pontos cruciais do significado do projeto e do seu sentido geral, que podem orientar a Regeneração Urbana e a Renaturalização dos Assentamentos. Em termos mais amplos, portanto, a comparação entre religião e cidade impele todos os atores das cidades (políticos, técnicos, profissionais, pesquisadores e cidadãos, em geral) a pensarem o espaço como um lugar de revelação poética e espiritual, e a recuperarem, por meio de seus Projetos, com P maiúsculo, o sentido das relações entre as pessoas como uma estrutura social sobre a qual reordenar as “periferias existenciais”.
Ao longo da trajetória do Papa Francisco, portanto, esboçou-se um claro legado que se transforma em um dos testamentos espirituais mais concretos para aqueles que trabalham com humanidade, responsabilidade e compaixão nas cidades do mundo.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013).