França pode criar novos entraves para estudantes estrangeiros
O país pode aprovar a criação de uma taxa caução a estudantes de fora da União Europeia. A medida, tida como discriminatória por universitários e reitores, dificultaria o acesso ao ensino francês por estrangeiros – inclusive brasileiros
O governo francês pode adicionar um obstáculo a mais para a entrada de estudantes brasileiros – e de demais nacionalidades de fora da União Europeia – nas próximas semanas. A nova lei sobre imigração, aprovada em dezembro na Assembleia Nacional francesa, contém uma série de medidas para inibir a chegada de migrantes ao país e dificultar a vida daqueles que lá já residem. Uma das cláusulas, porém, atinge em cheio aqueles que desejam estudar na França: a proposta da criação de uma taxa caução para estudantes oriundos de países de fora na União Europeia.
Atualmente, porém, conseguir a licença para estudar no país já é um procedimento com vários custos. “Hoje, o processo para estudar na França já é extremamente custoso. É necessário comprovar uma renda de cerca de €650 euros por mês para que você tenha seu visto de estudante emitido. É questão de ter R$40 mil ou R$50 mil reais na conta, a depender do câmbio do euro”, diz Vanessa Alvarez, advogada e uma das organizadoras do movimento Étudier Est Impérieux. O movimento estudantil surgiu durante a pandemia para ajudar estudantes brasileiros a garantirem suas vagas em universidades francesas em um momento crítico de falta de vacina no Brasil. “Além desses custos, se for criada uma taxa caução, creio que iria realmente impossibilitar que muitos pudessem seguir seus estudos na França”, diz ela.
O projeto de lei de imigração, em que se encontram as cláusulas sobre a proposta da taxa caução, passará na próxima quinta-feira (25) pela avaliação do Conselho de Constitucionalidade francês.
A situação tem gerado uma movimentação entre os estudantes brasileiros. O coletivo Étudier Est Impérieux já encaminhou ao Conselho Constitucional uma carta pedindo atenção com a cláusula da taxa caução, juntamente com estudos realizados pelo Campus France sobre as benesses dos estudantes estrangeiros no país e uma carta protesto assinada por reitores franceses. O movimento também está em contato com o senador Randolfe Rodrigues (REDE), como auxílio para estabelecer um diálogo com o Itamaraty e com o embaixador da França no Brasil.
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o senador reforçou a tentativa de criação dessas conversas e disse confiar na sensibilidade do governo francês. “O governo do presidente Lula tem a melhor relação com o governo do presidente Emmanuel Macron, é um aliado do Brasil, da democracia brasileira. Tenho certeza de que teremos um despertar da sensibilidade francesa para o tema”, disse Randolfe.
O senador lamenta a proposta da caução e diz que trocas históricas entre os dois países sairiam prejudicadas nessa situação. “Vejo que o histórico de intercâmbio entre Brasil e França, entre estudantes, universidades e docentes, sairia prejudicado pela medida. A proposta prejudica principalmente a França, devido às centenas de estudantes brasileiros que lá vivem e movimentam a economia francesa”, declarou.
Para Vanessa, a proposta da nova medida é um contrassenso. “A França sempre foi vista por nós como um país que se preocupa muito com a questão do acesso à educação. Muitas pessoas vão para lá estudar porque a maioria das universidades são públicas. É um pouco irônico, 2025 é o ano do Brasil na França, tantos encontros diplomáticos e políticos… Seria incoerente que a caução fosse aprovada, não só para os estudantes brasileiros, mas para todos os estudantes estrangeiros”, diz a advogada que recentemente terminou seu mestrado em direito internacional na Universidade Paris 1.
Reações contra a taxa caução também acontecem na França
A proposta não tem sido bem recebida no país. Após a nova lei sobre imigração ter sido aprovada na Assembleia Nacional, em meados de dezembro, reitores de universidades, juristas, artistas e empresários têm protestado contra as novas propostas que constam no projeto. Um número considerável de artigos é considerado xenófobo, mas há anos são defendidos por partidos de direita e extrema direita, sob o argumento da “preferência nacional”, que se apoia na ideia de França para os franceses.
Um abaixo-assinado chegou a ser lançado por reitores franceses pedindo a revogação do artigo L412, que discorre sobre a criação da caução aos estudantes de fora da União Europeia. Em poucas horas, o documento já contava com a adesão das principais universidades públicas de todo o país. O abaixo assinado diz que os estudantes internacionais são uma “riqueza” para a França e que criar entraves para sua estadia no país é contra os princípios básicos que fundam as universidades francesas.
Outra petição, lançada pelo jornal L’Humanité, pede ao presidente Emmanuel Macron que não promulgue o texto aprovado. O documento já conta com mais de 11 mil assinaturas, entre nomes de escritores e cineastas renomados, assim como das prefeitas de Paris e de Lille.

Diante da desaprovação generalizada, Macron reconheceu que um depósito de caução para estudantes estrangeiros “não era uma boa ideia”. Sylvie Retailleau, ministra do Ensino Superior, chegou a pedir demissão, mas o presidente pediu que ela seguisse no cargo. Na tentativa de atenuar as tensões em torno da medida, hipóteses começaram a ser lançadas sobre a caução ser apenas um valor simbólico – de €10 ou €20 euros. “A gente não sabe qual seria o valor da caução”, conta Vanessa. “Já foi especulado que seria em torno de €650 euros (como para retirar o visto), outros dizem que seria o valor de deportação do estudante… O próprio projeto de lei diz que o Conselho de Estado é quem será responsável por fixar um valor. De qualquer forma, tornaria o processo mais custoso”, diz.
Independente do valor a ser requisitado, a estigmatização dos estudantes estrangeiros segue. Vanessa conta que ela e seus colegas do movimento sempre notaram a presença majoritária de estrangeiros em suas aulas – bem como seu interesse pela vida universitária. “Mesmo quando eu estava no mestrado, na minha sala havia mais estrangeiros do que franceses. Esse projeto de lei de imigração é muito triste, ele começa a mudar muito do que significa a França para nós hoje”, conta.
Estudantes estrangeiros trazem lucro à França, não despesa
Um estudo realizado em 2022 pelo Campus France, agência oficial do governo francês responsável pela promoção do ensino superior na França, mostrou como o país ganha em diversos aspectos ao atrair estudantes de outras nacionalidades.
As universidades francesas recebem por ano 400 mil estudantes estrangeiros. Somando seus gastos com matrícula, moradia, alimentação, transporte, lazer e até contribuição social – quando trabalham as 20 horas autorizadas por semana – um único universitário estrangeiro gasta, em média, € 867 euros por mês. No ano do levantamento, os estudantes geraram para a economia francesa € 5 bilhões, enquanto representaram € 3,7 bilhões de despesa pública. Os dados do estudo desmentem os argumentos da extrema direita, que coloca os estrangeiros como um gasto para a França.
“Os estudantes e pesquisadores brasileiros sempre têm sido muito bem-vindos na França. Muitos estudos ressaltam a contribuição positiva da mobilidade internacional para todos os atores do processo, indo além das meras dimensões financeiras imediatas”, diz Eric Bourland, coordenador do Campus France Brasil. Segundo ele, após ultrapassar 400 mil estudantes estrangeiros acolhidos no prazo de um ano acadêmico, número alcançado em 2022, o sistema “Bienvenue en France” demonstrou seu sucesso. “A estratégia revela o esforço institucional da França para criar melhores condições de estudos e de vida para os estudantes internacionais, assim como o papel dos universitários não apenas na vida acadêmica, mas também na economia e na promoção global da abertura cultural”, finaliza.
Macron vestindo demandas da extrema direita?
O presidente Emmanuel Macron venceu sua principal adversária da extrema direita, Marine Le Pen, nas últimas duas eleições presidenciais – em 2017 e 2022. O segundo mandato, porém, veio com uma diferença apertada de votos. Atualmente sem maioria no Parlamento, o governo aliou-se de forma mais estreita com a direita francesa, a fim de mostrar ao eleitorado de base, que quase elegeu Le Pen na última votação, que também era capaz de adotar medidas que os agradassem. A estratégia, porém, acabou atraindo para o governo Macron pautas da extrema direita e fortalecendo as ideias da opositora.
No momento, os rivais políticos estão em campanha para as eleições do Parlamento Europeu, que acontecem em junho deste ano.
Conselho Constitucional barra medida da caução
No último dia 25 de janeiro, o projeto passou por avaliação do Conselho de Constitucionalidade francês, que reprovou uma série de artigos presentes na Nova Lei de Imigração – entre elas, a proposta de criação de uma taxa caução para estudantes estrangeiros.
Assim, estudantes brasileiros não terão que pagar uma taxa a mais para estudar no país devido a decisão.
Samantha Prado é jornalista formada pela USP, com passagem pelo Le Monde Diplomatique Brasil, Agência Pública e UOL.