Frigoríficos: a banalização do sofrimento dos trabalhadores
Acidentes de trabalho, doenças ocupacionais, vidas perdidas, fraturas, queimaduras, amputações, cortes, lacerações, contusões, infecções por Covid-19. Essas e muitas outras realidades, que apontam para um adoecimento sistêmico, estão na ordem do dia de uma das atividades econômicas mais lucrativas do Brasil: o setor de frigoríficos
O elevado número de acidentes e doenças relacionados ao trabalho nos frigoríficos é digno de nota no Brasil. O país ocupa, no contexto dos países do G-20 e das Américas, o segundo lugar em mortalidade no trabalho, com 8 mil óbitos a cada 100 mil vínculos de emprego. Entre os setores com destacado aumento do número total de acidentes notificados está justamente o de abate de suínos, aves e outros pequenos animais (de 10.880 acidentes em 2019 para 12.179 em 2020, com elevação de 12%). Os dados são do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, elaborado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O cenário, já preocupante em termos de saúde e segurança no trabalho, agrava-se ainda mais quando analisamos o contexto da pandemia do novo coronavírus (Covid-19). A pandemia já respondia por 10% dos acidentes de trabalho do Brasil nos três últimos meses de 2020, com 10,8 mil trabalhadores afastados em virtude da doença. Atrás apenas daqueles ligados à saúde, aparece o setor econômico dos frigoríficos: ao todo, foram 2,8 mil afastamentos apenas naquele trimestre.
A realidade do adoecimento em virtude da Covid-19 entre os trabalhadores ligados ao setor de frigoríficos, aliás, resultou na suspensão parcial/total das atividades de diversos desses estabelecimentos em ações que tiveram a iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT). No Rio Grande do Sul, uma das regiões que mais desenvolve a atividade de processamento e abate, com 21 frigoríficos em 16 municípios, já eram mais de 60 mil casos confirmados da doença entre trabalhadores até julho de 2020. Até junho daquele ano, cinco frigoríficos do Estado já haviam sido interditados, de forma parcial ou total. Segundo levantamento do MPT, até junho de 2010, os frigoríficos concentravam 34,63% dos casos de Covid-19 no Rio Grande do Sul divulgados pela Secretaria de Saúde do Estado.
Levantamento da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac) revela que o setor do agronegócio, incluindo frango, suínos e bovinos, emprega hoje aproximadamente 800 mil pessoas no país. De acordo com estimativas da Confederação, de 25% a 50% podem ter se infectado em decorrência da atividade nas fábricas.
Paralelamente a essa preocupante realidade para a saúde e a segurança está a da lucratividade desse setor econômico. Considerando-se apenas os valores obtidos pela exportação da carne bovina, o faturamento, em 2019, bateu recordes. Foram negociadas 1,84 milhões de toneladas de produtos (processados e in natura), um faturamento na casa dos US$ 7,59 bilhões, valor 12,5% superior a 2019. Vendendo para um mercado já consolidado, a exemplo de países como China e Rússia, a realidade demonstra a aceitação da mercadoria brasileira no exterior, bem como a sua competitividade.
Essas informações apresentam o contraste entre adoecimento e lucratividade. Afinal, o que esses números, de fato, representam? Para nós, do campo do Direito, certamente sobressai o fato do trabalho no setor de frigoríficos ter deixado de ser, há muito tempo, um problema confinado em determinada empresa, ou em determinado município, ou mesmo em determinado estado da federação. Trata-se, sem dúvida, de uma questão nacional.
Os casos de interdição de estabelecimentos revelaram, na prática, a banalização do sofrimento ocasionado pelas condições de trabalho que, no Brasil, são ofertadas nos frigoríficos, além da impressionante constatação do descaso que gera a contaminação de trabalhadores e suas famílias em razão da proliferação do novo coronavírus. A indicação é de um grave problema de saúde e segurança ambiental, ausente em tal segmento econômico.
Evidentemente, o que se começa a refletir é se essa produção econômica brasileira observa patamares de sustentabilidade. E quando se fala em sustentabilidade, isso inclui, necessariamente, a sustentabilidade ambiental trabalhista. Nas economias mais avançadas do mundo, há um claro movimento em favor de produções sustentáveis; com selos de sustentabilidade; compromissárias do equilíbrio tanto do meio ambiente natural como do trabalho. Até aqui, porém, o que se observa, é que produção brasileira teria e tem dificuldades de ser atestada em termos de contribuição para um desenvolvimento efetivamente sustentável, compromissária com a Agenda 2030 da ONU, cumprindo lembrar que o Objetivo nº 8 envolve trabalho decente e desenvolvimento econômico (e não ou).
É importante, porém, mencionar que, embora a pandemia e a atuação do sistema de Justiça tenham conferido visibilidade nacional e internacional à questão da segurança e da saúde no trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados – ou a falta de segurança e saúde – o problema transcende esse momento extravagante. Os graves problemas de adoecimentos provocados pelo modo de produção no setor de frigoríficos são anteriores. A pandemia apenas os evidenciou e trouxe à tona, mais do que nunca, a importância de um debate que possa corrigir, alterar e retirar o Brasil desse ciclo de produção de doentes que marca a história do setor de frigoríficos.
Paralelamente à contaminação pelo novo coronavírus, o desrespeito aos limites da jornada de trabalho, o desgaste do corpo do trabalhador imposto por ritmos extenuantes de labor, acidentes do trabalho e assédio moral são relatos que, com alguma constância, aparecem nas discussões jurídicas que envolvem as condições concretas de trabalho no referido setor. São temas que chegam diariamente às portas da Justiça do Trabalho, representando, na prática, o desrespeito a direitos básicos garantidos a todos pela Constituição Federal de 1988.
Observando esse quadro, que inclusive expõe a imagem do Brasil na cena internacional, o que se espera dos poderes constituídos, incluindo o Judiciário, o Legislativo e o Executivo, é que possam dar respostas satisfatórias em favor da preservação da vida, da saúde, do equilíbrio ambiental e do desenvolvimento econômico sustentável, observando-se a tendência mundial de valorização da referida sustentabilidade.
A indústria frigorífica brasileira, que conquistou o mercado internacional, é vista como orgulho para o país. De fato, Estado e sociedade têm interesse na manutenção e no aperfeiçoamento desse segmento econômico, que gera diversos empregos formais e possui cadeia produtiva muito longa. Além disso, a arrecadação propiciada por tais empresas representa montante relevante no que diz respeito ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Todavia, para a fiscalização do trabalho, os trabalhadores, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e o Poder Judiciário Trabalhista, aparece uma faceta diferente, qual seja, a de um setor econômico que, desenvolvendo as suas atividades, ainda deixa um rastro de trabalhadores doentes. Trata-se de uma conta que não fecha: as empresas produzem mais doentes do que a cobertura propiciada pela arrecadação de valores pagos a título de seguro social.
Nesse cenário, merece destaque o advento em 2013 da Norma Regulamentadora nº 36, que estabelece os requisitos mínimos para a avaliação, controle e monitoramento dos riscos existentes nas atividades desenvolvidas na indústria de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano. O objetivo da Norma, construída a partir de diálogo tripartite (empregados, empregadores e governo), é garantir permanentemente a segurança, a saúde e a qualidade de vida no trabalho.
A NR, por si só, não resolveu as complexas questões envolvidas no trabalho em frigoríficos, com movimentos repetitivos, controle rígido das pausas para descanso, estabelecimento de metas de produtividade numérica, entre outras. Mas a sua observância, sem dúvida, constitui parâmetro mínimo de segurança ambiental, contribui para diminuir o número de doenças e de acidentes e, além disso, confere à fiscalização do trabalho no Brasil parâmetros juridicamente mais seguros para o desenvolvimento das tarefas de prevenção e orientação.
Seria possível afirmar, em 2021, que o poder público tem atuado pela saúde e segurança desses trabalhadores, pela valorização da sustentabilidade, em favor da vida, incrementando os parâmetros de segurança ambiental? A resposta, infelizmente, é negativa, ante a falta de políticas públicas consistentes que representem uma agenda nacional em favor do trabalho digno e valorizado para esses milhares de trabalhadores.
Um dos exemplos que vai na contramão do que se esperaria do Brasil, sob a melhor luz do estado democrático de direito, é, por exemplo, a tentativa de revisão da NR 36, não para aprimorá-la, em um momento em que a crise sanitária expõe, gravemente, a saúde dos empregados. Sob a justificativa, equívoca, de simplificação, modernização, desburocratização e harmonização, as pausas dos trabalhadores estão na mira.
Especificamente direcionado ao setor de frigoríficos e, também indo de encontro aos preceitos de um Estado compromissário dos direitos sociais, tramita, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2.363/11. O PL limita pausas de recuperação do frio aos empregados que trabalham em ambientes com temperaturas inferiores a 4ºC e àqueles que movimentam mercadorias do ambiente frio para o quente, com variação de 10ºC entre os ambientes laborais. Almeja-se suprimir um intervalo previsto na legislação brasileira desde 1943, para assegurar que o organismo das pessoas se recupere da exposição ao frio intenso, prevenindo doenças ocupacionais.
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Trata-se de uma proposta legislativa que não vem acompanhada de nenhum estudo técnico sobre o impacto ambiental trabalhista, ou seja, não apresenta, como deveria, os números e as estatísticas dos adoecimentos, que estejam relacionados ao tema das pausas durante a jornada, e como essa mudança legislativa poderia ajudar a diminuir os infortúnios. E, talvez, a proposta sequer pudesse mesmo contemplar esses importantes estudos na medida em que a prática e a experiência laboral revelam justamente o contrário, ou seja, a aprovação do projeto tenderá a agravar a situação de adoecimento e de infortúnio laboral.
Estudo realizado pelo Ministério Público do Trabalho revela que o retrocesso representado pelo PL significaria a supressão de pausas térmicas para, nada mais nada menos, do que 95% dos trabalhadores de frigoríficos, o que é inadmissível.
Em termos jurídicos, a Constituição assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. É garantido, ainda, seguro contra acidentes do trabalho, a cargo do empregador, mas sem excluir a indenização por este último devida em caso de dolo ou culpa. Em termos constitucionais, o meio ambiente, enquanto bem essencial à sadia qualidade de vida, foi alçado ao patamar de direito fundamental. São essas as normas que o sistema de justiça deve se compromissar em cumprir.
Atacar as pausas legalmente previstas e os avanços, não suficientes, mas possíveis, como os presentes na NR 36, é assumir que o compromisso é com o retrocesso, e nunca com o avanço. E no Brasil de hoje se clama por respeito à saúde e à vida das pessoas.
Os frigoríficos exercem uma atividade essencial, sim, que é a do abastecimento alimentar. Um setor econômico que traz lucros para o Brasil e é valorizado no exterior. Porém, nada disso pode se dar a custo da vida e da saúde.
A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, a Magistratura do Trabalho, seus magistrados e magistradas mantêm o compromisso com discussões públicas e transparentes que visem a incrementar as normas de proteção jurídica em favor da vida e do desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo.
Não é sustentável o desenvolvimento econômico que ignora a situação concreta da produção exponencial de doentes em razão do modo como a produção em frigoríficos se organiza.
O nosso compromisso deve ser com o trabalho decente para todos e todas, como condição para que o crescimento econômico represente desenvolvimento em favor das pessoas.
Noemia Aparecida Garcia Porto é doutora e mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), juíza do Trabalho na 10ª Região (DF e TO) e presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) no biênio 2019/2021.