Giacomo Matteotti: a história do esquecido “mártir socialista”
A memória do deputado serve de exemplo para negar aos avanços dos diversos neofascismos existentes nos dias atuais
O ano era 1924. Um jovem deputado socialista se dirige à Câmara dos Deputados, declarando publicamente que as eleições realizadas no mês anterior eram nulas. Desde 1919, quando foi eleito ao parlamento italiano, opôs-se veementemente à violência utilizada pelos “camicie negre” – grupos paramilitares fascistas apoiadores de Mussolini. De todo parlamento, a figura desse político se distinguiu pela sua forte personalidade, pela sua coragem e por sua combatividade. Após a votação do pedido de anulação das eleições não ter sido acatada pela maioria, o socialista foi reconhecido por toda imprensa italiana como a principal figura de oposição do fascismo.
Giacomo Matteotti nasceu em Fratta, uma pequena cidade na região da Polesine, no dia 22 de maio de 1885. Filho de Girolamo Matteotti e Elisabetta Garzarolo, ricos comerciantes de ferro e cobre na província de Rovigo, a cerca de quinze quilômetros de sua cidade. Além de proprietário de terras, seu pai esteve envolvido em suspeitas de agiotagem.
Giacomo, mesmo inserido na alta burguesia de sua região, desde cedo aderiu ao movimento socialista e engajou-se ativamente na política, junto aos seus irmãos Matteo e Silvio. Não se sabe ao certo, mas uma das possibilidades de interesse pelo engajamento político dos irmãos Matteotti se deu pela pobreza extrema e fome que os camponeses de Polesine viviam, em grande parte por culpa de seu pai. Seus primeiros artigos assinados na revista “La lotta” foram feitos ainda criança, que lhe renderam prestígio na política local, tornando-se referência. Giacomo observava a política como um cenário de empenho pelo bem comum e pelo exercício da justiça social, acompanhado da perspectiva cívica oposta à intervenção italiana em conflitos bélicos. Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, o jovem adotou um pensamento antibélico e antimilitar intransigente, testando todos os meios para impedir a intervenção italiana (discursos, manifestações, artigos etc.).
Foi eleito para o Parlamento italiano em dezembro de 1919, tornando-se conhecido e amado pelos camponeses e pobres da região, porém odiado pelos ricos comerciantes que o apelidaram de “o socialista envolto em peles” ou de “socialista milionário”, em alusão à sua classe de origem. Os duros ataques que Matteotti sofria vinham, grande parte, dos seus agora adversários políticos e da imprensa católica e liberal de Polesine. Tendo conhecido bem o fascismo desde suas origens, nunca deixou de bradar contra o perigo representado por este novo movimento, sempre incitando o seu partido a fazer oposição.
Antes disso, foi aluno na Faculdade de Direito de Bologna, uma das mais tradicionais da Europa, onde se licenciou com excelentes notas em 1907, após engajou-se na atividade política como presidente da câmara de sua cidade natal e de outras cidades no entorno, até sua chegada ao cargo de conselheiro de província.
Alfredo Rocco, presidente da Câmara dos Deputados, passa a palavra ao deputado Matteotti. Antes de se pronunciar, já começam os zumbidos. Um homem só, aparentemente desamparado, anunciando um véu de incômodo e aversão. Não seria para menos: em seus quatro anos de mandato, Giacomo havia pronunciado 106 discursos. Seu aspecto magro, com raros sorrisos de gengivas retraídas, despertava a admiração de alguns, mas a irritação, o tormento, e o rancor de seus adversários – inclusive de seus companheiros de partido.
O dia era 30 de Maio de 1924. Diante dos impropérios que o submerge, permaneceu imperturbável. Acusa, sem medo, que o governo de Mussolini, para constranger os eleitores, se utilizava de uma milícia armada. “Existe uma milícia armada”, (interrupções à direita, rumores prolongados), “há uma milícia armada” (protestos prolongados). Todos nessa altura do campeonato se calariam, mas Matteotti desafia a tempestade e inicia em bom tom a lista de violações que o governo fascista praticou. Entre gritos de “não é verdade, não é verdade”, rumores, interrupções e injúrias, o deputado socialista continua sua denúncia. Enquanto isso, um deputado fascista de nome Giacomo Suardo, não tendo mais forças para continuar com o barulho, se retira da câmara em protesto.
O discurso de Matteotti continua, sob provocações, ameaças e interrupções dos fascistas, como Farinacci – conhecido como o “mais fascista dos fascistas”, Teruzzi, Presutti, Finzi, Greco, Gonzalez. O orador, por fim, não se deixa abalar.
“(…) A eleição é essencialmente inválida em todos os círculos eleitorais. (…) Pela sua própria confirmação (dos parlamentares fascistas), portando nenhum eleitor italiano se viu livre para decidir com sua vontade. (…) Existe uma milícia armada, composta por cidadãos de um único partido, que tem a tarefa declarada de apoiar com força um determinado Governo, mesmo que lhe falte consenso”. Matteotti, discurso em 30 de Maio de 1924.
Mais uma vez, o orador é engolido por gritos de ameaça e desprezo. Seu discurso tem dois alvos: em primeiro lugar, seus inimigos declarados, do governo fascista; em segundo lugar, contra seus amigos socialistas propensos à colaboração.
“Vocês que atualmente possuem o poder e a força, que se vangloriam da própria potência deveriam, mais que todos aqui, serem capazes de fazer cumprir a lei. (…) Nós, todavia, deploramos que se queira demonstrar que somente o nosso povo no mundo não sabe manter-se de pé sozinho, e deve ser governado pela força. Nosso povo foi se recuperando e se educando, se reerguendo e se educando. Você quer nos empurrar de volta, vocês o devolveram o atraso. (…) Acreditamos que estamos a recuperar a sua dignidade ao pedir ao Conselho Eleitoral que adie as eleições afetadas pela violência”. Matteotti, discurso em 30 de Maio de 1924.
Durante seu centésimo sétimo discurso, Matteotti esteve diante de um Mussolini calado, sentado á mesa da presidência, ostentando a indiferença, como se a tempestade que passava pelo plenário, à sua frente, fosse somente uns pingos. Permanecia lendo jornais, fazendo pequenas anotações a lápis e batendo com sua ponta na madeira da cadeira. Todavia, ao sair do Parlamento, os repórteres o viram lívido, com o resto tenso e preocupado.
Enquanto isso, ao terminar o discurso, o político socialista dirigindo-se a Cosattini, sentado ao seu lado, e aos demais presentes, diz: “Já fiz meu discurso. Vocês agora preparem o discurso para mim no meu funeral”.
Sequestro e morte
Dez dias após o histórico discurso, um pouco depois das 16h, ao sair de casa Matteotti foi atacado e levado à força em um carro por cinco fascistas, posteriormente identificados como Dùmini, Volpi, Viola, Malacria e Poveromo. Durante o trajeto, Giacomo tentou se defender e reagir, mas foi dominado e esfaqueado. Seu corpo foi encontrado somente dois meses depois, no mato de Quartarella, em Riano, município que fica a poucos quilômetros de Roma.
Renato Barzotti, de 10 anos na época, foi testemunha ocular do sequestro de Matteotti. Em depoimento, explicou com suas palavras o que aconteceu.
“Eram 16h30 e estava brincando com meus colegas. Perto de nós tinha um carro, estacionado na frente da Via Antonio Scialoja. Dele saíram cinco rapazes que começaram a andar para cima e para baixo. De repente vi Matteotti sair. Um dos caras foi em sua direção e desferiu um soco violento que o fez cair. Matteotti pede ajuda. Então aparecem os outros quatro e um deles o golpeou duramente no rosto. Pegaram (Matteotti) pela cabeça e pelos pés e botaram dentro do carro que passou perto de nós. Assim pudemos ver que Matteotti estava lutando. Depois não vimos mais nada”.
Velia Matteotti passou a noite toda à espera do marido, e chegou a alertar seus partidários sobre o desaparecimento no início do outro dia. A notícia do sumiço do deputado conhecido como “tempestade” se espalhou. Um misto de pânico tomou não somente a oposição, mas o próprio Mussolini, que se viu cada dia mais encurralado sob a acusação de ter sido o mandante do crime.
Mussolini e a responsabilidade do assassinato
Em 3 de janeiro de 1925, no Parlamento italiano, Mussolini assume o mando do assassinato do deputado socialista Matteotti, sendo que mais tarde se aproveitaria da instabilidade e do apoio do rei para concretizar o seu regime ditatorial fascista.
“Eu declaro perante a assembléia e perante o povo italiano que assumo a responsabilidade política, moral e histórica de tudo o que aconteceu.”
Ao invés de uma sonora oposição e acusação, se ouve um forte clamor: “todos com o senhor, todos com o senhor, primeiro-ministro!”
Se o principal nome que denunciava o autoritarismo fascista foi morto a mando de Mussolini não temos total certeza, mas o recado foi dado de modo contundente num contexto instável econômico e político. Uma das suspeitas recai no Duce por conta do seu comentário com o chefe da polícia secreta fascista, após o discurso do dia 30 de Maio: “Matteotti não deveria seguir em circulação”. Durante vinte anos, a figura de Giacomo foi banida em toda Itália. A pronúncia de seu nome poderia custar caro. O símbolo do antifascismo encarnado em sua atuação política era uma ameaça real. Nem mesmo a própria esquerda ousava levantar a bandeira do martírio de seu expoente deputado.
Marzio Breda e Stefano Caretti chamam–no, na capa do livro dedicado à sua memória, de “um herói esquecido”. Giacomo Matteotti não apenas se tornou um símbolo de resistência ao totalitarismo fascista, mas um importante nome na luta pela união das esquerdas. A desunião, no seu ponto de vista, era a porta pela qual os discursos totalitários entravam e faziam morada na democracia. A democracia, dessa forma, estaria muito mais sólida pela união do que pela divisão, através de um bloco que sustentasse uma oposição forte. Instável, a esquerda sucumbe à violência fascista, tanto no discurso quanto na ação. O líder socialista fez um discurso que lhe custou a vida, defendendo a liberdade política e a democracia, justificando que evocar sua memória é dizer “não” aos avanços dos diversos neofascismos existentes nos dias atuais.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras.