Gibraltar, última colônia da Europa
Ao votarem maciçamente contra o Brexit, os habitantes de Gibraltar mostraram seu vínculo com a União Europeia, que lhes concede diversos privilégios e funciona como mediadora com a Espanha. Com superfície equivalente à de um bairro, o território é um dos mais ricos do mundo e o último a ser descolonizado na EuropaLola Parra Craviotto
Ao votarem maciçamente contra o Brexit, os habitantes de Gibraltar mostraram seu vínculo com a União Europeia, que lhes concede diversos privilégios e funciona como mediadora com a Espanha. Com uma superfície equivalente à de um bairro,
o território é ao mesmo tempo um dos mais ricos do mundo e o último que sobrou para ser descolonizado na Europa Pouco antes do pôr do sol, dezenas de carros e motos se aglutinam diante do posto da alfândega. Na saída de Gibraltar reina uma atmosfera de angústia e insatisfação. Os trabalhadores da fronteira vão ter de esperar até duas horas para chegar a La Línea de la Concepción, uma cidade de ares andaluzes, que fica 100 metros adiante. Vestidos de verde-escuro, armados de revólveres e cassetetes, os agentes da Guardia Civil – força de polícia espanhola com status militar – verificam minuciosamente os veículos, garantindo que não transportem produtos de contrabando dissimulados em um fundo falso. No território espanhol, o tráfico ilícito de tabaco é um negócio lucrativo: na véspera de nossa passagem, a polícia tinha apreendido 70 mil maços, o equivalente a 315 mil euros em mercadoria. Em 2015, mais de 330 mil maços foram confiscados. Oficialmente, os moradores da região têm direito a quatro maços por passagem, e os turistas, a dez.
Colônia da Coroa britânica localizada ao sul da Espanha, Gibraltar não faz parte do espaço Schengen. As autoridades ibéricas podem assim reforçar os controles nas fronteiras dessa zona franca, onde bens e serviços são isentos de impostos sobre o consumo.1 “Nos últimos anos, a crise econômica que atinge a Espanha levou alguns desempregados ao contrabando, uma prática que elevou a quantidade de tabaco confiscado”, explica um membro da Guardia Civil. Elas passaram de 147 mil maços em 2008 para cerca de 1 milhão em 2013, mas, precisa ele, “a assiduidade dos controles varia de acordo com o humor do governo”.
As autoridades espanholas, que reclamam a soberania da colônia, utilizam para fins políticos as inspeções alfandegárias, que se acrescentam às da polícia na fronteira do espaço Schengen e entravam a circulação na zona. Se os litígios estavam calmos na administração do socialista José Luis Rodríguez Zapatero (2004-2011), a chegada ao poder, em 2011, dos conservadores do Partido Popular (PP) reavivou a reivindicação desse território de vocação militar, cedido perpetuamente aos britânicos pelo Tratado de Utrecht, em 1713. O acordo de paz, que pôs fim à Guerra de Sucessão da Espanha, previa duas restrições: a Espanha teria prioridade de retomada em caso de retirada britânica, e Londres velaria para que a península não se tornasse um ambiente de contrabando e para que os culpados fossem “severamente castigados” (artigo 10 do tratado). “Nunca abandonada, a ambição de recuperar o rochedo [o apelido dessa colônia coroada por um monólito calcário de mais de 400 metros] ressurgiu durante a ditadura de Francisco Franco [1939-1975], que chegou ao ponto de fechar a fronteira a partir de maio de 1968”, lembra Jesús Verdú, professor de Direito Internacional da Universidade de Cádiz. “Então vista como inimiga, a colônia ainda hoje atiça os sentidos patrióticos dos espanhóis. No entanto, existe muita desinformação sobre o que é realmente Gibraltar: o motor econômico da zona.”
A maioria dos 120 mil habitantes do Campo de Gibraltar, uma comarca (divisão administrativa espanhola) vizinha de 1.500 quilômetros quadrados formada por sete municípios espanhóis, opõe-se à restituição do rochedo. Na região assolada pelo desemprego de 35%, a colônia gerou em 2013 cerca de 25% do PIB, duas vezes mais que seis anos antes, segundo um relatório publicado em 2015 pela câmara do comércio local. “Aqueles que perderam o emprego depois da crise de 2008 encontraram um rapidamente aqui, onde o desemprego praticamente inexiste”, indica Edward Macquisten, gerente da Câmara do Comércio de Gibraltar. “Em 2015, contávamos com cerca de 24.500 ativos, ou seja, 7.500 a mais que uma década atrás. Um terço era gente da fronteira. Além disso, o PIB local ultrapassa 1,90 bilhão de euros, o dobro do que era em 2008.” Essa “pedra” de 6,8 quilômetros quadrados e 30 mil habitantes se tornou o quinto território mais rico do mundo, com mais de 64 mil euros de renda anual per capita.
Depois de ter assumido em 2002 compromissos visando “melhorar a transparência e colocar em ação trocas de informações em matéria fiscal”, o território não é mais considerado um paraíso fiscal pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE).2 No entanto, com um imposto sobre o lucro de 10%, contra 30% na Espanha, seu regime fiscal atrai empresas, que o elegem como domicílio apenas para reduzir os custos de funcionamento, mas exercem suas atividades em outros países. Assim, 20% dos veículos do Reino Unido são segurados por companhias domiciliadas em Gibraltar, e os britânicos efetuam 70% de suas apostas virtuais ali. Pioneira na legalização do jogo on-line, a colônia atraiu os vinte principais cassinos da web.
Madri não reconhece o espaço marítimo
Sob o sol mediterrâneo, a vida é bem mais agradável do que em Londres, e o estresse, menos palpável. A taxa de criminalidade é quase nula. Para um britânico, a eletricidade, o telefone e os aluguéis custam mais barato nessa cidade fortemente impregnada do estilo british, equipada de caixas de correio e cabines telefônicas do mesmo vermelho que se vê ao norte do Canal da Mancha. Mas os preços de moradia ainda são muito elevados para os moradores do Campo de Gibraltar, dos quais um em cada dez trabalha no rochedo: um aluguel ali pode ser até três vezes mais elevado do que em La Línea de la Concepción. Os fronteiriços são os primeiros afetados pelo litígio geopolítico. “Quando as autoridades espanholas fazem pressão na alfândega para perturbar os llanitos [apelido dos habitantes de Gibraltar] e limitar os fluxos turísticos, elas punem principalmente seus próprios cidadãos”, estima Juan, gerente de um albergue em La Línea de la Concepción. “O aumento dos controles nestes últimos anos empobreceu ainda mais a zona.”
Comuna vizinha espanhola mais próxima, La Línea de la Concepción se revela bem menos amena. Diversos comércios tiveram de fechar as portas. Outros constataram uma queda na atividade de cerca de 50%, e até mesmo os bistrôs se esvaziam. “O turismo diminuiu na zona, e inclusive nós, gibraltarinos, evitamos ir para o território espanhol, como fazíamos antes”, explica Gemma Vásquez, presidente da Federação das Pequenas Empresas de Gibraltar. “Nosso dinheiro sai menos daqui, porque hesitamos antes de ir beber alguma coisa barata do outro lado da fronteira, por causa dos longos controles de alfândega, assim como os ataques contra nossos veículos, que se intensificaram nestes últimos anos.”
O aumento da tensão data do verão de 2013, quando Gibraltar proibiu fisicamente a pesca com rede ao instalar um recife artificial de setenta blocos de concreto fincados em espetos. A iniciativa “ecológica” provocou a ira da Espanha, que não reconhece águas territoriais à colônia e tomou medidas de retaliação aumentando o controle na fronteira. “Essa negação da soberania de um território sobre as águas adjacentes é uma interpretação contrária à Convenção das Nações Unidas sobre o direito do mar de 1982”, explica Jesús Verdú. “Um nonsense, quando sabemos que no século XIX a discussão era sobre a delimitação dos espaços marítimos entre a colônia e seu vizinho hispânico.”
Ao litígio relativo às águas territoriais se acrescentou o sobre o espaço aéreo. A localização do aeroporto local é contestada, pois pertence a uma zona que os gibraltarinos se auto-outorgaram no século XIX. Em 1854, a febre amarela atacava a colônia, e os espanhóis cederam a seus vizinhos o direito de instalar um acampamento temporário para os doentes além dos limites terrestres fixados pelo Tratado de Utrecht. No entanto, o acampamento se perenizou ao final da epidemia. Por meio do Acordo de Córdoba, em 2006, o antigo governo socialista tentou uma aproximação com os britânicos e estabeleceu pela primeira vez ligações aéreas entre a Espanha e Gibraltar, mas rapidamente a nova administração revogou essa convenção. Desde então, nenhum avião decolando desse aeroporto tem o direito de sobrevoar o espaço aéreo espanhol. E Gibraltar foi afastado do projeto de Céu Único Europeu.
Ainda que seus habitantes tenham votado maciçamente (96%) pela manutenção do Reino Unido na União Europeia, a península se beneficia de um estatuto único e tem os privilégios de diversas disposições comunitárias: além de ser dispensada de aplicar a TVA (Taxa sobre o Valor Agregado), ela não é implicada nem na União Alfandegária, nem na política comercial, nem na política de pesca comum.
“Desde o Brexit, os vizinhos dos dois lados da fronteira se preocupam. A economia aqui é muito dinâmica em grande parte graças ao estatuto particular de Gibraltar na União Europeia”, prossegue Verdú. “As empresas que se realocaram aqui podem procurar uma nova sede em outro lugar da Europa. Em outras palavras, Bruxelas não será mais mediadora em um contexto de crise política entre Gibraltar e a Espanha.” No entanto, ainda não se sabe quais serão as consequências reais do Brexit, e muitos habitantes continuam confiantes. “Ao longo dos séculos, os llanitos viveram na adversidade e sempre souberam se adaptar”, declara Macquisten. “Aqui, vive-se em comunidade, todos são muito unidos, e as pessoas, muito empreendedoras, sabem aproveitar a menor oportunidade que se apresenta.”
A Espanha vê o Brexit como uma chance. Assim, o ministro das Relações Exteriores, José Manuel García-Margallo, apressou-se em propor uma cossoberania temporária que teria por finalidade a anexação espanhola do território. Ainda que tal dispositivo possa permitir que permaneçam na União Europeia, os residentes de Gibraltar se opõem firmemente a isso. Entre outros fatores, o PP exclui qualquer negociação direta com seus representantes e se recusa a reconhecer a esse território outro status além do de uma colônia, em conformidade com a decisão da ONU de classificá-lo entre os espaços não autônomos a serem descolonizados. “Desde os anos 1960, a Espanha invoca o princípio da integridade territorial, argumentando que a tutela britânica sobre Gibraltar destrói sua unidade nacional. No entanto, a Assembleia Geral da ONU se contenta em convidar o governo dos dois países a debater sobre Gibraltar para pôr fim a seu status de colônia”, resume Verdú. Essas discussões não devem, no entanto, esquecer os interesses dos llanitos. Em 1967, 99,6% deles tinham expressado por um referendo seu vínculo ao status de território britânico de além-mar. A autonomia de gestão realizada prevê que a Coroa só intervém nas relações internacionais e na defesa.
O Brexit poderia mudar os dados da mediação instalada depois das disputas de 2013. A Comissão Europeia tinha recomendado insistentemente a fluidez da circulação na fronteira, onde os controles meticulosos provocavam irritantes filas de espera que podiam durar até nove horas – o que fazia diminuir o contrabando por via terrestre em cerca de 50%, segundo as autoridades espanholas. Engajada desde então na modernização dos acessos de fronteira, a Espanha aumentou de dois para quatro o número de vias de entrada no país, uma das quais reservada aos trabalhadores fronteiriços espanhóis. Além disso, instalou escâneres, leitores digitais e sistemas de reconhecimento facial, e criou um espaço dedicado à revista de veículos suspeitos. Alguns meses antes do fim desses trabalhos, concluídos no verão de 2015, García-Margallo se recusou a simplificar os controles alfandegários, em razão da persistência do contrabando, que teria custado à União Europeia 700 milhões de euros entre 2010 e 2013. A desconfiança continua justificável, como dá testemunho a pesquisa do Departamento Europeu de Luta Antifraude (Olaf, na sigla em inglês), que revela os índices de tráfico ilícito em torno da colônia e a instalação de máfias ligadas a esse comércio. A partir de 1º de janeiro de 2015, Gibraltar foi então obrigado a reduzir a importação de maços de cigarro de 110 milhões para 90 milhões.
“Nossa soberania não será negociada”
Apesar do impacto econômico do rochedo sobre a zona, o governo espanhol sofre para levar em consideração a opinião dos gibraltarinos. “Nossa soberania nunca poderia ser negociada. Somos britânicos, e deve-se respeitar a existência aqui de uma população instalada há três séculos”, insiste Fabian Picardo, ministro-chefe de Gibraltar. “Por outro lado, desejamos ardentemente abordar com nossos vizinhos hispânicos outros temas mais técnicos, como o turismo e a pesca, que podem contribuir para a prosperidade de Gibraltar e das cidades do entorno.” Segundo a ONU, a população deve poder deliberar sobre seu futuro, como fez pela segunda vez em 2006: 98,48% dos habitantes tinham então recusado por referendo uma anexação à Espanha. “Nada de espantoso no fato de que eles desejam permanecer britânicos!”, solta Francisco Linares, um habitante de San Roque, pequena cidade fundada a uma dezena de quilômetros do rochedo pelos exilados de Gibraltar. Depois da tomada da cidade em 1704, seus habitantes foram, de fato, forçados a deixar o local em proveito dos britânicos. Como Linares, muitos aqui sonham com o dia em que a bandeira espanhola será novamente hasteada ali. “Quando um llanito coloca os pés para fora da fronteira, ele rapidamente se dá conta da diferença do nível de vida e se pergunta o que é que a Espanha pode lhe oferecer. Nossas autoridades devem parar de considerar o rochedo como um inimigo e se dedicar mais à melhoria da zona, a fim de torná-la mais atraente aos olhos dos gibraltarinos.”
Não é fácil, no entanto, seduzir uma população bem de vida que pouco acredita na possibilidade de um belo futuro com aqueles que a assediam há séculos. Nos restaurantes, as conversas em inglês integram cada vez menos termos hispânicos. “Enquanto o bilinguismo se impõe, os jovens, assim como as crianças, encontram cada vez mais dificuldades para se expressar em espanhol”, nota Peter Montegriffo, advogado e ministro do Comércio e da Indústria entre 1996 e 2000. “Com certeza em razão de uma escolarização em inglês, mas também porque eles associam o espanhol a um país hostil e por isso se recusam a falar a língua.” Em vez de procurar remediar a situação, Madri decidiu fechar as portas do Instituto Cervantes, que zela pelo ensino e pela difusão da língua e da cultura espanholas, apagando um pouco mais seu rastro nesse povo que antes reivindicava uma cultura mista.
Lola Parra Craviotto é jornalista.