Gigante pela própria natureza
Os momentos de crise abrem oportunidades para o governo brasileiro ampliar a agenda de integração regional, como é o caso da recente criação do Conselho de Defesa da América do Sul
Em várias oportunidades, recentemente, o Brasil tem sido acusado por seus vizinhos de imperialista, isto é, de promover uma política de expansão e de domínio territorial, cultural e econômico na América do Sul.
Não há dúvidas quanto ao papel de liderança ao qual o país se propõe e de fato assume na região. Não há nenhum outro com as suas condições para liderar o processo de integração. O que está em causa é a política de integração que o Brasil implementa (até hoje questionada por muitos) de simplesmente defender os interesses do empresariado brasileiro.
Hoje em dia, com as análises sobre a crise, já se dissemina a compreensão de que o “livre mercado” só existe e atua porque o Estado lhe garante institucionalidade para que possa agir assim. Não é que o Estado se retira e deixa o espaço público para ser ocupado pelas grandes corporações; é o Estado que garante as condições e respalda a ação dessas grandes corporações.
Nos últimos anos é marcante a expansão dos negócios brasileiros pela América do Sul. E muitas vezes a mãozinha do governo brasileiro ajuda nisso. Seja na ampliação do comércio e na venda de serviços, seja na aquisição de empresas e propriedades, o capital brasileiro encontra junto a seus vizinhos uma frente de expansão com custos menores que em seu próprio país. E a lógica dos negócios é extrair o maior lucro possível de suas operações.
Para se ter uma dimensão da importância desta presença, a filial boliviana da Petrobras, em 2006, respondia por 24% da arrecadação de impostos, 18% do Produto Interno Bruto total e 20% dos investimentos estrangeiros diretos da Bolívia. No Paraguai, os brasileiros se tornaram os principais produtores de soja, respondendo por mais de 80% da safra nacional. Durante o período 2003-2007 os empresários brasileiros investiram US$ 8,4 bilhões na compra de empresas argentinas, algo como 24% de todas as aquisições feitas no período por estrangeiros.
A esta mobilização dos atores privados brasileiros soma-se a vontade manifesta do governo em promover uma integração econômica da América do Sul, como declarou o presidente Lula em Quito, em 2004: “Queremos construir um espaço econômico da Amazônia à Patagônia”1. E estas afirmações são mera retórica, elas vem acompanhadas de iniciativas concretas, como ofertas de financiamento pelo BNDES para construção de estradas, ferrovias, usinas hidroelétricas etc.
A questão incomoda muita gente que teme as consequências destes movimentos do “Grande Irmão”, um país que é um gigante em meio aos seus vizinhos, está entre as dez maiores economias do mundo e representa mais da metade da economia da América do Sul.
De fato, as desproporções entre as economias são importantes e justificam esses temores. O PIB do Brasil corresponde a 55% do PIB da América do Sul. Ele é cinco vezes maior que o da Argentina, quase seis vezes o da Venezuela, 30 vezes maior que o do Equador, 57 vezes o do Uruguai, 101 vezes o da Bolívia e 110 vezes maior que o do Paraguai2.
Pautado pela lógica do mercado – filosofia que promove o individualismo exacerbado, um clima permanente de competição – este cenário de integração está prenhe de muitos conflitos, alguns dos quais já manifestos.
Desde 2006, quando o exército boliviano ocupou as refinarias da Petrobras naquele país, ocorreram outros impasses de importância envolvendo, além da Petrobras, empresas como a Odebrecht, Queiroz Galvão, Furnas, Itaipu e BNDES.
É bom que se diga: os conflitos se fundam na lógica dos negócios. Eles se estabelecem diretamente com o Estado brasileiro, como é o caso de Itaipu; ou com empresas brasileiras, como é o caso da Odebrecht. A disputa diz respeito às iniciativas de governos vizinhos visando a recuperação e redirecionamento dos recursos públicos para alimentar uma nova agenda de desenvolvimento.
É nos detalhes que podemos reconhecer o envolvimento do governo nos negócios. As ofertas de financiamento do BNDES para obras públicas, por exemplo, vêm acompanhadas da condição de que sejam empresas brasileiras as executoras dos projetos, e de que parte do material empregado na obra seja comprado no Brasil. Em muitas das visitas do presidente Lula a estes países é normal estarem integradas comitivas de empresários e serem assinados novos acordos comerciais. Não se tem notícia de comitivas de representantes de movimentos sociais. Até hoje predomina a visão de que o governo está mais a serviço do empresariado que do bem público.
Os recentes exercícios militares, realizados em outubro de 2008 pelo exército brasileiro nas fronteiras com o Paraguai, são um exemplo preocupante desse envolvimento do Estado na defesa dos negócios.
A mobilização dos sem-terra paraguaios cobrando a reforma agrária se orienta, também, para pressionar os grandes fazendeiros de soja brasileiros, localizados nas zonas de fronteira. Ameaçados pelas ocupações, esses fazendeiros pediram socorro ao governo brasileiro, que mobilizou 11 mil homens de seu exército para garantir sua segurança no país vizinho. Além da questão das fronteiras, o que chama a atenção é o fato de que estes são os mesmos conflitos pela terra que temos no Brasil, nos quais o exército nunca se envolveu.
A relação do país com seus vizinhos depende muito do que proponha o “Grande Irmão”. Que tipo de integração queremos? Se forem novas propostas de um projeto de desenvolvimento que busque a melhoria das condições de vida das maiorias, então a integração muda de eixo: deixa de se pautar pela agenda dos negócios e passa a se pautar pela agenda da realização de direitos.
Os momentos de crise abrem oportunidades para o governo brasileiro ampliar a agenda de integração regional, como é o caso da recente criação do Conselho de Defesa da América do Sul. E introduzir novos temas de interesse comum, como a preservação da água como bem público, a luta contra o aquecimento global, a transferência de tecnologias na área de saúde, entre muitas outros. Aí sim, contaremos com maior simpatia e solidariedade dos povos do continente.
*Silvio Caccia Bava é diretor e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.