Globo muda cobertura para seduzir população carioca
A TV Globo apresentou mudanças significativas, principalmente no RJ. A emissora ganhou uma aparência “social”, dando espaço p/ parcelas pobres da população. Para especialistas, contudo, a transformação mira a desmobilização do povo diante das violações de direitos provocadas pelos megaeventos previstos p/ esta décadaMarcelo Salles
Esta será a década dos megaeventos no Rio de Janeiro. A Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 se somam aos Jogos Mundiais Militares (2011), às obras na área portuária (em andamento) e ao Ano da Juventude Católica Mundial (2013). Para tanto, a cidade receberá investimentos bilionários. Ou melhor, investimentos bilionários serão realizados, mas eles não se traduzirão, necessariamente, em benefícios para toda a população. Por vezes, ocorre justamente o contrário: as pessoas são prejudicadas pelas obras, são expulsas de casa e sofrem com a repressão policial.
“Numa sociedade de classes como a nossa, se melhorar para um lado vai piorar para o outro. É impossível a conciliação com o abismo social em que a gente vive”, avalia Adriana Facina, antropóloga e professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Além da violação do direito à moradia, ela ressalta a segregação causada pelos altos custos do transporte público: “As pessoas ficam cada vez mais confinadas em seus cantos, perdem mobilidade, e isso impede associações de grupos, de coletivos, que são os que podem canalizar protestos e transformações sociais”.
No rol dos impactos que já estão sendo causados pelos megaeventos está a “militarização das áreas pobres”, na opinião da socióloga Vera Malaguti. Além dos despejos forçados, ela ressalta outra violação concreta dos direitos de quem vive nessas regiões da cidade: o mandado de busca coletivo, cuja figura jurídica não existe. “As pessoas são revistadas na entrada e na saída da favela, as casas são revistadas. Esse é o projeto olímpico da prefeitura do Rio de Janeiro e do governo do estado do Rio de Janeiro”, critica Vera, que é secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia e autora de diversos estudos sobre o tema.
A socióloga faz uma analogia com políticas introduzidas no século passado. “Nós estamos voltando para o recolhimento da população de rua, um mundo de ações que remetem a um embate histórico no Rio de Janeiro, do lacerdismo, Pereira Passos, de trabalhar a pobreza como um detrito, como algo que atrapalha a imagem. E por outro lado você não tem um projeto educacional, tanto que o Rio de Janeiro é o penúltimo estado do país em termos de resultados na educação”, pondera.
As duas pesquisadoras elencam, ainda, as sucessivas privatizações do espaço público como responsáveis pelo atual estado de coisas. Vera cita a expulsão de pessoas em situação de rua em Ipanema para dar lugar a tendas promocionais de corporações transnacionais, como a Renault, que recentemente patrocinou um evento de surfe. “Na verdade, estamos além do processo de privatização. É tão grande a mistura dos interesses privados com o público, que o público perdeu o sentido. Quer dizer, o bilionário Eike Batista é chamado para limpar a Lagoa Rodrigo de Freitas. Agora também tem a influência da Fifa. Até tenho observado que o governo federal tem dado uma travada nisso.” Recentemente, o governador Sérgio Cabral (PMDB) foi questionado publicamente por ter viajado num jato privado de um empresário que mantém interesses em contratos com o governo do estado. O fato o levou a elaborar uma norma de conduta ética para todos os servidores públicos. Inclusive ele.
O papel da imprensa
Denúncias como essas têm sido publicadas, pontualmente, em alguns veículos de comunicação. Porém, ainda que seja possível encontrá-las em jornais de grande circulação, a maior cobertura tem sido dos meios alternativos. Um bom exemplo foi a entrevista concedida pelo vereador Eliomar Coelho (PSOL) ao site Viomundo, em que ele relata uma série de despejos forçados e a dificuldade que está encontrando em organizar uma CPI das Remoções. Ao Le Monde Diplomatique Brasil, ele explica que esses despejos são acompanhados de ameaças e muita truculência. “A indenização, na maioria das vezes, é muito abaixo do valor correspondente do imóvel, e a opção de morar num dos imóveis do Minha Casa, Minha Vida não é ideal, pois são muito distantes da residência original e em locais sem acesso a saúde e escola e com transporte precário.” E cita quatro favelas que estão sendo vítimas dessa postura da atual administração municipal: Vila Recreio II, Vila Autódromo, Metrô Mangueira e Vila Harmonia.
Já na televisão e no rádio, veículos de comunicação de massa, rareiam as denúncias de violações ligadas aos megaeventos. A questão que se impõe é: de que forma as corporações de mídia estão se movimentando na década dos megaeventos?
A TV Globo, maior empresa do maior grupo de comunicação brasileiro, apresentou mudanças significativas em sua programação este ano. Primeiro, seu slogan mudou de “A gente se vê por aqui” para “A gente se liga em você”. No início de agosto, o conglomerado publicou aquilo que chamou de “princípios editoriais”, incluindo uma série de normas e regras para todos os veículos jornalísticos do grupo. Até os “direitos humanos” foram incluídos nos objetivos.
Em junho, o telejornal local do Rio de Janeiro, o RJTV, inaugurou um quadro chamado “amigos do RJ”, no qual repórteres “sociais”, ou seja, pessoas de bairros populares ou favelas, enviam suas próprias reportagens. Foi aberto um espaço de denúncia (ou de reconhecimento de ações) que antes não existia: é o buraco na rua, as campanhas educativas de reciclagem feitas por moradores, os atendimentos na área da saúde. Também foi perceptível como casos de violência contra a população favelada ganharam mais espaço, como o assassinato por policiais do menino Juan e o caso do Morro do Bumba, que ficou destruído após as chuvas em abril do ano passado (cenas de policiais usando spray de pimenta contra a população foram repetidas várias vezes).
José Arbex Jr., professor de jornalismo da PUC-SP, não acredita numa mudança substancial na abordagem da Globo. Para ele, o que existe é uma tentativa de ganhar credibilidade. “Ao denunciar um buraco na rua, uma empresa de comunicação ganha maior aceitação por parte dos telespectadores. É um processo de sedução. Mas a ideologia é vendida junto com o pacote de ‘utilidade pública’. A denúncia do buraco vem embalada pela publicidade e propaganda, e é apresentada com uma carga ideológica determinada. Assim, o buraco na rua nunca será o resultado de uma política histórica de apropriação do Estado pelas elites, nunca será denunciado como um resultado perceptível do abandono neoliberal das obras públicas, mas será, no máximo, apontado como fruto de uma má administração regional ou da prefeitura. A desinformação acontece mascarada de informação”, avalia. “E, claro, tudo funciona como na história do Drácula: uma vez que você abriu a porta de sua casa para o vampiro, ele entra e controla o ambiente. A mídia patronal funciona assim, mediante a sedução”, complementa.
Concessões a contragosto
Para a antropóloga Adriana Facina, as concessões feitas pelo RJTV foram “arrancadas”. Em sua avaliação, essa maior participação popular se deve a dois motivos: o primeiro é o avanço de movimentos sociais; o segundo, uma questão mercadológica.
“Não dá mais para ficar representando a favela só como lugar de bandido. Por um lado, você tem organizações que vão contra isso. Por outro, tem o reconhecimento de que a população favelada vê televisão, tem acesso à internet e à TV por assinatura, ainda que de forma precária, então é uma busca de mercado também”, comenta Adriana, enfatizando a concorrência da TV Record, cuja audiência vem crescendo nessa parcela da população.
A professora da UFF também enxerga uma crise de representação dos veículos de comunicação da mídia grande. “Acho que essas concessões ocorrem muito a contragosto. Uma coisa pragmática mesmo, para não perder público, uma necessidade de ver essa parte da população representada, para ampliar sua base política”, analisa.
Adriana, que recentemente concluiu uma pesquisa com centenas de moradores de favelas do Rio de Janeiro, conhece bem essa realidade. Ela percebe que há um esforço da Globo em se aproximar da experiência cotidiana da maioria das pessoas que vivem em áreas pobres do estado. É a metamorfose do slogan “A gente se vê por aqui” para o “A gente se liga em você”, o que denota um esforço da empresa em ir atrás do telespectador, em vez de ficar esperando que ele apareça.
Dentro dessa estratégia, ressalta a professora, o espaço aberto aos “repórteres sociais” é restrito a questões pontuais. “Não é uma questão de transformação política mais global, é uma questão de má administração pública. Mas a voz não é dada aos coletivos que se organizam. São sempre indivíduos, instituições privadas, ONGs, iniciativas como o Criança Esperança, que vão promover aquelas mudanças pontuais. Acho que essa é a estratégia”, complementa.
Combate à organização popular
Vera Malaguti concorda com a avaliação de que o espaço franqueado aos “repórteres sociais” é destinado a questões pontuais. Além disso, nenhum dos casos levados ao ar até o momento diz respeito às violações decorrentes das obras para os megaeventos. “A denúncia nunca vai no sentido de fortalecer uma organização de moradores para lutar por projetos. É uma maneira de despolitizar, o grande olho vai agenciando e direcionando essa demanda. Por exemplo, o que aconteceu no Rio de Janeiro depois das chuvas do ano passado? Nada. As denúncias se transformaram em fatos policialescos, alguém é preso espetacularmente ou é deposto. É uma onda de criminalização que quase impede que as pessoas se organizem, e se elas conseguem se organizar ou se já estão organizadas isso não é noticiado.”
Em abril de 2010 e no início de 2011, o Rio de Janeiro foi atingido por fortes chuvas que provocaram deslizamentos de encostas e puseram inúmeras casas abaixo. Milhares de pessoas ficaram desabrigadas e centenas morreram. Só no Morro do Bumba, em Niterói, foram 47 mortos. A região serrana do estado ficou arrasada, e cerca de novecentas pessoas morreram.
“A cobertura que a imprensa fez das chuvas não produz mudanças nem melhorias”, critica Vera. “Eu vejo o estado igualzinho ao que era antes das chuvas. Teve uma obrinha aqui, outra ali, é como se fossem medidas individualizantes de denúncias. Esse discurso esconde os movimentos sociais que estão denunciando as remoções e dá visibilidade a quem aponta: ‘Olha, tem um buraco aqui’. Mas qual é o projeto para a Baixada Fluminense? Como os moradores da Baixada, os prefeitos da Baixada, as organizações políticas estão se mobilizando? O que vai ao ar são movimentos policialescos que não conduzem a novos caminhos, para que essas demandas sejam coletivas, que são as únicas que podem transformar uma cidade.”
Os grupos sociais organizados a que se refere Vera, como o MST e a Rede contra a Violência, raramente são chamados a opinar e frequentemente são apresentados à sociedade como baderneiros, ou mesmo criminosos. São os grupos que se organizam para exigir que o governo do estado tenha um projeto de reconstrução, em que as pessoas que estavam nos locais das chuvas do ano passado, por exemplo, não sejam responsabilizadas por sua própria tragédia. “Também tem todo um discurso de ‘olha como a classe política é corrupta’, o que não leva a cidade a se transformar no bom sentido, com base na organização coletiva. Então é uma falsa rede social produzida com uma captura dessa inconformidade, desses problemas pontuais, que poderiam produzir uma organização popular efetiva”, afirma a socióloga.
Vera reforça ainda a questão mercadológica. “Sabemos que hoje o que sustenta a economia mundial são exatamente essas classes populares nos países ascendentes, e o Brasil é um exemplo disso”, diz, lembrando que a TV Record apresenta um discurso mais popular. “[Esse discurso] é revestido de denuncismo, alcaguetação, num sentindo individualizante e despolitizante. A televisão é uma grande aliada desses grandes negócios em que se transformaram os megaeventos”, analisa.
A continuar nesse ritmo, as denúncias de violações de direitos humanos poderão continuar pipocando aqui e ali, nesse ou naquele veículo de comunicação, antes, durante e depois de cada megaevento que o Rio de Janeiro sediará nesta década. Mas será que o espaço concedido pelos meios de comunicação de massa, em sua atual configuração, será suficiente para que se consolide uma consciência crítica capaz de dar um basta a essas violações?
Marcelo Salles é jornalista.