Guardiões da Galáxia: conflito entre utopia liberal e conservadora nos games
Game coloca a ascensão do fundamentalismo como uma consequência do descontentamento de certas pessoas em relação ao estilo de vida moderno
“…eu também quero entender como os jogos eletrônicos funcionam além de apenas jogá-los”.
Jamie Woodcock
Vivemos sob à égide da utopia liberal. As pessoas quando insistem em dizer que o comunismo não deu certo, enganam-se, pois o liberalismo também não deu. De modo que não podemos dizer que o comunismo foi derrotado com fim da Guerra Fria, mas que a utopia liberal venceu a utopia comunista. É utopia porque vários aspectos da proposta liberal não existem na prática, como a não intervenção do Estado na economia, a meritocracia, a liberdade etc. As pessoas passaram a depositar sua fé e esperança na utopia liberal e agem guiados por essa ideia, visando a realização de suas promessas, que, na realidade, são irrealizáveis para a maioria.
Essa utopia liberal é o motor de grande parte da indústria cultural. Governos corruptos, liberdade, a luta individual para se conquistar seus sonhos e a batalha contra os que impedem a realização dessa utopia são o mote de praticamente todos os filmes, romances, peças teatrais, séries de TV e (por que não?) games.
O conservadorismo e a religião
Uma trama muito comum que podemos encontrar na indústria cultural que traz à tona essa fórmula é o fanatismo religioso como um óbice para impedir a conquista individual. Isso está muito relacionado à ascensão da extrema direita no mundo ocidental. Em outros períodos, como nos anos 1950, auge da Guerra Fria, vemos romances exaltando a religião, a utopia cristã, em detrimento do avanço tecnológico rumo à construção de armas atômicas, como no clássico Um cântico para Leibowitz.
Com a extrema direita o tema da religião emergiu. Vemos diferença entre o Far Cry 5, lançado em 2018, e o Far Cry 6, de 2021. No primeiro, sob o governo Trump, a questão religiosa é o cerne da narrativa. Já no segundo a aversão clássica a um ditador em uma ilha no Caribe compõe a trama do game.
Contudo, em Guardiões da Galáxia, mesmo agora, sob o governo democrata nos Estados Unidos, o tema religioso é explorado. Talvez porque um game como esse demora para ser produzido, de modo que sua produção tenha começado ainda sob o governo Trump. Ou talvez porque continua sendo importante falar de tal questão, já que a extrema direita não é um espectro nos Estados Unidos, pelo contrário, é muito poderosa. Far Cry 6, por sua vez, não repetiria a mesma fórmula duas vezes seguidas.
O fato é que o fanatismo religioso está muito presente na indústria cultural principalmente nas produções de ficção científica. É os casos das séries de investimentos milionários, como See, Raized by Wolves, Fundação.
Mas o objetivo desse projeto da indústria cultural é separar liberal de conservador. Por meio de uma estratégia estética e narratológica, este último é associado ao fundamentalismo porque, de fato, busca reagir a certas conquistas em termos morais que a sociedade ocidental vem adquirindo, que, por seu turno, são muito difundidas na própria indústria cultural, nos filmes de Hollywood, no superman negro, nos quadrinhos, com o filho do superman bissexual, e no próprio mundo dos games, como em The Last of Us Parte 2 no qual a temática lésbica é parte da narrativa.
Ivo Pedro Oro, explica que o termo “fundamentalista” tornou-se “inflacionado. Em geral, carrega uma carga negativa e uma conotação pejorativa. Fundamentalista seria o fanático, o sectário, o intolerante, o conservador, o autoritário, o totalitário […] e sempre são os ‘outros’. Por causa disso, até os clássicos representantes desse movimento no protestantismo de hoje preferem o título de evangélico-conservador ao fundamentalista”.[1] Mas os liberais procuram aproximar a imagem do conservador do fundamentalista, desta ideia descrita acima, para manter viva a utopia liberal.
Desse modo, os conservadores entram em campo para vender a sua utopia, e um dos seus elementos fundamentais são os valores da religiosidade tradicional da classe média norte-americana. Ela procura preencher o vazio deixado pela utopia liberal. Quando, por exemplo, um indivíduo é humilhado no trabalho, ou não tem assistência médica, o sacerdote diz que ele é um escolhido, que ele será vitorioso pela glória de Deus, o visita quando está doente e promete a cura milagrosa…
É como o projeto da Igreja Universal do Reino de Deus que engloba todos os sofredores. A Iurd “surge exatamente para aliviar o sofrimento típico do fracasso em sociedades modernas, legitimado pela competição no mercado, e vivido como fracasso individual”.[2]
A resistência liberal
Esse aspecto vemos claramente se manifestar no game Guardiões da Galáxia. Os heróis liderados por Peter Quill ganham a vida caçando recompensas, realizando trabalhos sem vínculo empregatício, como se fossem o novo proletariado de serviços, modelo de trabalhador para o liberalismo pós-crise de 2008.
Contudo, todos eles adoram um local chamado Lugarnenhum. Trata-se da cabeça de um imenso robô onde diversas culturas convivem trocando mercadorias, divertindo-se em bares, em casas de entretenimento etc. Não há Estado, todos vivem de suas economias dependendo apenas do comércio. É a realização da utopia liberal.
Utopia de Adam Smith, muito bem analisada por Armand Mattelart, em que “nenhuma contradição, tampouco, entre as obrigações relativas à moral e as concernentes ao comércio. O indivíduo livre para vender e comprar se torna uma ‘espécie de mercador’, e a sociedade inteira, composta de produtores e de consumidores co-comercistas, uma ‘sociedade de comércio’”.[3]
Mas o modelo de trabalho desempenhado pelos heróis distancia ainda mais as pessoas da realização da utopia liberal, pois precariza o trabalho, à medida que o aumenta. Menos tempo com a família, mais estresse, menos renda…
A família tradicional: uma promessa conservadora
A suposta filha de Peter Quill é possuída por uma força misteriosa e passa ser chamada de “Matriarca”, a líder religiosa que manipula todos por meio da “Promessa”. Esta seria a realização do desejo individual de cada um, geralmente ligado ao maior valor tradicional: a família.
A vida liberal, na qual as pessoas têm que matar um leão por dia, acaba por prejudicar o relacionamento familiar, o que de fato vem acontecendo na sociedade pós-moderna. É nesse aspecto que a utopia conservadora se apoia. Promete uma vida tradicional, supostamente segura, como a memória tende a fantasiar o passado. É como a nostalgia, a ideia de que o “antes” é melhor.
E como declarou uma vez Karen Armstrong: “Para quem, como eu, aprecia as liberdades e as conquistas da modernidade, não é fácil entender a angústia que elas causam nos fundamentalistas religiosos”.[4] A utopia liberal se confunde com a modernidade, ou como prefere Ulrich Beck, “segunda modernidade”. Defensor do fim das lutas de classes na sociedade atual, o sociólogo alemão entende que “a dinâmica individualizatória que liberta as pessoas das culturas de classe tampouco se detém diante dos portões da família”.[5] É uma consequência da industrialização. Mas diz também que a solução deveria ser institucional, quando as pessoas se deparam com “falta de creches e jornadas de trabalhos inflexíveis, insuficientes garantias sociais” etc., a “desestrutura” familiar se amplia.[6]
No game, Drax, o destruidor, é convencido pela Promessa e é seduzido pelo modelo de família tradicional. Em sua ilusão conservadora, ele chega em casa e sua mulher, ao lado de sua filha, o chama para o jantar que já está pronto. Contudo, na proposta moderna e nas exigências do capitalismo atual, “filhos e, consequentemente, maternidade (com todas as suas consequências) já não são um ‘destino natural’, mas – em princípio – filhos desejados, maternidade desejada”.[7]
Uma mulher como a Gamora seria impossível nessa lógica conservadora. Independente e cheia de atitude. O lugar da mulher na visão tradicional, defendida pelos fundamentalistas, é o doméstico, realizando os afazeres de casa.
Do mesmo jeito é impossível conceber a capitã da Tropa Nova, um tipo de patrulha da Galáxia, Kor-el, mulher que teve um relacionamento com Quill há doze anos. A posição da mulher independente é tão contestada que o suposto rebento do relacionamento entre eles, a menina Nikki, é manipulada por um homem chamado Raker. E o mais curioso é que a jovem está possuída por uma criatura que sai de dentro de Adam Warlock, uma espécie de Deus. É uma referência indireta ao mito Bíblico que conta a história de que a mulher veio da costela de Adão. A mulher tem sua origem no homem e a este deve subserviência.
Outro ponto curioso da narrativa do game é a “Promessa” de Cosmo, um cão com o traje espacial da URSS, uma referência direta a Laika, o primeiro ser vivo a sair da Terra. No game, assim como nos quadrinhos, Cosmo é um cão telepata, podendo comunicar-se com os seres humanos através da mente. Sua “Promessa” consistia em retornar à Terra. Contudo, ele prefere permanecer na utopia liberal de Lugarnenhum. Isso se confirma quando, já próximo do fim da jornada, Cosmo leva a cabeça do imenso robô para atacar a nave dos fanáticos religiosos, auxiliando Quill e sua equipe na luta para libertar Nikki. Fica óbvio o conflito entre a utopia liberal (Lugarnenhum) e a conservadora.
A maneira como o jogo é jogado, ou seja, como as regras do jogo funcionam no gameplay (e aqui sigo os ensinamentos de Jesper Juul),[8] destaca que a cooperação de forças liberais, onde a liderança é aceita de maneira jamais autoritária, mas negociável (como é, na verdade, toda forma de poder), para evitar um mal maior, é indispensável. Lady Hellbender é outra mulher independente que flerta com Drax, como um homem faria na sociedade patriarcal. Em uma visão tradicional ela seria classificada pelo vulgo “piranha”. Cosmo é o outro que se soma à equipe e ajuda na progressão do game. No entanto, a própria dinâmica do gameplay na qual o nosso avatar, Peter Quill, pede auxílio aos membros da equipe em várias situações para superar os desafios mostra essa cooperação liberal para a derrota do projeto conservador.
A união das utopias para a precarização do trabalho
O game, como um projeto da indústria cultural capitalista liberal, coloca a ascensão do fundamentalismo como uma consequência do descontentamento de certas pessoas em relação ao estilo de vida moderno. Mas será que um produto cultural não poderia também dizer que esta ascensão também se explicaria pela configuração do capitalismo atual, a qual gerou uma grande insegurança financeira para os trabalhadores?
Em certa altura da aventura, já próximo do fim, Mantis, uma alienígena que pode enxergar entre diversas realidades paralelas e ver diversos futuros e passados possíveis, afirma, após Quill ter dito que tinha “muitas perguntas para fazer”, que também tem muitas respostas para dar, e uma destas é: “tomem os meios de produção”.
Numa primeira abordagem, podemos crer que seria uma posição revolucionária desse produto cultural, mas não é. Hoje essas empresas que usam das TIC para a produção não precisam mais ser donas dos meios de produção, mas apenas do capital.[9] A retórica é da “democratização dos meios de produção (bastaria ter um computador/celular, carro ou mesmo bicicleta para a produção autônoma de renda…)”.[10] É um discurso que transforma o trabalhador em cliente, “alegando liberdade para trabalhar quando, onde e como quiser”. Mas a realidade é bem diferente. Os trabalhadores, nesta lógica perversa, passam a pagar pelos meios de produção para gerar lucros aos que viabilizam o serviço.
Isso se explica, como colocou Jamie Woodcock, pelo fato de que “a relação econômica específica de produção […] molda os tipos de hardware, software e jogos eletrônicos que podem ou são produzidos”.[11] Como mostra o sociólogo inglês, o próprio processo de produção dos games está submetido a essa lógica perversa de precarização do trabalho promovida pelo capitalismo pós-crise de 2008.
A ansiedade criada por essa instabilidade material pode ter direcionado as pessoas a um refúgio emotivo, sobrenatural, enfim, fundamentalista conservador?
Nós acreditamos que sim, e isso irá aumentar ainda mais quando a indústria 4.0 adotar a internet 5G, que possibilitará a ampliação das profissões que permitem o contrato intermitente à distância e um trabalho flexível sem a mediação do emprego.
De acordo com Anthony Giddens e Christopher Pierson, “o fundamentalismo é a tradição que conscientemente se opõe à modernidade, mas que ao mesmo tempo assume feições modernas e não raro se utiliza de tecnologias modernas”.[12] As mesmas tecnologias que o capital financeiro neoliberal está usando para precarizar a mão de obra estão sendo usadas pelos neopentecostais para a difusão da ideologia conservadora. Isso acontece atualmente com as redes sociais, e também nos deparamos com essa questão no game, de modo que Raker, o sacerdote que controla Nikki, possui dois braços robóticos e um imenso aparato tecnológico à sua disposição.
Grande parte da indústria cultural é defensora das transformações morais fruto da radicalização da modernidade porque são vantajosas para o mercado, já que ampliam a variedade de mercadorias, da força de trabalho etc. Mas também é de extrema importância para fortalecer a utopia liberal em meio à precarização do trabalho.
É desse debate entre conservadores e liberais que a esquerda deve se afastar. Lógico que a liberdade em todo grau deve ser respeitada, mas não podemos perder o foco das relações sociais de produção. A ausência, e até mesmo o apoio à precarização do trabalho, projeto encontrado em ambas as utopias, é o que torna a crítica contra a extrema direita, vinda de um setor da burguesia que tem um grande espaço na imprensa e na indústria cultural, inútil. É o que alimenta a polarização. Críticas superestruturais que não atingem a raiz do problema. Até porque, neste ponto, em relação à perda de direitos trabalhistas, tanto conservadores quanto liberais concordam. Não é à toa que Guedes fala da “aliança entre liberais e conservadores”.
O fato é que quanto mais inseguros, não em termos morais, mas materiais, os trabalhadores pobres estiverem, mais seduzidos pela seguridade moral eles estarão. É fácil observar isso no período em que o Brasil estava aquecido economicamente, gerando empregos com uma relativa seguridade. Naquele momento, o antipetismo entre os neopentecostais era pífio. É como nos ensinaram Marx e Engels na Ideologia alemã, a vida material condiciona as formas pelas quais as pessoas pensam a vida.
[1] ORO, Ivo Pedro. O outro é o demônio: uma análise sociológica do fundamentalismo. São Paulo: Paulus, 1996, p. 23.
[2] ROCHA, E. e TORRES, R. O crente e o delinquente. SOUZA, J. (org.). Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009, p. 232.
[3] MATTELART, A. História da utopia planetária. Porto Alegre: Sulina, 2002, p. 86-87.
[4] ARMSTRONG, K. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo, e no islamismo. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 16.
[5] BECK, U. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 162.
[6] Id, p. 163.
[7] Id, p. 169.
[8] JUUL, J. Half-real. São Paulo: Blucher, 2019, p. 84-85.
[9] JÚNIOR MOTTA, Paulo Roberto Monsores da. Uberização como exemplo da precarização do trabalho e do espaço urbano. Anais do XVI Simpósio Nacional de Geografia Urbana, UFES, 2019, p. 1913. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/simpurb2019/article/view/26339.
[10] FILGUEIRAS, V. e ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 63.
[11] WOODCOCK, J. Marx no fliperama: videogames e luta de classes. São Paulo: Autonomia Literária, 2020, p. 181.
[12] GIDDENS, A e PIERSON, C. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 97.