Lésbica e maconheira: “The Last of us parte II” e a indústria cultural
The Last of us 2 aborda elementos sociais polêmicos em uma narrativa impulsionada pelo ódio. A heroína, Ellie, o avatar que controlamos em um mundo infestado por criaturas contaminadas por um vírus, é lésbica e, como diria o linguajar conservador, maconheira. Um game que fala sobre ódio e que foi alvo de outro tipo de ódio
É importante a observação de Benjamin Barber sobre a infantilização da cultura.[1] O mercado decidiu manter o mesmo consumidor desde tenra idade. Mas, por outro lado, nem todo conteúdo produzido por este mercado é infantil. As crianças que jogavam videogame nos anos 1990 cresceram e precisam, agora, de um conteúdo mais encorpado (não necessariamente intelectualizada, diga-se de passagem), similar às séries que fazem tanto sucesso.
No prefácio para a edição brasileira de seu livro, Janet H. Murray dizia, ainda em 2003, “os videogames estão se tornando cada vez mais cinematográficos, e viraram alvo de algumas das mesmas objeções levantadas contra filmes e programas de televisão que transgridem os limites sociais da violência e da sexualidade”.[2] Isso porque os games adquiriram a capacidade de narrativa, isto é, uma nova forma de contar histórias pois se dá no ciberespaço e de maneira participativa.
Ainda no prefácio à edição brasileira, Murray cita Brian Sutton-Smith que “propõe que o ato de representar/brincar pode ser uma adaptação humana essencial que mantém viva nossa capacidade para responder com flexibilidade às novas situações”.[3]
E como constatou Walter Benjamin, “é na brincadeira, e nada mais, que está a origem de todos os hábitos”.[4] As crianças aprendem brincando.
O que Barber não entendeu, e acredito que acrescentaria em seu estudo, é que a geração anterior, após atingir uma certa idade, deixava de aprender brincando. O estudo rígido, bancário, e o ritmo de trabalho começava na adolescência e se estendia na faculdade e pelo resto da vida. A geração atual vive em um mundo diferente.
Antes a forma máxima de representação era o cinema. Som e imagem, o discurso geral do filme, as partes obtusas que carregavam um sentido em si, etc., diversos signos compunham um filme. Contudo o espectador era passivo. Ele também era alvo de uma ideologia norte-americana que a indústria do entretenimento (que se expande no pós-guerra na inclusão de filmes nos pacotes de ajuda econômica)[5] buscava difundir por todo mundo, ideologia esta imprescindível para impulsionar o consumo dos produtos estadunidenses, os quais constituíam o american way of live.
Hoje essa ideologia continua sendo passada pela indústria, mas ela adotou métodos mais sofisticados. Barber acredita que o mercado forja um etos infantilista do adulto para mantê-lo consumidor dos produtos que consumia quando ainda era criança. A indústria dos games, por exemplo, dedicou-se intensamente à missão de fazer dos adultos seu mais forte mercado consumidor.
E como fez isso? Não apenas reatualizando os heróis de nossa infância, mas investindo em boas narrativas. Os jogos de grande sucesso não perdem em nada para os filmes hollywoodianos em termos de enredo. Mas enquanto o cinema tem como recurso a montagem, os jogos possuem a capacidade de brincar (a palavra play, jogar, em inglês, significa tanto jogar quanto brincar).
Todo o projeto imperialista de disseminação da cultura pós moderna estadunidense ganhou um instrumento que faz com que o consumidor absorva esta ideologia com maior facilidade, pois ele aprende brincando. Aprende “hábitos”, como disse Benjamin. Hábitos de comprar e de pensar por meio de uma perspectiva que pode ser conservadora ou progressista.
Aprender brincando não é mais um privilégio das crianças, mas também dos adultos. Além disso, cabe lembrar o imenso poder persuasivo que os games possuem. E o mercado percebeu isto em vários aspectos, inclusive no ambiente de trabalho e em cursos superiores: é a gamificação da sociedade.
A realidade virtual chegou até mesmo ao mundo político. Em 2007, “a Suécia abre a primeira embaixada virtual do mundo e, na França, os candidatos à presidência se dirigem diretamente a esses avatares clonados como se fossem eleitores potenciais, enviando seu próprio clone para fazer uma campanha eleitoral”.[6]
Todos esses aspectos podem ser identificados no novo game da Sony, The Last of us 2, que aborda elementos sociais polêmicos em uma narrativa impulsionada pelo ódio. Este sentimento é o centro da intriga, de acordo com Neil Dieckmann, diretor do jogo.
Mas o ponto é que a heroína, Ellie, o avatar que controlamos em um mundo infestado por criaturas contaminadas por um vírus que dizimou grande parte da humanidade, é lésbica e, como diria o linguajar conservador, maconheira. Em uma cena em que Ellie encontra um abrigo para fugir da nevasca, ela e sua amiga, Dina, deparam-se com uma plantação de maconha subterrânea. As meninas fumam o “bagulho” e transam em seguida.
Um game que fala sobre ódio foi alvo de outro tipo de ódio. “‘Tá recheado de lacração e misandria’, diz uma imagem que circula no Facebook Brasil, criada por uma página que tem como proposta combater ações progressistas dentro da cultura pop”, mostra matéria do Nexo.
Há um grande reacionarismo no meio do circuito gamer. Bolsonaro, para ampliar seus apoiadores, postou uma foto no Twitter jogando uma simulação de tiro. Recebeu 3 milhões de visualizações. Segundo o El Pais, “gamers famosos de Counter-Strike, como Henrique HEN1 T, Alexandre Gaules, Wilton Prado, Ricardo Prass e Epitácio de Melo, que somam juntos mais de 1 milhão de seguidores, interagiram com a publicação. Além deles, jogadores, técnicos, empresários e equipes de Fortnite, Rainbow Six, League Of Legends, PES e FIFA, outros jogos que mobilizam milhares de adeptos em campeonatos online, comemoraram a sinalização favorável de Bolsonaro em baixar impostos que incidem na indústria de games”.
Outra promessa que não foi para frente. Mas a comunidade gamer reacionária continua. Criados em uma época em que os seios de Lara Croft eram exageradamente grandes e em que o operário Mário tinha que salvar a princesa indefesa, reagem às narrativas atuais que representam as transformações culturais de nossa época.
Nesse sentido, o projeto infantilizador entra em choque. De acordo com Benjamin Barber passamos por um período marcado por “um novo e poderoso etos cultural”, “uma infantilização que está intimamente associada às demandas do capitalismo de consumo numa economia de mercado global”. Identificando que a criança e o adolescente são os maiores consumidores de uma “parafernália relativamente inútil de jogos, aparelhos e inúmeros bens de consumo”, promove-se um prolongamento da adolescência nos adultos, “esperando reacender neles os gostos e hábitos de crianças”.
Esses hábitos de consumo acabam por reacender hábitos morais ultrapassados, fortalecidos, ainda, pela cilada da memória de associar ao passado boas lembranças em um processo seletivo natural.
Mas é inevitável. A indústria do entretenimento é, em grande parte, progressista. Hollywood, romances e games aprenderam a fazer dinheiro das lutas identitárias em defesa das liberdades individuais.
Em The Last of us parte 2, os Estados Unidos continuam sendo o centro do mundo. A terra do Tio Sam se mostra globalizada, até os personagens que Ellie contracena são multiétnicos, uma judia e um asiático. Mas precisamos ainda fazer a mesma indagação que Fredric Jameson fez em 2000: “a globalização não seria um outro nome dado ao imperialismo norte-americano?”
É como no filme mais recente do Exterminador do Futuro, onde o empoderamento feminino é cultuado, mas é preciso levar Daniela (a versão feminina de John Connor), a esperança da humanidade, para os Estados Unidos, pois somente assim seria possível salvar o futuro.
Acompanhando as novas formas didáticas de disseminação do ponto de vista norte-americano sobre a experiência humana na Terra (a noção de justiça estadunidense, a missão Apollo 11 como um sonho de criança, o gosto por dinossauros que enfeita o imaginário norte-americano e que, por sua vez, produziu um imenso mercado consumidor, são elementos retratados no game), a visão progressista se espalha pelas mídias sem alterar a estrutura ideológica tradicional.
Não confundir ideologia com moral é indispensável. A ideologia neste caso é um instrumento de dominação econômica, capaz de fabricar razões, hábitos que nos levam ao consumo narcisista desenfreado. Ou seja, pode estar havendo uma transformação na moral para manter uma ideologia útil para o funcionamento do mercado. Pode haver um etos infantilista nesse processo (a própria Ellie coleciona figurinhas de super-heróis ao longo de sua jornada), mas há também um etos progressista, manipulado pelo mercado, para ampliar o consumo.
Se os gamers e outros nichos consumidores não se adaptarem, eles serão obrigados a mudar de planeta, já que o mercado não pode mais se restringir apenas à demanda dos heterossexuais brancos. Ele precisa se expandir. E como não há mais lugar para ir no planeta, é preciso criar um mercado consumidor plural, inventar novas identidades etc.
O mercado não é mais capaz de suprir seus lucros vendendo apenas o útil (comida, roupa, material de construção…), ele precisa estimular o consumo do inútil. Concordamos com Barber neste ponto. Mas também é necessário diversificar esses consumidores do inútil, construindo produtos que atendam às necessidades de todos. Inclusive para os conservadores, onde um mercado gospel se expande de forma avassaladora (não podemos excluir a existência de evangélicos progressistas, porém, um mercado específico para este grupo ainda é muito restrito).
The Last of us parte 2 sem dúvida é uma obra prima da arte computacional. Há um momento, em certa altura da aventura, que o avatar se encontra em um esgoto fétido e reclama quando perdemos tempo para tirá-la dali. Ela esbraveja: “Me tira daqui, porra!” É um nível de interação que um filme dificilmente proporcionará.
Mas são formas didáticas para a disseminação (repito) do ponto de vista norte-americano sobre a experiência humana, seja ela fictícia, histórica ou documental. Os games e sua beleza gráfica esplendorosa servem muito aos propósitos imperialistas da indústria cultural.
Raphael Silva Fagundes é doutor em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.
[1] BARBER, B. Consumido. Rio de Janeiro: Record, 2009
[2] MURRAY, J. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Unesp, 2003, p. 8-9.
[3] Ibidem, p. 10.
[4] BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 253.
[5] JAMESON, F. A cultura do dinheiro. Petrópolis/RJ: Vozes, 2001, P. 23
[6] LIPOVETSKY, G. e SERROY, J. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 272