Guerrilha legislativa contra o direito ao aborto nos Estados Unidos
Com o triunfo republicano nas eleições legislativas de 2010, os militantes contra o aborto retomaram o controle. Sua tática consiste em aprovar em cada estado da Federação leis mais e mais restritivas ao direito de interromper a gravidez, tornando seu exercício quase impossível. A última trincheira: a Suprema CorteJessica Gourdon
Todos os dias, com cartazes e palavras de ordem, um punhado de militantes “pró-vida” repreendem as mulheres que entram ou saem da clínica Jackson Women Health Organization, o único estabelecimento que realiza abortos no estado do Mississippi. A perseguição chegou a tal ponto que, em janeiro de 2013, a diretora Diane Derzis colocou em prática um sistema de escolta para acompanhar essas mulheres no trajeto entre o automóvel e a porta de entrada. “O clima realmente se tornou mais ofensivo nos últimos meses, desde que a clínica foi ameaçada de fechar.”
O Mississippi será o primeiro estado norte-americano a não mais realizar o aborto legal? Seria muito simbólico, porque esse território de 3 milhões de almas, tão vasto quanto o Reino Unido, também é o mais pobre dos Estados Unidos. A clínica de Jackson de fato se encontra em estado de infração por uma lei votada no estado em 2012, segundo a qual o médico que pratica o aborto voluntário deve ter convênio com o hospital mais próximo para atender suas pacientes caso enfrentem algum problema durante o processo. Os três ginecologistas do local não puderam se adequar às convenções. “Nenhum hospital aceitou. Por razões ideológicas, por medo ou porque alguns médicos entre nós não residem no Mississippi”, explica Derzis. “Essas convenções não estão relacionadas à segurança do processo: de qualquer forma, os hospitais não podem recusar nossos pacientes em caso de uma necessidade justificada de hospitalização. Os legisladores sabem perfeitamente que a medida ameaçaria nosso funcionamento.”
O governador Phil Bryant não mascarou sua intenção de fazer do Mississippi o primeiro “free-abortion state” [estado livre de aborto] do país. Enquanto isso, a clínica de Jackson, onde se realizam 2 mil interrupções voluntárias de gravidez por ano, dá continuidade às suas atividades graças a uma decisão federal. Haverá um julgamento sobre o caso na primavera norte-americana de 2014.
Essa situação não é a única nos Estados Unidos. Braços de ferro similares acontecem atualmente em Dakota do Norte, Virgínia, Indiana e Alabama. No total, 54 clínicas ou serviços de aborto voluntário encerraram suas atividades nos últimos três anos, após uma investigação realizada pelo Huffington Post junto aos serviços de saúde.1 Três estados – as Dakotas do Norte e do Sul e o Mississippi – dispõem apenas de um estabelecimento que realiza o procedimento.
O direito ao aborto voluntário nos Estados Unidos repousa, contudo, sobre uma base jurídica sólida, ancorada em nível federal. Em 1973, o caso Roe contra Wade na Suprema Corte unificou as práticas divergentes dos estados e estabeleceu que todas as mulheres da nação eram livres para abortar enquanto for viável tirar o feto do útero, ou seja, até 22 ou 24 semanas de gravidez. Na França, o aborto só é autorizado até a 12a semana (a interrupção da gravidez por medicamento, por outro lado, não tem período definido). Outro caso, de 1992 (Planned Parenthood [paternidade planejada] contra Casey), completou a jurisprudência ao permitir aos estados enquadrar na lei o direito ao aborto, sob a condição de não se estabelecer um “fardo excessivo” para as mulheres que desejam interromper a gravidez. Assim, para os militantes antiaborto legal, o combate se dá na esfera estadual.
Um ato ainda considerado vergonhoso
Somente em 2011, 92 medidas foram votadas nos estados federados, segundo os cálculos do Guttmacher Institute.2 Em 2012, foram 43 e, em 2013, a conta chegava a 68 no dia 1o de outubro. Um aumento sem precedentes. A organização American United for Life publicou até um guia propondo modelos de lei que restringem o direito ao aborto voluntário.
Vinte e um estados requerem autorização de um dos pais no caso de menores de idade que decidem interromper a gravidez – às vezes, de ambos, como no Mississippi e na Dakota do Norte. Uma dezena de estados tornou as ecografias obrigatórias. No Wisconsin e na Louisiana, o realizador do procedimento deve apresentar a imagem à paciente e descrevê-la. Em cinco estados, instaurou-se uma “sessão de informação” que evoca a relação entre o aborto e o aumento das chances de câncer de mama – vínculo desmentido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) – ou menciona o sofrimento fetal. Oito estados proíbem as empresas de seguro-saúde de seus territórios de reembolsar a interrupção voluntária da gravidez.
Mas a grande novidade é a multiplicação das medidas que atingem diretamente as clínicas, em geral gerenciadas por serviços de assistência social familiar ou outras associações (nos Estados Unidos, poucos abortos ocorrem em hospitais). Em nome da segurança das pacientes, novas leis exigem que essas clínicas se alinhem ao padrão médico dos hospitais no que diz respeito a equipamentos, tamanho das salas, corredores, estacionamentos etc., mesmo que pratiquem apenas medicina ambulatorial. De acordo com as recomendações da OMS, esses padrões não são necessários nas clínicas que realizam a interrupção da gravidez no primeiro trimestre da gestação. Essas leis “desencorajam as clínicas ou fazem que carreguem um fardo que não podem suportar”, denuncia a National Federation of Abortion.3
“O aborto está entre os procedimentos médicos mais seguros. O risco é mínimo, com menos de 0,5% de chance de complicações graves”, afirma a American College of Obstetricians em um comunicado de julho de 2013, em reação a uma nova lei votada no Texas que exige das clínicas os mesmos equipamentos dos hospitais e, dos médicos, que tenham convênios. Eleita senadora pelo estado, Wendy Davis se opôs à medida e chamou a atenção de todos os meios de comunicação ao discorrer durante onze horas, diante do púlpito, sem conseguir impedir a aprovação do texto. Com a publicação da lei, o jornal Dallas Morning News reportou que quatro clínicas rurais que realizavam a interrupção voluntária da gravidez ficaram a ponto de fechar e três outras estavam ameaçadas.4 Se esses fechamentos se confirmarem, um quarto das clínicas do Texas terá desaparecido em 2013.
A essas dificuldades, soma-se às vezes o boicote da própria cidade. O Washington Post relata que a clínica de Fairfax, uma das mais frequentadas da Virgínia, fechou durante o verão norte-americano de 2013 após uma batalha com o Conselho Municipal, que recusou a autorização para a mudança de lugar para se adequar à lei votada pelo estado em 2011.5
Esse endurecimento legal se explica em primeiro lugar pela onda republicana de 2010, que permitiu aos conservadores controlar a maioria das câmaras estaduais (27/50) e dos postos de governador (30/50). A onda republicana também destacou figuras do Tea Party que dispõem de programas particularmente reacionários sobre os direitos reprodutivos. Enquanto na maior parte da Europa a interrupção voluntária da gravidez é considerada um direito adquirido, os norte-americanos permanecem divididos sobre o tema. Nos estados do centro e do sul, atualmente dominados pelos republicanos (Alabama, Arkansas, Louisiana, Mississippi etc.), que estão entre os mais pobres do país,6 52% das pessoas interrogadas pelo Pew Research Center consideram que o aborto deveria ser ilegal “na maior parte dos casos”. Eram 45% em 1995. Ao contrário, em alguns estados da Costa Leste (Connecticut, Vermont, New Hampshire, Maine), de tradição democrata, essa proporção cai para 20%.
“Junto às armas de fogo, o aborto é uma das grandes fissuras culturais que atravessam os Estados Unidos e que nos opõem à Europa. É impressionante, porque em outros temas, como no casamento gay, a opinião norte-americana evoluiu no sentido progressista. Mas, simultaneamente, em nome da moral ou da religião, o aborto permanece como um ato vergonhoso. Nas pesquisas sociológicas, metade das mulheres que abortam não o declara, mesmo diante de um computador. O número de abortos é duas vezes maior do que o das estatísticas de saúde pública”, observa Theodore Joyce, professor de Saúde Pública da Universidade de Nova York. Nos últimos anos, de fato, o casamento homossexual ganhou cada vez mais aceitação nos Estados Unidos. Atualmente, é autorizado em catorze estados, dos quais alguns, como Iowa ou Nova Jersey, são governados por republicanos, e a adoção dessas medidas não desencadeou as manifestações vistas na França.
Nesse clima de divisão, a manutenção do direito ao aborto nos estados mais conservadores dependerá muito das ações dos juízes, que em diversas situações anularam legislações votadas pelas câmaras em nome do caso Roe contra Wade. Assim, no início de 2013, um juiz modificou uma lei ratificada pelas câmaras da Dakota do Norte, que definia a viabilidade efetiva do feto a partir da percepção de um batimento cardíaco identificado na ecografia (ou seja, em seis semanas) e proibia o aborto após esse período. Em maio de 2013, outro juiz bloqueou uma lei que acabara de ser votada pelo Arkansas e que proibia o aborto após doze semanas. “Era evidente que essas leis iam de encontro ao caso ‘Roe contra Wade’ e seriam rejeitadas”, afirma o professor de Direito David Garrow. “Esse tipo de ataque irracional é uma tática política para relançar o debate e ocupar o terreno midiático.” Para Elizabeth Nash, pesquisadora do Guttmacher Institute, “instaurou-se uma forma de concorrência entre os estados: quem votará a lei mais restritiva”.
E se a Suprema Corte voltasse atrás…
Os processos e as apelações se multiplicam, e em alguns casos chegam à Suprema Corte do país – cuja posição sobre o tema nunca está a salvo de uma revisão. “A manutenção de Roe contra Wade pode ser abalada com apenas uma voz. Se um novo juiz nomeado por um presidente republicano modificar o equilíbrio, o tribunal pode voltar atrás”, inquieta-se Garrow. Vários estados esperam ansiosos por esse dia. As Dakotas, o Mississippi e a Louisiana já votaram leis “provisórias” que restabeleceriam imediatamente a proibição do aborto caso a decisão de 1973 caia. Outros doze, como Wisconsin, Alabama, Virgínia Ocidental e Oklahoma, jamais chegaram a anular suas leis proibicionistas, que seriam automaticamente reativadas em caso de revogação da jurisprudência.
Até agora, poucos estudos sociológicos medem o impacto dessas novas leis sobre as pacientes. A taxa de aborto nos Estados Unidos está estável há dez anos: 19 a cada mil mulheres em idade reprodutiva. Os números são menos elevados nos estados que possuem medidas mais restritivas, mas a tendência não evoluiu nos últimos anos.
Em um artigo publicado em 2011 no The Journal of Policy Analysis and Management, Theodore Joyce observou que, quando o Texas colocou em prática, em 2004, uma lei exigindo das clínicas praticantes do aborto no segundo trimestre da gravidez que se equiparassem aos hospitais em termos de instalação, “o número de abortos após dezesseis semanas baixou 88% em um ano”, enquanto o número de mulheres que se deslocaram a outros estados para realizar a prática quadruplicou. As ecografias obrigatórias, por outro lado, parecem não ter tido nenhum efeito sobre as pacientes: “São sobretudo uma forma de estigmatizar as mulheres, os médicos e o procedimento, mas, de acordo com as enquetes, o exame não faz as mulheres mudar de ideia”.
Outros trabalhos estão em curso na Universidade da Califórnia em São Francisco. “Nosso sentimento é que essas medidas impactam principalmente as mulheres mais pobres. Na falta de uma clínica próxima, precisam se deslocar para cada vez mais longe e pagar a viagem, o que pode fazê-las reconsiderar a decisão”, analisa Sarah Roberts, professora da Faculdade de Medicina. Seu centro de pesquisa, o Advancing New Standards in Reproductive Health (Ansirh), conduz um vasto estudo já bastante conhecido e divulgado na mídia: ele compara, ao longo de cinco anos, a situação de mulheres com rendas modestas que abortaram e outras que tentaram realizar o procedimento, mas não conseguiram.7 Os resultados mostram que estas últimas estão com mais frequência abaixo da linha de pobreza e dependem de auxílio público. Para os norte-americanos, que não raro enxergam esses auxílios com maus olhos, os resultados trazem esclarecimentos sobre o custo social das políticas antiaborto.
Jessica Gourdon é jornalista.