O Haiti e a nova missão para a estabilização
Há um descompasso entre o que se relata nos meios diplomáticos e oficiais internacionais e o que se vê e se vivencia no cotidiano real das comunidades haitianas, tanto em relação ao que foi a Minustah como no que tange o desejo de instalação de uma nova missão no Haiti
Em outubro de 2023 o Haiti voltou à pauta do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) como um país que supostamente precisaria de apoio da comunidade internacional por intermédio de uma nova missão de paz. O objetivo seria garantir sua segurança interna em função das gangues armadas que praticamente controlam todos os acessos da capital, Port-au-Prince. Como bem refletiu Gerard Pierre Charles há dezenove anos, quando viu seu país sob o jugo da Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah),[1] mais uma vez a nação caribenha se via infantilizada pela comunidade internacional mediante a suspensão de sua soberania e a certeza de que não poderá resolver os seus problemas internamente e com cooperações construtivas por parte da comunidade internacional. A interpretação equivocada de que reivindicações legítimas de uma população que luta pelo seu direito de existir devem ser tratadas com o envio de tropas estrangeiras, bem como a descontextualização da origem dos problemas que acometem o povo haitiano, exige análises mais cuidadosas do que aquelas que têm sido feitas pelos líderes globais ao justificarem suas decisões nos meios de comunicação.
O Haiti sempre obteve pouca prioridade no grande debate sobre política internacional. A omissão que intencionalmente habilita ações mais invasivas na política interna haitiana fere o princípio basilar das relações internacionais: a soberania. O multilateralismo apresenta falhas estruturais desde a sua gênese e, quando se trata de um país totalmente negro e insurgente no meio do Caribe, as estruturas de matrizes imperialistas e/ou colonialistas emergem de forma escancarada para submeter um povo inteiro às formas mais opressoras de “resolução” de conflitos.
Em um artigo-manifesto, o Instituto Tricontinental foi na contramão das justificativas apresentadas pelo CSNU. Em outubro, sob a presidência brasileira, o Conselho aprovou o envio da Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti (ou MSS, Multinational Security Support) com a atribuição de fortalecer as ações de segurança da Política Nacional Haitiana (PNH), único órgão de manutenção da segurança no país. A PNH possui dificuldades severas em lidar com a proliferação de grupos armados que, desde 2021, cercam a capital Port-au-Prince, realizam sequestros, interrompem o fornecimento de combustível e pedem pela saída de Ariel Henry do poder. A campanha do Instituto chamada “No Military Intervention, but Yes to the Haitian Insurrection“[2] foi uma dentre tantas outras que resolveu dar voz ao povo haitiano, especialmente aos(às) líderes da sociedade civil, professores(as) e pesquisadores(as) que se manifestaram contra outras novas ações de intervenção estrangeira no país.
O Brasil e a crise haitiana
Apesar de o Haiti ter sido alvo de intervenções militares estrangeiras, como ocorreu por parte dos Estados Unidos no início do século XX (entre 1915 e 1934), a presença de tropas estrangeiras no modelo de operações de paz foi iniciada na década de 1990. Nesse cenário, em 1993, em meio a um golpe de Estado contra o presidente Jean Bertrand Aristide, Caetano Veloso (com colaboração de Gilberto Gil) compôs os versos “o Haiti é aqui, o Haiti não é aqui”, relacionando o cotidiano brasileiro e o haitiano de forma irônica, provocativa e desconfortável. Conforme ressalta Eduardo Galeano, vale notar que desde o receio da elite imperial brasileira no século XIX de que as “más influências” da Revolução Haitiana poderiam chegar ao Brasil, não se pleiteava qualquer vínculo concreto entre os dois países. Apesar das possíveis semelhanças e afinidades entre as experiências sociais, políticas, econômicas e culturais do Brasil e do Haiti, é fato que as histórias desses dois países se cruzaram de forma mais efetiva e, em vários aspectos, inédita, a partir do estabelecimento da Minustah, em 2004.
Não apenas o Brasil mantinha esse precedente afastamento em relação ao Haiti, mas também grande parte da América Latina e Caribenha. Embora a primeira república negra tenha inspirado diversos processos libertadores ao longo do século XIX, o país permaneceu como um “órfão sem irmãos” na própria região onde se localiza, segundo palavras do ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, Antônio Patriota.[3] Em 2004, por exemplo, o então presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, foi o único chefe de Estado que compareceu às comemorações do bicentenário de independência do Haiti. Nesse sentido, é fato que a instabilidade haitiana em 2004 e o consequente estabelecimento da Minustah inauguraram uma experiência sem precedentes de interesse do Brasil e de outros países latino-americanos em relação ao então chamado “irmão caribenho”. Contudo, qual foi a efetiva contribuição do Brasil para mudanças estruturais que trouxessem maior qualidade de vida para a população haitiana e possibilitassem uma inserção diferenciada desse país nas relações internacionais? Tendo em vista que há a expectativa de realização de uma nova missão de paz da ONU no Haiti no início de 2024, diante do cenário de extrema instabilidade nos últimos anos (incluindo o assassinato do presidente Jovenel Moïse em 2021), está na ordem do dia o debate sobre o Haiti e a possível participação do Brasil (mesmo que sem o envio de tropas) em um novo processo de intervenção.
Com o objetivo de melhor entender os eventos recentes sobre o Haiti, que se apresenta como uma questão emergente da política internacional, buscamos contribuir para propor uma política externa brasileira mais sensível à questão humanitária e étnico-racial. É preciso ter em conta que o Haiti representa mais do que um país-parceiro da região latino-americana, membro da Comunidade de Estados Latino-americana e Caribenha (Celac). O Haiti constitui-se, primeiramente, no berço de uma revolução independentista, antirracista e anti-imperialista que, até o presente, resiste e re-existe com um projeto de nação não ocidental, deixando um legado inquestionável (e pouco conhecido) para o pensamento político e social.[4]
A Minustah e a lição do que não fazer
Depois de ter sido chefiada pelo Brasil por treze anos, a Minustah apresentou um saldo nada positivo, que normalmente não é explicitado, como a epidemia de cólera desencadeada por nepaleses do componente militar da Missão e as violações de direitos humanos cometidas por soldados contra a população haitiana, incluindo mulheres e crianças.[5] Por exemplo, destaca-se o caso no qual militares paquistaneses foram acusados de abusarem de um adolescente com deficiência mental. Apesar de o Senado haitiano ter aprovado uma resolução para que os soldados fossem julgados no Haiti, um acordo entre representantes paquistaneses e o secretário-geral da Missão, Hervé Ladsous, possibilitou o retorno dos acusados para o país de origem. Nesse processo, os resultados da investigação da ONU não foram devidamente divulgados, não houve julgamento dos acusados e as vítimas não receberam compensação.
O referido exemplo não foi um caso isolado, pois a Minustah foi uma das maiores fontes de alegações de abuso sexual em missões da ONU no período em que esteve ativa. A título de exemplo, no início de 2015 a Minustah foi responsável por 45% de todas as alegações de abuso sexual contra tropas da ONU, apesar de representar menos de 7% de todo o contingente das missões de paz naquele momento. Tais violações resultaram no fenômeno “bebês da Minustah”, tendo em vista a grande quantidade de gestações resultantes de abusos realizados por capacetes azuis.[6]
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Por liderar o componente militar da missão, o Brasil precisaria lidar com as diversas denúncias de violações de direitos humanos. Parte dessas acusações foi direcionada, inclusive, para militares brasileiros, como se vê nas denúncias apresentadas à Comissão de Direitos Humanos e Minorias no Brasil, especialmente em relação ao excesso de violência nas operações de ocupação e policiamento de Port-au-Prince.[7] Um episódio sintomático ocorreu em 2005, quando o general Augusto Heleno comandou uma missão no bairro Cité Soleil, na periferia da capital haitiana. Batizada de “Punho de Ferro”, a operação durou cerca de sete horas e disparou mais de 22 mil balas em meio às casas de estrutura frágil. Embora Heleno tenha considerado a missão um sucesso,[8] vários grupos de direitos humanos a classificaram como um massacre, alegando que dezenas de civis (incluindo mulheres e crianças) morreram no fogo cruzado.

Dessa forma, há um descompasso entre o que se relata nos meios diplomáticos e oficiais internacionais e o que se vê e se vivencia no cotidiano real das comunidades haitianas, tanto em relação ao que foi a Minustah como no que tange o desejo de instalação de uma nova missão no Haiti. Daí, as diferentes perspectivas que se encontram no Haiti: um mandatário sem legitimidade que pede apoio da comunidade internacional para conter o fenômeno da violência, e uma sociedade civil organizada, inclusive internacionalmente, para impedir qualquer outra intervenção estrangeira no país.
A Missão Multinacional: o contexto político e histórico
Com o objetivo de oferecer suporte ao sistema judiciário haitiano, cuja fragilidade ainda era evidente naquela época, após o fim da Minustah (2004-2017) foi criada a Minujusth (Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no Haiti). A Missão teve seu término em 2019, quando é criado o Escritório Integrado das Nações Unidas para o Haiti (Binuh), seguido do relatório do Secretário Geral (SG) que tinha o objetivo de encerrar a Missão mediante a entrega à Polícia Nacional Haitiana (PNH) da responsabilidade de segurança do país, apontando uma suposta trajetória positiva que resultava da última intervenção (S/2019/198).
Todavia, o assassinato do presidente Jovenel Moïse, morto em um ataque a tiros em sua casa, em Port-au-Prince, em julho de 2021, potencializou o cenário de instabilidade que ainda marcava o país. Desde então, gangues, grupos justiceiros e organizações de autodefesa se multiplicaram no Haiti. Hoje, esse tipo de ator social controla mais de 60% da capital e se espalha por outras regiões do país. Diante desse cenário, foi anunciada a visita do SG ao Haiti em julho de 2023, sendo renovado o mandato da Binuh até julho de 2024. O Escritório passou a ser liderado por um representante especial do SG da ONU, que convocou todos os Estados membros da organização, incluindo os países da região, a prestarem apoio em matéria de segurança à PNH, em resposta ao pedido do primeiro-ministro haitiano Ariel Henry.
Em seguida, em outubro de 2023, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou a criação e o envio de uma força internacional para a manutenção de paz no Haiti. A decisão foi tomada em razão das dificuldades severas do país em lidar com a proliferação de grupos armados que, desde 2021, cercam a capital Port-au-Prince, realizam sequestros, interrompem o fornecimento de combustível e pedem pela saída de Ariel Henry do poder. A Resolução 2699/2023, baseada no ambíguo Capítulo VII da Carta da ONU (“Ação Relativa a Ameaças à Paz, Ruptura da Paz e Atos de Agressão”), cria, assim, a Missão Multinacional de Apoio à Segurança no Haiti (MSS – Multinational Security Support), cuja atribuição principal é fortalecer as ações de segurança da PNH. Duas semanas depois, aprovou-se a Resolução 2700/2023, impondo proibições de viagem e congelamento de ativos para determinados sujeitos e entidades (atualizando as listas feitas em 2022), além do controle severo e embargo à venda, suprimento e envio de qualquer tipo de arma ao Haiti que não estejam sob controle da MSS.
Na reunião do CSNU em 23 de outubro de 2023, a “questão relativa ao Haiti” foi discutida. Enquanto relatava que a situação estava piorando, a representante especial informou sobre o estabelecimento de um Conselho de Alto Nível de Transição formado pelo governo do primeiro-ministro e de um Conselho Provisório Eleitoral. Nessa ocasião, a representante do alto conselho da transição, Mirlande Manigat, fez um apelo para que as Nações Unidas, além de oferecerem apoio para o controle de armas e retomada do território dominado pelas gangues, também criasse um fundo para a recuperação das infraestruturas rodoviárias, hospitalares, judiciais, educacionais e agrícolas.
Na ocasião, a Resolução fez menção ao Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, que diz que a ação relativa a ameaças à paz, ruptura da paz e atos de agressão será determinada pelo Conselho de Segurança, que fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas para reverter a situação. Em face da situação do Haiti declarada por diversas vezes como uma ameaça para a paz e a segurança internacional, a Resolução 2699/2023 autoriza os Estados membros, que tenham se manifestado interessados, a participar da missão multinacional de apoio à segurança do Haiti por um período de doze meses (que, ao que tudo indica, será liderada por policiais do Quênia). Diz-se, ainda, que ajudará a PNH a reestabelecer a segurança no Haiti e a criar condições de segurança propícias para a realização das eleições no país, suspensa desde julho de 2021 com o assassinato de Jovenel Moïse.
Vale relembrar que o Capítulo VII da Carta da ONU é formado por treze artigos (do 39 ao 51) e, dentre as suas determinações, incumbe ao Conselho de Segurança a responsabilidade de definir a existência de ameaças à paz e de decidir sobre as medidas imprescindíveis para restaurá-la, o que pode incluir o uso da força. Em 2004, a posição estadunidense no processo de negociação e instalação da Minustah esteve sempre ligada à tentativa de pautar essa missão no Capítulo VII, o qual prevê, justamente, a imposição da paz. A consequência imediata dessa orientação foi a securitização da agenda haitiana, proporcionando um papel mais central aos departamentos de Estado e Defesa, além da redefinição do trabalho da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).
Em relação ao Brasil, na primeira resolução da ONU em relação ao Haiti, em 1994, o país foi um dos dois Estados que se abstiveram da votação (o outro foi a China), por entender que a força multinacional naquele período feria o princípio da não intervenção (embora visasse derrubar um governo militar ilegítimo). Todavia, em 2004, o Brasil justificou a legitimidade da Minustah por haver um “vácuo de poder” e uma “ameaça de caos”. Assim, a decisão de participar da Missão rompeu com um entendimento tradicional da diplomacia brasileira de resistir a operações de imposição da paz. A expectativa de impactos positivos decorrentes da atuação do Brasil no Haiti justificaria uma “criativa interpretação” do governo quanto à relação entre a Resolução 1.542 e o Capítulo VII da Carta da ONU. Resta saber qual será a “criatividade interpretativa” que valida o apoio do Brasil a essa nova missão em 2023.
O fato é que mesmo com tarefas muito mais pontuais que a Minustah, a vinculação da nova missão ao Capítulo VII, implicando o uso da força, demonstra que ainda há uma forte percepção de que a realidade haitiana representa uma ameaça à paz e segurança regionais e mundiais, e que sobressaem os posicionamentos mais imediatistas, austeros e racistas como forma principal de tratar essa questão.
O Sul global e a Missão Multinacional
O envolvimento do Quênia na liderança da MSS e a posição do Mercado Comum e Comunidade do Caribe (Caricom) ao manifestar apta a contribuição com a Missão nos parecem preocupantes. Quanto ao Quênia, o país ofereceu um contingente de mil policiais (em vez de soldados das Forças Armadas, como ocorreu durante a Minustah). A liderança do Quênia foi recebida com bons olhos pelos Estados Unidos, que é o membro do Conselho de Segurança que mais defende a realização da nova missão. Contudo, o aval da ONU para o Quênia despertou preocupação e críticas de políticos de oposição, que ressoaram na dificuldade do governo em conseguir a autorização do Parlamento para a participação nessa missão.
Quanto ao Caricom, pouco se sabe sobre a sua cooperação com o Haiti. O que era de se esperar, pois o principal bloco regional ao qual pertence o Haiti, na verdade, nunca foi muito ativo para brindar apoio e cooperação com o país ao longo de sua história. De acordo com o texto da Resolução 2699/2023, a MSS contará com o apoio de Estados membros das Nações Unidas e organizações regionais, mas não cita quais. Isso abre espaço para a inclusão de organizações regionais que não possuem em seu regimento qualquer atribuição de liderar planos de segurança para o Caribe, como o Caricom.
O Tratado de Chaguaramas, que oficializou a criação do Caricom, ressalta que o seu principal compromisso é o de aprofundar a integração econômica regional mediante o estabelecimento do mercado único para conseguir o desenvolvimento econômico sustentável, e fomentar as relações comerciais e econômicas com terceiros Estados. Apesar de o Mercado Comum do Caribe, a partir da emenda ao Art. 17 do Tratado de Chaguaramas, em 2009, ter incluído em sua estrutura o Council for National Security and Enforcement of Law (Consle), nada a seu respeito é citado na Resolução 2699.
Citado quatro vezes no texto da Resolução, o Caricom é mencionado por meio de seu Eminent Persons Group (CARICOM – EPG), composto pelos ex-primeiros-ministros Kenny Anthony, de Santa Lucia, Bahamas, Perry Cristie – ambos territórios cujo chefe de Estado é o Rei Charles III, da Inglaterra –, e Bruce Golding, da Jamaica, país que há dois anos se tornou uma república independente da monarquia inglesa. O próprio grupo, na página oficial do Caricom, em 11 de setembro de 2023, informa que travava discussões informais com o Haiti a respeito da crise de segurança em Port-au-Price. Ressalta-se que tal grupo não foi devidamente institucionalizado no Consle do Caricom e se mostra como um componente informal que flutua dentro da estrutura da instituição.
Apesar disso, em menos de trinta dias, o EPG foi alçado pelo Conselho de Segurança da ONU como um grupo que teve um papel chave na facilitação do diálogo político para a construção de uma resolução cujo conteúdo e data de votação o primeiro-ministro Ariel Henry afirmava desconhecer até o dia 30 de setembro. Lidar com a falta de diálogo com as partes interessadas que terão sua soberania quebrada não é exatamente um problema para o Conselho de Segurança, posto que mesmo no século XXI o CSNU aprovou resoluções sem o conhecimento ou consentimento de chefes de Estado de países que sofreriam intervenção, como a Res. 1593/2005 do Sudão. O problema é que a Resolução 2699/2023 afirma que a MSS foi construída em cooperação estreita com o governo haitiano.
Embora seja de difícil compreensão o motivo de tanta rapidez e desencontros políticos para a aprovação dessa Resolução, existem duas perguntas de fundo que gostaríamos de sugerir: o Caricom possui atribuições legais de agir para a manutenção da segurança no Caribe ou seu Regimento o permite, no máximo, coordenar questões comerciais? Em caso positivo, por que o Conselho não legitimou o EPG ou o Consle, da Caricom, como uma missão de Observação baseada no Capítulo VI (“Solução Pacífica de Controvérsias”)?
Outra questão jurídica que julgamos importante diz respeito à possibilidade de o Conselho de Segurança aprovar uma Missão baseada no Cap. VII, a qual não terá o planejamento da Comissão de Estado Maior composta pelos Chefes de Estado Maior dos membros permanentes, conforme determina o Art. 47 do próprio Cap. VII da Carta da ONU. Quantas interpretações ambíguas ou contraditórias do Cap. VII podem ser feitas? Esse excesso de insegurança jurídica não ajudará o Haiti: nem a PNH nem o governo questionável de Ariel Henry e muito menos o próximo governo.
Intervenção humanitária ou dominação do Haiti pela comunidade internacional?
Uma discussão central, portanto, é sobre o limite das iniciativas do Conselho de Segurança da ONU nos países. O engajamento da ONU mal consegue esconder os limites e as contradições da diplomacia internacional ao enviar uma nova missão àquele país sob a narrativa de “apoio à estabilização”. A pressa em colocar essa Resolução para aprovação no primeiro dia da presidência do Brasil no Conselho, a notável falta de legitimidade e de legalidade dos atores citados como chave para a elaboração da Resolução, bem como o comando militar delegado ao Quênia, que já sofre severas críticas dos setores de oposição ao frágil governo de William Ruto (acusado de crimes contra a humanidade junto ao Tribunal Penal Internacional), demonstram a correta estruturação de uma missão que efetivamente atuará com boa fé para a estabilização de Port-au-Prince?
Uma outra questão diz respeito à participação do Sul global na liderança dessas missões do CSNU pelo mundo. Seria essa mais uma tentativa das potências hegemônicas que “usam” os países mais identificados com essas problemáticas com o intuito de criar uma “imagem” mais legítima perante a opinião pública global? E, com isso, mascarar por meio dessas intervenções em prol da paz e da narrativa de estabilização a dominação sobre esses países do Sul que oferecem alguma ameaça?
Acreditamos que a instrumentalização de mecanismos de diálogo, aliada à realização de eleições presidenciais no Haiti o mais rapidamente possível, fará com que a escalada do conflito alcance a sua menor curva. Para tanto, vale a pena dar um passo atrás, sustentável, com base no Cap. VI da Carta da ONU, que estabelece que a solução a ser oferecida pelo CSNU a uma controvérsia entre as partes se daria mediante negociação, mediação, conciliação, arbitragem ou recurso a organismos e acordos regionais (Art. 33). Assim, seria possível que o Haiti tenha uma paz duradoura e sustentável que tanto merece, por ser a nossa referência epistêmica de luta pela liberdade e pelo antirracismo nas Américas.
Um grupo de pesquisadores e ativistas brasileiros, identificados pela Iniciativa Brasil-Haiti lançou em agosto uma Carta-Manifesto na qual pedia que o Brasil não se envolvesse em uma missão do CSNU de intervenção no Haiti. A Carta foi entregue à chancelaria brasileira que logo ocuparia a presidência do Conselho e seria pressionada para tal. Apesar de ir contra os interesses legítimos haitianos na primeira Resolução, a diplomacia brasileira parece reconhecer seu papel como país do Sul global. Seria isso consequência da negativa dos Estados Unidos à sua proposta de resolução em apoio à assistência humanitária na Faixa de Gaza e, por isso, ao amadurecimento brasileiro de como os interesses estadunidenses estão muito pouco alinhados com os seus? Se a posição do Brasil é tratar o Haiti como um “irmão caribenho”, dificilmente isso ocorrerá a partir das lentes dos interesses dos Estados Unidos.
Tadeu Maciel, Renata de Melo Rosa e Marina Bolfarine Caixeta são pesquisadores, respectivamente, da UFF, do Instituto Maria Quitéria e da UFG (bolsista pós-doc da CAPES) e fazem parte da Iniciativa Brasil-Haiti e do Grupo de Pesquisa sobre o Haiti inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq em 2022.
[1] PIERRE-CHARLES, Gerard. Haiti: crise do Estado e intervenção. Teoria e Debate, São Paulo, v. 17, n. 59, ago./set. 2004.
[2] Cf.: THE TRICONTINENTAL. No Military Intervention, but Yes to the Haitian Insurrection, 20/10/2022. Disponível em: <https://thetricontinental.org/red-alert-16-haiti-insurrection-military-intervention/>.
[3] PATRIOTA, Antonio. Prefácio – Brasil e Haiti. In: HAMANN, Eduarda Passarelli (org.) Brasil e Haiti: Reflexões sobre os 10 anos da Missão de Paz e o Futuro da Cooperação após 2016. Edição Especial – Coletânea de artigos, Artigo Estratégico 13, Rio de Janeiro: Instituto Igarapé, Jan. 2015
[4] CASIMIR, Jean. o Haiti e suas elites: o interminável diálogo de surdos. Universitas, CEUB, v. 10, n. 2, 2012. Disponível em: <https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/relacoesinternacionais/article/view/2071>.
[5] SEITENFUS, Ricardo. A ONU e a epidemia de cólera no Haiti. São Paulo: Alameda, 2019.
[6] JOHNSTON, Jake. UN Points to MINUSTAH as “Model of Accountability” for Sexual Abuse Cases. CEPR – Center for Economic and Policy Research, 27 mai. 2015. Disponível em: <https://cepr.net/un-points-to-minustah-as-model-of-accountability-for-sexual-abuse-cases/>.
[7] Cf.: MACEDO. Idhelene. Direitos Humanos recebe denúncia contra tropas no Haiti. Agência Câmara de Notícias, 20 ago. 2008. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/ 121713-direitos-humanos-recebe-denuncia-contra-tropas-no-haiti/>.
[8] CASTRO, Celso. MARQUES, Adriana (orgs.). Missão Haiti: a visão dos force commanders. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2019.