História da crise sócio-política do Haiti: como tudo chegou ao ponto atual?
Da colonização a missões desastrosas, de terremotos à exploração de stevia para a indústria de refrigerantes, o Haiti é símbolo de tudo o que tem acontecido na América Latina. Porém, a despeito de seu tamanho territorial, as consequências se elevam à terceira potência, como demonstrado neste texto definitivo sobre o tema, do pesquisador Wisly Joseph. Acompanhe no novo artigo da série Desafios da integração
No Haiti, o fim do colonialismo enquanto relação política não significou o fim do colonialismo enquanto relação social. Depois da independência, o país passa a ser dividido estruturalmente em duas partes distintas e conflitantes: os crioulos (antigos livres) e os bossales (novos livres) que existiam desde o século XVIII. Isso levaria ao fenômeno de “dois Haitis”. No plano internacional, países como Estados Unidos, França e Canadá praticam uma política imperialista coletiva em relação ao povo e aos governos haitianos. No plano regional, apesar de sua contribuição nas lutas de independência dos países latino-americanos, não era bem acolhido por seus vizinhos no início do processo da integração. Partindo dessa perspectiva, podemos entender brevemente a realidade social e política do país em quatro sentidos: 1) a exclusão do povo do campo; 2) a marginalização do Haiti no cenário internacional modelado pelos valores e práxis ocidentais; 3) o lugar do país no processo da integração latino-americana-caribenha; 4) a atual crise sócio-política pós-Jovenel Moïse, presidente morto em 2021.
Da colonização à libertação
Com a conquista das Américas, o Haiti foi a primeira terra a experimentar colonialismo, escravismo, capitalismo, racismo e extermínio aplicados pelos conquistadores europeus. Os povos taínos foram as primeiras vítimas desse processo. Dessa forma, em menos de meio século, cerca de 1 milhão de nativos foram totalmente exterminados, bem como seus saberes ancestrais.
Em consequência, os colonos europeus iam traficar os africanos para substituir a força de trabalho dos indígenas, até que, gradualmente, o tráfico negreiro se tornou a espinha dorsal do sistema mundial escravista. Os maiores traficantes de escravos negros no Novo Mundo eram e continuam sendo os britânicos, os únicos responsáveis por quase metade das deportações. Depois deles, vieram os portugueses, seguidos pelos franceses e holandeses1.
Ao longo da colonização francesa, por volta de 1780, São Domingos (Haiti) representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro. Sua estrutura era sustentada pelo trabalho de 500 mil escravizados2. A renda de São Domingos era maior que a renda total das treze colônias norte-americanas da Grã-Bretanha juntas. O sistema colonial violento imposto pelo imperialismo francês transformou São Domingos em uma das colônias mais ricas do mundo, famosamente conhecida como a “Pérola das Antilhas”.
Porém, o forte domínio e controle impostos pelo sistema colonial francês não impediu o espírito de libertação e independência dos escravos, em São Domingos3. A luta política pela vida e resistência epistêmica dos povos afros é tão velha nas Américas quanto a sua submissão ao escravismo, ao colonialismo, capitalismo e patriarcado. Na busca do caminho da liberdade, a massa popular haitiana utilizou sua cultura de matriz africana para denunciar o conhecimento hegemônico europeu, em particular, o da França.
Na noite de 14 de agosto de 1791, em Bois-Caiman, na parte norte do Haiti, o sacerdote vodu hungan Boukman Dutty e a sacerdotisa Cécile Fatiman realizaram um serviço religioso que traçou os planos para um levante geral de escravos. Seis dias depois, os negros africanos começaram a massacrar todos os homens, mulheres e crianças brancos em que puderam4 colocar as mãos. Os brancos, por sua vez, fizeram o mesmo, massacrando todos os negros que puderam. A resistência durou quase treze anos, os líderes revolucionários do exército indígena haitiano aboliram a escravidão e proclamaram a independência em primeiro de janeiro de 1804. Após a declaração da independência, o líder revolucionário Dessalines escolheu o nome do Haiti (Ayti) em homenagem às populações indígenas que habitavam a região antes da invasão dos europeus.
“Dois Haitis”
No Haiti pós-independência, o fim do colonialismo enquanto relação política não acarretou o fim do colonialismo enquanto relação social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e discriminatória5. Como dito, o país passa a ser dividido estruturalmente em duas partes distintas – os crioulos (antigos livres) e bossales (novos livres) que existiam desde o século XVIII e levariam ao fenômeno de “dois Haitis”6.
Os conflitos entre essas duas classes irão dominar a situação sociopolítica do país até hoje. Partindo dessa perspectiva, o Haiti, desde então, teria duas culturas opostas: por um lado, uma cultura oficial (família moderna, francês, catolicismo e instituições) centrada no poder do Estado – imposta pela classe elitista; por outro lado, uma cultura popular (lakou, crioulo, vodu e kombit) representada pelo campesinato que, por sua vez, estaria fora do Estado.
É preciso lembrar que, na época da independência do Haiti, em 1804, o principal recurso da economia haitiana era a terra. Consequentemente, as atividades agrícolas foram a principal ocupação da mão de obra local durante os séculos XVIII e XIX7. Portanto, à exceção de Jean Jacques Dessalines, os chefes de Estado distribuíram as terras apenas aos militares. O Estado confiscou as propriedades pertencentes ao reino da França e aos colonos franceses8. Os camponeses foram obrigados a encontrar soluções próprias através das lutas armadas e da solidariedade. Eles lutavam sempre contra a burguesia agrária. As revoltas populares mais conhecidas foram entre os anos de 1807 sob a liderança de Goman, a revolta do campesino de 1843, a dos Piquets e Cacos em 1867-1869, e as lutas dos Cacos contra a invasão dos Estados Unidos.
Isolamento diplomático, ocupação estadunidense e resistências
No início do século XIX, o Haiti ficou completamente isolado no nível econômico, político e diplomático por quase sessenta anos. As potências europeias temiam que a práxis política libertadora do povo haitiano se espalhasse e colocasse o sistema mundial escravista em colapso. A nação recém-nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia. Por causa disso, as elites aceitaram, em 1826, pagar uma indenização gigantesca de 90 milhões de francos de ouros à França, pela perda de sua colônia florescente e reconhecimento de sua independência. Tal indenização agravou ainda mais a situação socioeconômica do país, perdurando até os dias atuais.
Nas décadas seguintes, para limitar a presença dos imperialistas europeus, em especial França, Alemanha e Inglaterra, os Estados Unidos ocuparam militarmente os países da América Central e Caribe, como Porto Rico e Cuba, desde 1898, Panamá em 1901, República Dominicana em 1908, Nicarágua em 1909 e 1930, e Haiti em 1915, com justificativas nas doutrinas Monroe, Destino Manifesto e política de Big stick.
Do ponto de vista geopolítico, o Haiti está no centro do continente americano, sua posição geoestratégica no caminho ao canal de Panamá, com o cais [Môle] Saint-Nicolas considerado o Gibraltar do Novo Mundo9. De fato, o Haiti torna-se um território estratégico para que se concretize a expansão da comunicação marítima beneficiando os Estados Unidos10.
Durante a ocupação (1915-1934), os estadunidenses controlavam a administração pública e as terras férteis, assassinaram 50 mil camponeses e sustentavam a ditadura de Papa Doc e Baby Doc para torturar os povos. Do ponto de vista epistêmico, os intelectuais haitianos do Negritude, como George Sylvain, Sténio Vincent e Jean Price Mars, fundaram a organização da União Patriótica, que já reuniu cerca de 16 mil membros para denunciar o racismo científico por parte dos invasores estadunidenses e defendiam suas identidades nacionais com base nas tradições da África negra. Na década de 1930, o Negritude torna-se um debate em torno dos intelectuais como Aimé Césaire, Léopold Sedar Senghor e Léon Gontran Damas. Em suas análises, eles criticavam a ideologia colonial e defendiam a valorização do mundo negro.
Haiti e integração latino-americana-caribenha
Do ponto de vista regional, os primeiros governos haitianos (Dessalines e Petion) ajudaram os precursores das lutas pelas independências latino-americanas, como Francisco Miranda, Javier Mina e Simon Bolívar, com voluntários, munições e armas. No entanto, o Haiti não foi convidado a participar no Congresso do Panamá de 1826 idealizado por Bolívar – enquanto a Inglaterra esteve presente – e quase dois séculos depois foi ocupado pelas tropas militares de países como Brasil, Bolívia, Argentina e Chile.
A ideia de integração era presente desde o século XIX para a América Latina, com destaque para líderes políticos como Jean Jacques Dessalines e Alexandre Pétion, por suas ajudas contra-hegemônicas aos povos da região, e sobretudo Simon Bolívar em sua Carta de Jamaica e José Martí em Nuestra América. O unionismo bolivariano11 defendeu a criação da Liga Hispânico-Americana para evitar a recolonização pelos países europeus ou o imperialismo estadunidense na região.
Outra fonte encontrou-se nos projetos de integração inspirados em autores como Raul Prebisch e Celso Furtado, dois dos pensadores influentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), criada em 1948. Ambos procuravam compreender a complexidade do mundo dividido em dois – centro-periferia –, fundamentado na divisão internacional do trabalho. Nas suas considerações, o comércio internacional, com base na teoria de vantagem comparativa de David Ricardo, leva à deterioração dos termos de trocas e reforça as assimetrias entre os países do Norte frente os do Sul. Naquele momento, os países da África e da Ásia formavam os não alinhados através da Conferência de Bandung e construíam um bloco de resistência frente ao capitalismo, ao colonialismo e ao comunismo.
A Cepal desenvolveu diversos estudos para promoção do desenvolvimento voltado para as economias latino-americanas, com base no regionalismo fechado; por isso, até 1990, a ideia de integração regional era compreendida dentro dos limites do protecionismo comercial, isso esteve estreitamente relacionado ao fracasso da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) na década de 1960.
Partindo desse contexto, os estudos de Cepal passaram a justificar as necessidades de inserir as economias ainda frágeis da região no mercado global, no que ficou conhecido como regionalismo aberto, elaborado em 1994, no título de “El regionalismo abierto en América Latina y Caribe”. Contudo, tal movimento representou uma mudança do modelo de desenvolvimento prévio, voltado para dentro, e a adoção de uma estratégia de inserção “competitiva” na economia globalizada12. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta pelos Estados Unidos aos países latino-americanos na década de 1990, foi entendida como uma das iniciativas do regionalismo aberto. A Alca foi, posteriormente, derrotada pelos governos pós-neoliberais, que compartilham de ideias da esquerda e da socialdemocracia, em favor da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba).
Devemos falar também da relação haitiano-cubana no contexto da cooperação Sul-Sul. A revolução haitiana teve grandes impactos não só no Caribe, nos níveis continental e universal, mas também, sem dúvida, teve uma influência especial no destino de Cuba. Entre os anos de 1791 e 1804, milhares de brancos franceses e espanhóis refugiaram-se com seus escravos em Cuba. Com o desaparecimento da produção e comercialização do açúcar haitiano, o território cubano tornou-se o maior exportador mundial de açúcar. Portanto, no final do século XIX, o Haiti cooperou com os revolucionários cubanos que preparavam a guerra de 1895, e José Martí recebeu boas-vindas no território haitiano, inclusive apoio do presidente Florvil Hyppolite.
Essa influência haitiana em Cuba foi uma fonte de inspiração para proeminentes intelectuais cubanos. O ensaísta Alejo Carpentier viajou ao Haiti pela primeira vez em 1943 e foi profundamente atraído pela história do país. Nessa memorável viagem, encontrou as bases para escrever El Reino de este mundo, publicado em 1949, romance de profunda consciência histórica, que conta a história do Haiti antes, durante e depois da Revolução Haitiana liderada por Toussaint Louverture.
Desde 1961, cerca de 2.500 jovens do Caribe se formaram em Cuba, a maior parte deles do Haiti, num total de 472, sendo 16 no nível técnico médico e 456 no nível superior. Isso significa que, junto com as brigadas médicas cubanas, 266 médicos haitianos se formaram e já estão trabalhando na maior das Antilhas. Em setembro de 2004, diante da emergência pelas inundações na cidade de Gonaives, Cuba doou 22 toneladas de alimentos, remédios e insumos médicos, e inaugurou o centro de saúde Raboteau, equipado com serviços de urgência, terapia intensiva, salas de parto, ecografia, laboratórios clínicos, esterilização, cirurgia, entre outros serviços13.
Cuba é um dos vértices do triângulo de cooperação Cuba-Venezuela-Haiti no mapa da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). A aliança, da qual o Haiti é membro observador, nasceu com mecanismos que consideram as assimetrias econômicas entre os países da região, oferecendo uma integração de forma horizontal. A Alba vem consolidando sua ajuda ao Haiti por meio de projetos que proporcionam cooperação em várias áreas, entre as quais cabe citar saúde, energia, infraestrutura e saneamento14.
Com a assinatura do acordo Petrocaribe em 2005, sob o governo Hugo Chávez, a Venezuela fornece assistência financeira significativa ao Haiti por meio dos termos do programa. Nesse âmbito, o Haiti tornou-se participante de um acordo comercial preferencial, no qual poderia pagar pelo petróleo venezuelano ao longo de 25 anos, com taxa de juros de 1%15. Após o terremoto, em junho de 2010, o governo venezuelano cancelou toda a dívida do Haiti com a Petrocaribe, num total de quase US$ 400 milhões.
Em 2004, após o golpe de Estado contra o presidente Jean Bertrand Aristide, Estados Unidos, França e Canadá apoiaram a criação da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), à qual o Brasil aderiu como liderança. A missão foi concebida originalmente com objetivo de colaborar com instituições locais em um contexto de instabilidade política dominada pelo crime organizado. Depois de treze anos de missão, a Minustah chegou ao fim, em outubro de 2017, dando lugar à mais modesta Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti (Minujusth), visando treinar os policiais e fortalecer as instituições democráticas do país.
A ação da Minustah deixou para o Haiti um legado de mais de 30 mil mortos, em decorrência do cólera; mais de 2 mil vítimas de abusos sexuais; e 700 mil pessoas ficaram doentes. Em 2005, alguns soldados brasileiros entraram na favela de Cité Soleil, habitada por 200 mil pessoas, massacraram pelo menos 27 civis durante a ação, sendo que 20 eram mulheres com menos de 18 anos. Em resposta à doença de cólera, em 27 de março de 2010, Brasil, Cuba e Haiti assinaram um acordo de cooperação em saúde pública com grandes projetos de vacinação, na área epidemiológica, em comunicação e em saúde pública. Esse projeto teve início logo após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, como consequência direta da participação brasileira na ajuda humanitária e na cooperação com o Haiti. Um dos objetivos desse projeto foi também buscar uma solução para a epidemia da cólera, doença que atingiu a ilha pela primeira vez. O slogan desse projeto foi a expressão “Juntos pela saúde” (Tèt ansanm pou la sante) ou “Unidos pela saúde” (Unis pour la santé).
Haiti como laboratório do neoliberalismo
Na década de 1990, os países latino-americanos começaram a se conformar às exigências do chamado Consenso de Washington – caracterizadas pelas ondas de privatizações das empresas estatais em setores estratégicos, como energia e telecomunicações, a diminuição do Estado na economia e a abertura das economias aos investimentos internacionais.
No caso do Haiti, o ano de 1986 foi marcado tanto pela queda da ditadura Duvalier, como pelo início da era neoliberal imposta pelas potências dominantes e instituições financeiras internacionais (IFI). Com efeito, nove empresas públicas foram brutalmente privatizadas: a empresa de electricidade (EDH), a empresa de telecomunicações (Teleco), o Banco Nacional de Crédito (BNC), o Banco do Povo Haitiano (BHP), a Minoterie (moinhos do Haiti, farinha e pão), a Autoridade Portuária Nacional (APN), o moinho de óleo Enaol, o Cimento do Haiti, e os aeroportos.
O extermínio do porco crioulo também é um dos episódios que marcaram a situação socioeconômica e política do Haiti. Todos os camponeses haitianos tiveram que entregar seus porcos pretos, perfeitamente adaptados ao país, para serem abatidos e substituídos por porcos cor-de-rosa, que eram muito menos resistentes e muito mais caros. A erradicação dos porcos crioulos mergulhou na pobreza os camponeses que viviam da sua criação, já que as autoridades tiraram seu único meio de subsistência16.
A eliminação de direitos e quotas de importação levou ao influxo de excedentes agrícolas estadunidenses (arroz, açúcar e milho) na ilha, levando à destruição da economia camponesa. O Haiti tornou-se membro da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1996. Em 2010, o ex-presidente Bill Clinton pediu desculpas publicamente por forçar o Haiti a reduzir as tarifas sobre o arroz subsidiado importado dos Estados Unidos durante seu governo. A medida havia acabado com o cultivo de arroz e prejudicou seriamente a capacidade do Haiti ser autossuficiente.
Além disso, o ano de 2010 foi marcado por grandes desastres, incluindo o terremoto de magnitude 7,3 em janeiro, o furacão Tomas em novembro e uma nova epidemia de cólera. Além do neoliberalismo, o problema da degradação ambiental continua a preocupar as autoridades nacionais e locais, até mesmo as famílias rurais começam a envolver-se de forma mais responsável na gestão do seu ambiente17.
Crise do sistema democrático
A instalação do sistema democrático em 1991 com Jean Bertrand Aristide, primeiro presidente eleito, não mudou a situação do país. Em 1994, os Estados Unidos enviaram uma força invasora de 20 mil homens para restaurar a democracia e restabelecer Aristide, novamente, como presidente. Alguns anos depois, ele foi desestabilizado. Em 1996, sob o governo de René Préval, o Haiti foi forçado a assinar os acordos neoliberais que acabaram privatizando as empresas públicas mais rentáveis, já citadas, conforme a lógica do Consenso de Washington.
O ex-presidente Michel Joseph Martelly (2011-2015) praticou uma política anti-camponesa, e escolheu o setor privado como principal agente da criação de riqueza e empregos. Durante todo seu governo defendeu o slogan: “Haïti is open to business“18, sem, contudo, institucionalizar boas políticas públicas e redistribuição de terra. Jovenel Moïse, seu sucessor, por sua vez, fez todas as suas campanhas presidenciais em torno dos acessos aos alimentos e empregos. No entanto, sua política não foi diferente daquela de seu ídolo; antes de ter sido assassinado, ele deu à família burguesa Apaid uma grande parte da reserva de terras agrícolas do país, com cerca de 8.600 hectares, para a produção de stevia como adoçante em benefício da multinacional Coca-Cola, e uma soma de US$ 18 milhões.
Nos últimos trinta anos, o país conheceu uma instabilidade institucional e democrática em que vários governos não conseguiram terminar os seus mandatos. Após a queda da ditadura de Papa Doc e Baby Doc (1957-1986), apenas três mandatos chegaram os fim (René Préval I e II e Michel Joseph Martelly).
Rapidamente, após Moïse morrer, Ariel Henry, um cirurgião de 71 anos, foi o escolhido por um grupo de embaixadores dos seguintes países: Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Canadá, Espanha, França, União Europeia, assim como a representante especial da Organização dos Estados Americanos (OEA) e a representante especial do secretário-geral da ONU. Ariel exerce ilegalmente a função de primeiro-ministro e presidente, apoiado pelos países que se dizem democráticos.
Por oposição, um grupo de organizações políticas e partidos civis nasceu por meio de um acordo político conhecido como Acordo de Montana, em 30 de agosto de 2021, para estabelecer um novo governo provisório após o assassinato do presidente Jovenel Moïse. Os membros opõem-se ao governo de facto do primeiro-ministro Ariel. Eles escolheram o economista Fritz Alphonse Jean, ex-gestor do Banco da República do Haiti de 1998-2001, o qual declarou o seguinte: “Devemos nos unir para proporcionar às pessoas educação, saúde, justiça e que o país entre nos tempos modernos e nas novas tecnologias”. O objetivo do acordo de Montana é “Por uma solução haitiana para a crise”. A eleição de Fritz Jean, no entanto, não foi reconhecida nem pelo primeiro-ministro Ariel nem pela comunidade internacional.
As autoridades ficaram mais preocupadas pela conquista do poder. Em 2022, a situação sócio-política agravou-se por causa da ausência das instituições legítimas pós-Jovenel, da falta de segurança e da crise humanitária. Forças criminosas controlam algumas áreas estratégicas e econômicas do país, em particular a capital. Essa situação teve consequências desastrosas para o mundo empresarial, escolas e hospitais. Mais de 42% da população haitiana depende de ajuda humanitária e até 40% do país enfrenta grave insegurança alimentar, de acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA).
Apesar dessas condições deploráveis, os Estados Unidos e outros países repatriaram cerca de 41 mil haitianos, por via aérea e marítima, entre janeiro de 2021 e setembro de 2022. Segundo dados disponíveis, entre fevereiro e outubro de 2022, a República Dominicana, país localizado na mesma ilha que o Haiti, deportou cerca de 59 mil pessoas para o Haiti, algumas das quais nasceram na própria República Dominicana, mas foram consideradas haitianas pelas autoridades. O número de pessoas que precisam de assistência humanitária, incluindo acesso à moradia, saúde, educação ou outros serviços básicos, passou de 4,4 milhões em 2021 para 4,9 milhões em 2022.
Conclusão
O imperialismo e o colonialismo interno estão entre as grandes problemáticas que desafiam a questão das políticas públicas no país. A redistribuição das terras, o acesso à saúde, educação e segurança pública há muito tempo não são preocupações dos governos haitianos – ou nunca foram. O povo é estrangeiro em seu próprio território por causa das barreiras estruturais entre os “dois Haitis”. De fato, o povo tem por necessidade pensar as políticas sociais e culturais libertadoras para acabar com a colonização interna e as interferências externas na vida pública.
O futuro do Haiti tem que ser pensado e concretizado a partir de uma práxis político-epistêmica própria e junto a seus vizinhos latino-americano-caribenhos, no contexto das relações Sul-Sul. A riqueza do Haiti vem de sua história de luta pela libertação, de seu vodu de matriz africana, de sua arte, de sua língua crioula, de sua comida, da qualidade de seus climas, de seus portos, de suas águas marítimas e de rio, de sua terra fértil, de seus monumentos e estátuas e seus recursos estratégicos. Por tudo isso, o Haiti precisa de uma região mais aberta, democrática, pluralista e sincera para reforçar as bases da unidade dos países latino-americano-caribenhos e construir nuestra américa.
Wisly Joseph nasceu no departamento de Artibonite, um dos epicentros da Revolução Haitiana e das lutas dos camponeses pelo acesso à terra e às políticas públicas. Fez ensino médio no Lycée Jean Robert Cius, em Gonaives, cidade da independência haitiana. No Brasil, graduou-se em Relações Internacionais e é mestre em Integração Contemporânea da América Latina pelo PPG-ICAL, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). E-mail: [email protected].
1 BASTIDE, Roger (1974). Les Amériques noires. 2e éd., Paris, Payot.
2 JAMES, Cyril Lionel Robert (2010). Os jacobinos negros: Toussaint L´Ouverture e a revolução de São Domingos/C. L. R. James; tradução Afonso Teixeira Filho, – 1.ed. ver. – São Paulo: Boitempo.
3 ORIOL, Michèle. Histoire et dictionnaire de la révolution et de l’indépendance d’Haïti, 1789–1804. Port-au-Prince: Fondation pour la recherche iconographique et la documentaire, 2002
4 LUNDY, Garvey F. (2005). Haitian Revolution. In: Encyclopedia of Black studies / edited by Molefi Kete Asante [and] Ama Mazama. Sage Reference Publication, Inc.
5 SOUSA SANTOS, Boaventura de (2004). Do moderno ao pós-colonial. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro- Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra, de 16 a 18 de Setembro.
6 BARTHÉLÉMY, Gérard (1989). Le pays en dehors: essai sur l’ univers rural haitien. Port-au-Prince: Éditions Henri Deschamps/Montréal: CIDIHCA (Centre International de Documentation et d’information Haïtienne, Caribéenne et Afro-Canadienne).
7 LAHENS, Jean Richard (2014). L’aide internationale à Haïti favorise-t-elle le développement durable? [Maîtrise en environnement] Université de Sherbrooke.
8 CASTOR, Suzy (2019a). Les origines de la structure agraire en Haïti. Édition numérique réalisée le 7 août à Chicoutimi, Québec.
9 MANIGAT, Leslie F. (2004). Da hegemonia francesa ao imperialismo americano: 243-253. In Marc Ferro (org.). O livro negro do colonialismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
10 MARTINS, Dayqueline Cortez Gomes (2019). Haiti no contexto regional e geopolítico: uma abordagem sobre os desafios para a (re)construção do Estado Nacional e a Minustah (2017) / Dayqueline Cortez Gomes Martins. – Foz do Iguaçu, PR. 153 f.: il.
11 AGUIERRE, Indalecio L. Bolivarismo y Monroísmo. Colección Alfredo Maneiro – serie pensamiento social. Caracas, Venezuela: Ministerio de la Cultura, Fundação Editorial el Perro y la Rana, 2006.
12 LIMA, Maria Regina Soares de.; COUTINHO, Marcelo Vasconcelos [Coordenadores do OPSA]. Integração Moderna. Observatório Político Sul-Americano. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM, janeiro de 2006.
13 REINOSA, Martínez; ELENA, Milagros (2008). Las relaciones entre Cuba y Haití: un modelo ejemplar de cooperación Sur-Sur. Buenos Aires Lugar CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.
14 MART INS, Dayqueline Cortez Gomes (2019). Haiti no contexto regional e geopolítico: uma abordagem sobre os desafios para a (re)construção do Estado Nacional e a Minustah (2017) / Dayqueline Cortez Gomes Martins. – Foz do Iguaçu, PR. 153 f.: il.
15 EDMONDS, Kevin (2012). Haiti: ALBA expands its allies in the Caribbean. PamBazuca News: voices for freedom and justice, publicado em 29 de fevereiro de 2012.
16 LAHENS, Jean Richard (2014). L’aide internationale à Haïti favorise-t-elle le développement durable? [Maîtrise en environnement] Université de Sherbrooke.
17 CISA-Conseil International pour la Sécurité Alimentaire; CNSA-Coordination Nationale de la Sécurité Alimentaire (2018). Actualisation du plan national de sécurité alimentaire et nutritionnelle. PNSAN, version finale, Mars 2010.
18 THOMAS, Frédéric (2015). Haïti Un modèle de développement anti-paysan. Bruselas : Entraide et Fraternité.
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Pensar a integração da América Latina hoje para o mundo e para si mesma, em sua potencialidade criativa, na prática política e na geração de conhecimento é o objetivo da série especial Desafios da integração, realizada em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL) da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Estado, economia, ecologia, movimentos populares, geopolítica e comunicação são âmbitos que orientam nossa jornada.