História de uma palavra ardilosa
O que significa ser “de esquerda”? A pergunta pode parecer ingênua, dada a insistência com que esse rótulo estrutura tanto as identidades das organizações políticas quanto os valores individuais. Mas a divisão entre esquerda e direita não tem nada nem de natural, nem de imutável, nem de necessárioLaurent Bonelli
Na França, no século XVIII, a principal clivagem da sociedade confrontava uma aristocracia fundiária dotada de poder político a uma burguesia comerciante e de negócios reduzida ao papel de arrendadora de recursos. O monopólio conquistado por essa burguesia após a Revolução Francesa mobilizou os republicanos do século XIX, que ampliaram o direito de voto. À autoridade social pessoal dos aristocratas, os recém-chegados à cena social opunham uma forma coletiva de organização: o partido político. Às distribuições de dinheiro, de bebidas ou de alimentos associadas ao voto, eles respondiam com a elaboração de programas e a valorização da ideologia. Pouco a pouco, essas regras do jogo se impuseram a todos.
Mas elas não foram suficientes para isolar uma “identidade” de esquerda. Na verdade, a história está cheia de mudanças de posição de peças no tabuleiro do jogo político. Quando chegaram ao poder, os republicanos – batizados de “oportunistas” – foram vítima dos ataques dos “intransigentes” e dos radicais. Mais tarde, foi a vez desses mesmos radicais ocuparem o posto de alvo dos socialistas, depois que Georges Clémenceau, então ministro do Interior, ordenou a repressão às greves de 1906. “Quando confrontado ao vazio de suas concepções de futuro, o crítico de ontem é inevitavelmente conquistado por um movimento mal-humorado, que se traduz pela abundância do emprego [da força] policial e militar”, afirmaria Jean Jaurès em 1906. A seu turno, a Seção Francesa da Internacional Operária (Sfio) sofreria os ataques dos comunistas, a ponto de perder o controle no congresso de Tours, em 1920. Essas lutas intestinas sobre a definição do que é ser de esquerda remodelaram permanentemente os valores por ela encarnados: por ocasião do caso Dreyfus, por exemplo, o nacionalismo pregado pelos republicanos foi assumido pelos conservadores.
E se no jogo político a esquerda aparece mais como uma posição relativa do que como uma identidade fixa, por que falar então de “partidos de esquerda”? As agremiações que reivindicam a ostentação desse rótulo têm em comum o fato de terem aparecido em um período marcado pela Revolução Industrial e pela parlamentarização dos regimes. O crescimento da indústria levantou de um modo novo a questão da divisão da riqueza derivada da produção (o valor agregado), ou seja, as relações entre o capital e o trabalho. E a esquerda se pôs então decididamente ao lado dos trabalhadores (em particular dos operários), de onde o nome dos partidos criados naquela época: Partido Trabalhista, no Reino Unido (e em suas colônias); Partido Socialista Operário Espanhol (Psoe); Partido Operário Socialista (Sozialistische Arbeiterpartei, ancestral do Partido Social-Democrata), na Alemanha; Partido dos Trabalhadores Italiano etc.
Os objetivos iam no mesmo sentido, apesar de terem variações nacionais (sobretudo em função da intensidade da luta contra a Igreja). O “Regulamento” adotado em janeiro de 1905 anunciava, por exemplo, que a Sfio era “um partido de classe com o objetivo de socializar os meios de produção e de troca, ou seja, de transformar a sociedade capitalista em sociedade coletivista ou comunista, e cujo instrumento é a organização econômica e política do proletariado”. O Labour britânico formou um comitê representando os trabalhadores, com a responsabilidade de encarnar as reivindicações dos sindicatos na arena parlamentar.
A estratégia perante as instituições políticas variava. Para os mais revolucionários, os regimes parlamentares representavam os proprietários, e por isso deviam ser combatidos sem piedade. Para outros, eles podiam ajudar a resolver a questão social.1
A ascensão ao poder dos movimentos de esquerda acentuou essa tensão. Os governos oriundos da Revolução Russa sacudiram o regime da propriedade e desconectaram o ganho da atividade salarial. Eles fundaram uma economia estrangeira às regras de mercado e que se dizia defensora da igualdade. Em outros casos, experiências reformistas tentaram diminuir o antagonismo entre capital e trabalho por meio de uma divisão menos injusta da riqueza. Esse foi, por exemplo, o caminho empregado pela maior parte das sociais-democracias. Sob a pressão orgânica ou conjuntural dos movimentos operários, sindicais e sociais, elas conseguiram ampliar as proteções dos trabalhadores (aposentadorias, assistência médica, férias remuneradas), além de promover reformas fiscais que geraram distribuição de renda.
Atualmente, no momento em que todos os indicadores convergem, apontando a parte “atipicamente elevada” dos lucros, relativamente aos salários, na maioria das economias desenvolvidas, é surpreendente que a questão da divisão das riquezas ocupe uma parcela tão discreta nas reflexões e nos projetos da esquerda, e que a discussão dos regimes de propriedade tenha praticamente desaparecido.
O desmoronar do bloco comunista praticamente aniquilou a ideia de uma alternativa à economia de mercado. As transformações do capitalismo (financeirização, transnacionalização) e as do âmbito do salário complicaram ainda mais a questão.
Mas a profissionalização da atividade política também teve seu papel.2 No início, de modo paradoxal, ela representava uma condição necessária para a democratização. Viver paraa política era coisa simples para os aristocratas, pois seus recursos os protegiam da necessidade. Em contrapartida, os recém-chegados precisavam poder viver dapolítica. Pouco a pouco, o fim acabou se confundindo com os meios. Para funcionar, os partidos precisam ser eleitos, e, para dar continuidade à atividade na qual se especializaram, os eleitos precisam do partido. Muito rapidamente, esse mecanismo de profissionalização viria acompanhado de uma seleção social. Na ausência de uma política voluntarista de promoção (como a do Partido Comunista Francês, durante décadas), os de condição social mais modesta são excluídos dos cargos mais importantes: na Assembleia francesa, 7% dos eleitos pertencem atualmente a grupos operários, de funcionários e setores de serviços, que somados representam mais de 60% da população ativa…
Dessa forma, o campo político tende a eliminar os que não são profissionais. Dos militantes, não se espera mais do que uma mobilização na época eleitoral. Quanto aos eleitores, eles assistem a jogos políticos que parecem cada vez mais abstratos e esotéricos. Assim, por ocasião da recente primária socialista [para a escolha do candidato à eleição presidencial de 2012], foi preciso ter uma boa dose de informação para entender como Arnaud Montebourg passou para as fileiras de François Hollande, com quem tinha estado praticamente o tempo todo em desacordo, ao mesmo tempo que Benoît Hamon, que parecia se entender com Montebourg, declarou apoio a Martine Aubry, de quem parecia, no entanto, discordar em quase tudo… Talvez o desinteresse eleitoral dos membros dos meios populares também seja decorrência disso tudo.
Analisando o Partido Social-Democrata alemão do início do século XX, o sociólogo Robert Michels já constatava que a vitória dos partidos de esquerda redundaria mais no poder de uma oligarquia política – que governaria em favor de seu próprio interesse – do que no poder do povo que os tinha eleito. Mesmo assim, ele contrabalançava essa constatação um tanto amarga concluindo: “Contra a traição se erguerão sempre novos acusadores, que, depois de uma era de gloriosos combates e de poder sem honra, acabam por se misturar à velha classe dominante, cedendo lugar a novos opositores, que, a seu turno, os atacarão em nome da democracia”.3
Laurent Bonelli é integrante do grupo de análise política da Universidade Paris 10 – Nanterre. Publicou La France a peur. Une histoire sociale de l’insécurité, Paris, La Découverte, 2008.