Ilusionismo econômico na TV
Se por um lado dois mais dois são sempre quatro, por outro existem vários métodos de manipular a aritmética. O primeiro é o procedimento científicoe o outro método consiste em, a partir de uma ideia preconcebida, organizar os dados de forma a sugerir a confirmação desta pelos “fatos”Jean Gadrey|Mathias Reymond
“Números não mentem, mas os mentirosos adoram números”,1 resumiu o escritor norte-americano Mark Twain. Se por um lado dois mais dois são sempre quatro, por outro existem vários métodos de manipular a aritmética. O primeiro é o procedimento científico: formula-se uma hipótese, coletam-se os dados e conclui-se pela validação da hipótese ou por sua indeterminação – caso em que a reflexão deve ser afinada. Outro método consiste em, a partir de uma ideia preconcebida, organizar os dados de forma a sugerir a confirmação desta pelos “fatos”. Esse tipo de acrobacia estatística possui um especialista na atualidade: François Lenglet, diretor do programa France, do canal público de televisão France 2.
Com ares de mestre de cerimônias, o ex-professor de Literatura que passou por várias redações da imprensa econômica (L’Expansion,La Tribune,Les Échos, BFM) antes de tornar-se vedete do programa Des paroles et des actes, na France 2, encarnou a capacidade do poder de se regenerar ao criar a ilusão de mudança durante a campanha presidencial de 2012. Foi-se a época em que Jean-Marc Sylvestre distribuía seus sermões liberais cujo dogmatismo incomodava até os partidários do livre mercado. Os números, curvas, bastões e pizzas exibidos pela televisão – exercício pedagógico audiovisual inaugurado pelo jornalista François de Closets no início da década de 1980 – dão um tom científico à ideia de que, para sair da crise do liberalismo, não existem outras soluções além das liberais.
No dia 12 de janeiro de 2012, Lenglet “demonstrou” – com dois gráficos de apoio – que “os países que menos gastam são os que melhor se saem”.2 O segredo do teorema? A escolha arbitrária de três países (França, Alemanha e Estados Unidos) e de um período (de 2006 a 2011). O primeiro gráfico ilustra os gastos públicos como porcentagem do PIB em 2011: 41,9% para os Estados Unidos, 45,5% para a Alemanha e 56,2% para a França. O segundo representa o crescimento dos três países entre 2006 e 2011. Nesse período de cinco anos, o PIB aumentou 5,5% na Alemanha, 2,7% nos Estados Unidos e 2,3% na França. “Os gastos públicos não geram crescimento: é o que mostram os números”, concluiu Lenglet.
Essa demonstração, contudo, falha rotundamente se forem selecionados outros períodos e grupos de países. Observar a França e a Alemanha por um período mais longo, de 1991 a 2011, por exemplo, conduz à conclusão de que o país que mais teve despesas públicas – a França – exibe a taxa de crescimento anual média mais elevada (1,58% contra 1,35%,3 respectivamente).
Em relação às despesas públicas, Lenglet – cujo advérbio preferido é “evidentemente” – entoa regularmente o mesmo refrão. No dia 13 de novembro de 2012, entusiasmou-se com o discurso de François Hollande: “Pela primeira vez, ele disse claramente: ‘O nível dos gastos públicos na França, 57% do PIB, é muito elevado e é preciso reformulá-lo’. E então anunciou uma reforma do Estado, a única forma legítima de reduzir os gastos públicos em 60 bilhões de euros em cinco anos”. Ao defender o presidente da República com esses argumentos, o apresentador reformula por conta própria a ideia (liberal) segundo a qual a redução dos gastos públicos, fonte de crescimento, seria a única forma de controlar as finanças oficiais.
Não existem, contudo, outros resultados estatísticos sérios que corroborem essa hipótese: para o conjunto dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), e em períodos não limitados a alguns anos atribulados, não há nenhuma relação (entenda-se nenhuma correlação estatística significativa) entre o peso das despesas públicas no PIB e a taxa de crescimento médio anual. Nem “lei de Lenglet” nem outra lei: lei nenhuma. O que é fortemente compreensível, pois os gastos públicos participam da atividade econômica da mesma forma que os gastos privados, por meio da distribuição do poder de compra e das contratações públicas. A principal diferença entre investimentos públicos e privados não reside no montante ou em sua relação com o crescimento do PIB, e sim na quantidade de bens públicos que beneficiam.
De volta à emissão de 12 de janeiro de 2012: Lenglet não hesita em se transformar em ilusionista e exibe um segundo gráfico, desta vez com a evolução da parte da riqueza produzida (o valor agregado) correspondente à participação dos salários entre 1950 e 2010, na França. A conclusão da leitura de suas curvas: “A participação dos salários no valor agregado mudou pouco desde 1950”.
O raciocínio é grosseiro. Em primeiro lugar, existem diversas formas de definir e medir a parte dos salários no valor agregado. Uma delas é avaliar essa participação apenas pelas “empresas não financeiras” (as que produzem bens e serviços), outra é pelo conjunto da economia; também se pode ou não levar em conta uma “correção da salarização crescente” (mais assalariados e menos independentes fazem que a parte dos salários cresça mecanicamente).4 Lenglet escolheu, claramente, a equação que minimiza a queda. Se tivesse considerado os dados da Comissão Europeia coletados pela OCDE, o resultado seria uma queda de dez pontos na participação dos salários no PIB desde 1981, e de seis a oito pontos desde a década de 1960.
O gráfico em questão também aparece singularmente plano na televisão. A astúcia é clássica: basta alongar ou, ao contrário, encurtar o eixo vertical para produzir impressões visuais opostas (as variações parecem menos acentuadas ou, ao contrário, enormes), principalmente – e é o caso – quando se evita graduar o eixo vertical para sugerir pontos de referência. Com estratagemas como esses, passamos rapidamente da pedagogia à magia.
Finalmente, e acima de tudo, mesmo com o gráfico aplanado, é possível perceber que a parte dos salários baixou consideravelmente entre as décadas de 1960 e as de 1990-2000 em pelo menos cinco pontos: 100 bilhões de euros atuais passaram de salários aos lucros na estimativa mais baixa possível.5 “Pode mudar”, realmente?
O prestigiado âncora também cometeu dois erros factuais – jamais percebidos por seus colegas – que contribuíram para seu propósito: às vezes, para convencer, basta demonstrar uma segurança do tamanho do próprio erro. É assim que, no dia 26 de outubro de 2012, no jornal do canal France 2, Lenglet explicou que, em matéria de crescimento, “o sol nasce sempre no Oeste”, porque “os Estados Unidos representam um terço da economia mundial”. Segundo os números do FMI, contudo, o PIB norte-americano representa um quinto do PIB mundial: 19,1% em 2011, contra 20,1% da União Europeia. Olhar muito para o sol queima a retina.
No dia 11 de abril de 2012, no France 2, Lenglet afirmou que “os Estados Unidos não usam a máquina de papel-moeda”. É difícil, contudo, encontrar um economista que afirme que as três ondas de quantitative easing(QE) da Reserva Federal não equivalem à simples ativação da proverbial “máquina de dinheiro” (porque atualmente quase não há notas e menos ainda máquinas…). Essa realidade não escapou nem ao LeMonde(“A QE é uma manobra conhecida entre os bancos centrais [que] consiste em simplesmente ligar a máquina de imprimir papel-moeda e recomprar (entre outras medidas) títulos do tesouro”, 3 nov. 2010) ou ao Échos(“Resumindo: os norte-americanos usam a máquina de imprimir dinheiro! E essa medida se chama, educadamente, quantitative easing!”, 11 jan. 2011).
Essa inadvertência esconde outra, pois nosso especialista acrescenta que “todos os países que usam a máquina de imprimir papel-moeda possuem altas taxas de inflação”. A ausência de tensão inflacionária nos Estados Unidos − apesar da injeção maciça de liquidez durante as três QEs de março de 2009, novembro de 2010 e setembro de 2012 − arruína completamente a tese.
Lenglet não pode ser especialista em tudo e, às vezes, isso o faz se permitir certas liberdades diante da verdade e reformular ideias por conta própria, de forma equivocada. Em BFMTV, no dia 6 de abril de 2011, interrogava-se sobre a dificuldade das empresas em encontrar funcionários pouco qualificados: “Os empregados pouco qualificados podem abdicar dos salários, pois estes não são muito diferentes dos auxílios que podem receber dos programas de assistência social. Infelizmente, assim é o modelo francês”. Essa relação entre assistência e emprego sempre foi um argumento dos liberais para evocar a existência de uma “armadilha para a inatividade”. Contudo, diversos estudos estatísticos desmontaram essa ideia preconcebida. Assim, de acordo com uma pesquisa realizada em 2009 pelo Tesouro com 7 mil beneficiados pela Renda Mínima de Inserção (RMI), Renda Mínima de Atividade (RMA), salário-família para pai ou mãe isolados e salário-família de solidariedade específica, apenas 4% dos entrevistados argumentaram que a razão de sua inatividade era a não rentabilidade financeira de um retorno ao mercado de trabalho. Segundo a Caisse Nationale des Allocations Familiales (Cnaf), o órgão público que outorga os auxílios, a parcela de inativos que se justifica dessa maneira é de apenas 1%.
Outro exemplo: a redução do tempo de trabalho. Entre 2000 e 2007, escreve Lenglet em sua última obra, Qui va payer la cris”? (Quem vai pagar a cris”?, Fayard, set. 2012), a conjuntura favorável conduziu cada um dos países da zona do euro a “seguir sua inclinação natural”: “Os espanhóis construíram edificações de concreto e bairros fantasmas, os franceses reduziram o tempo de trabalho. Enquanto isso, os alemães trabalham”. Ninguém duvida que os alemães trabalham. Porém, 8% menos que os franceses em duração média anual6 e, de acordo com o organismo patronal COE-Rexecode, com uma produtividade horária 17%7 inferior.
O ilusionista também experimentou a voz de profeta. Em um artigo publicado no L’Expansion, no dia 30 de maio de 1995, ostentava: “Crescimento: preparem-se para trinta anos de bonança”. Fragmento: “A economia mundial será a alvorada de um retorno espetacular que deverá trazer duas ou três décadas de crescimento com intensidade comparável à dos ‘trinta gloriosos’ [anos do pós-Segunda Guerra Mundial]”. Doze anos depois, em 2007, Lenglet publicou um livro intitulado La crise des années 30 est devant nous (A crise dos anos 1930 está diante de nós, Perrin).
Mas nosso homem também surpreende, como na ocasião em que evocou a “eutanásia dos rentistas” no site do Figaro, em 27 de setembro de 2012. Pois Lenglet não é Jean-Marc Sylvestre. Contrariamente ao segundo, o primeiro admite que existe um “conflito entre o contribuinte – cobrado até a morte – e o detentor do capital, que até aqui foi preservado, e isso não é normal”.8 Sua conclusão eletrizou o mais velho: “Querer lutar contra o desemprego sem investir no elemento-chave, que é a competitividade, é como querer abater um urso com um fuzil de plástico”.9 Criticar os rentistas e baixar os salários? Essa é a receita de Lenglet.
Jean Gadrey é Economista.
Mathias Reymond é Economista, membro da equipe editorial da Action Critique Médias (Acrimed).