Indignação (seletiva) em Tel-Aviv
Enquanto as relações com o Egito se esgarçam após a queda de Hosni Mubarak, israelenses se manifestam em massa contra as suas duras condições de vida. O movimento testemunha um despertar da sociedade, entretanto não inclui os mais desfavorecidos e ignora o destino econômico dos palestinosYael Lerer
(Vista geral de acampamento montado em Rothschild Boulevard, em Tel-Aviv.)
O que teria levado a jovem Daphné Leef, de 25 anos, a abrir um grupo no Facebook para difundir a ideia de um acampamento de protesto em Tel-Aviv? Uma só resposta: a moradia. Na capital israelense, o aluguel de um apartamento de dois a três cômodos aumentou 11% em um ano. O aumento de 742 euros em média no ano passado para 827 euros em 2011 consome uma parte exorbitante da renda dos locatários, bem acima da norma internacional de 30%. Como muitos de seus próximos, Leef teve de deixar seu apartamento no centro da cidade sem ter uma solução alternativa.
No dia marcado, 14 de julho, uma centena de jovens, originários em sua maioria da classe média alta, armou barracas no Bulevar Rothschild. A iniciativa não demorou a se espalhar: uma semana depois, a artéria central da capital estava coberta por muitas centenas de barracas, enquanto uma manifestação juntava 20 mil pessoas nas ruas da cidade. Por todo o país, outros descontentes, pertencentes a categorias menos abastadas, juntavam-se ao movimento, indo acampar nas praças públicas. No dia 6 de agosto, 300 mil pessoas desfilavam em Tel-Aviv, cantando “o povo quer justiça social”.
Os israelenses estão vivendo uma forte erosão em seu nível de vida. O mercado de trabalho está cada vez mais difícil; ao mesmo tempo, multiplicam-se os cortes nos orçamentos sociais e os serviços públicos estão se deteriorando. O Estado de bem-estar social – manco e deficiente desde a origem – claramente desapareceu.
A economia israelense foi uma das primeiras do mundo a aceitar os dogmas do Consenso de Washington. Em 1985, o governo de união nacional elaborou um “plano de estabilidade econômica” para enfrentar a crise interna do início dos anos 80, quando a inflação chegava a cerca de 450%. O primeiro-ministro Shimon Peres, então líder do Partido Trabalhista, tinha preparado esse plano com seu ministro das Finanças, Yitzhak Moda’i (Likud), e Michael Bruno, diretor do Banco Central, que, na sequência, se tornaria economista-chefe no Banco Mundial.1
Influenciado pela administração do presidente norte-americano Ronald Reagan, o plano não se limitava a medidas de ordem monetária (forte desvalorização do shekel, taxa de câmbio fixo): ele incluía a diminuição das despesas públicas, o congelamento quase total dos salários e o enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores, com a cumplicidade do poderoso sindicato Histadrut ajudando a dourar a pílula.
Adotada pelo conjunto do espectro político, da extrema-direita do Meretz à esquerda trabalhista (com exceção dos partidos que representam uma minoria árabe, que, é verdade, nunca participaram do poder), a ideologia liberal ditou, dali em diante, a política econômica dos governos seguintes. A partir desse momento, as noções de direita e esquerda no discurso político disseram respeito somente à questão palestina e, ainda assim, admitiam apenas algumas pequenas diferenças insignificantes.
Economia dos mais prósperos
Dotado de uma fé quase religiosa nas virtudes do mercado, o primeiro-
-ministro Benyamin Netanyahou realizou uma verdadeira luta para acabar com o que restava do Estado de bem-
-estar social: como ministro das Finanças ou como chefe do governo (ou como um e outro ao mesmo tempo), ele multiplicou as privatizações. Símbolos nacionais, como a companhia aérea El Al ou a companhia telefônica Bezeq, foram literalmente liquidados. Outros seguiram o mesmo caminho, como o correio, alguns portos, o sistema ferroviário e até mesmo o tabu supremo: setores da indústria de armamento.
As reduções de imposto em favor dos mais abastados viraram regra, com a taxa mais elevada tendo passado de 44% em 2003 para 39% em 2010. O imposto sobre as empresas seguiu o mesmo caminho, caindo de 36% em 2003 para 25% em 2010, devendo atingir 16% em 2016. O primeiro-ministro defende o argumento de que enriquecer os ricos constitui o único meio de estimular o crescimento. Enquanto isso, as desigualdades sociais disparam.
É verdade que a economia israelense é uma das mais prósperas do mundo. Os indicadores econômicos (crescimento de 4,7% em 2010) parecem provocadores em um contexto de crise mundial. Com frequência, eles são atribuídos ao sucesso das indústrias tecnológica e militar, pois o país não é mais unicamente um ator-chave no mercado das armas convencionais: ele é um dos maiores exportadores no setor de vigilância e de preservação da ordem.2 Segundo o Ministério da Defesa, Israel está em terceiro lugar no pódio internacional de vendas de armas, e cada novo produto apresenta a vantagem de ter sido previamente testado em campo.3 Seus veículos aéreos não pilotados, por exemplo, são vendidos como água nos quatro cantos do mundo desde sua utilização intensiva durante a operação Chumbo Grosso, em Gaza, em dezembro de 2008 e janeiro de 2009. O governo francês acaba de escolher essa tecnologia, para a enorme satisfação da Dassault Aviation, que vai se encarregar de “afrancesá-los”.
A adesão de Israel à Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em maio de 2010, permitiu colocar em evidência o fato de que o país, apesar de ter um PIB digno de uma grande potência industrializada (US$ 29,5 mil por pessoa), apresenta um balanço socioeconômico muito diferente daquele da Europa ocidental, com o qual o país gosta de se comparar. As desigualdades de renda, comparáveis aos níveis nos Estados Unidos, são bem superiores à maioria das encontradas nos países europeus. A taxa de pobreza atinge 19,9%, mais do que nos Estados Unidos e quase três vezes mais do que na França (7,2%).
Segundo seu perfil demográfico, os israelenses pobres se distinguem dos judeus secularizados que protestam atualmente nas ruas do país – uma aliança nova entre asquenazes e sefarditas das classes médias, parcialmente apoiada pelos sefarditas das classes populares. Três quartos da população pobre pertencem a três grupos que, com exceções, não participam do movimento: os árabes israelenses (grupo no qual 53,5% das famílias vivem abaixo da linha da pobreza), os judeus ultraortodoxos (56,9%) e os imigrantes da Etiópia e da antiga União Soviética.
A esse quadro, adiciona-se o fato de que, de acordo com a OCDE, Israel é um país tão caro quanto a França, o Reino Unido, o Canadá ou a Holanda, enquanto o salário mínimo é 50% inferior em relação ao francês. Além disso, a lei que fixa o salário mínimo é em geral ignorada por empregadores em razão da falta de vontade política de vigiar sua aplicação. Em 2008, 41% dos assalariados tinham salário inferior ao piso legal4 e três quartos (74,4%) ganhavam menos de 1.400 euros por mês.
Além do mais, o emprego precário cresceu. Estima-se que 10% da mão de obra trabalha em regime temporário, dos quais uma metade para o setor público, e o Estado não se nega a delegar parte de suas missões a terceiros que ignoram abertamente os direitos trabalhistas.5 Ao mesmo tempo, a taxa de sindicalização despencou, passando de 85% nos anos 70 para 45% em 2000. Atualmente, a taxa se situa, de acordo com as estimativas, entre 20% e 30%.
Na área da saúde, enquanto a esperança de vida é elevada (79,8 anos) e há uma medicina de ponta com boa reputação, a desigualdade em matéria de acesso à assistência cresceu numa proporção alarmante, relacionada à piora das condições de vida. Cerca de um terço da população não tem acesso aos cuidados odontológicos, sendo mais da metade das pessoas de mais de 65 anos desdentada.6
Os hospitais públicos têm dificuldades cada vez maiores de assegurar assistência para todos. Assim, a taxa de mortalidade para os casos de diabetes do tipo 2 – que não requer tratamento sofisticado – é cinco vezes maior entre pobres. Além disso, a taxa de mortalidade dos árabes israelenses é duas vezes superior à dos judeus.7
Mas, se existe um setor no qual a regressão social sensibilizou as pessoas, este é o da moradia. É verdade que as políticas públicas em questão nunca brilharam pela equidade. Os imigrantes sefarditas provenientes do mundo muçulmano foram alojados em habitações exíguas e superlotadas, enquanto seus correligionários asquenazes obtinham créditos para a compra de moradias bem localizadas. Os árabes israelenses, por sua vez, não têm quase nunca acesso nem a moradias sociais nem a empréstimos subvencionados: quando o Estado se interessa por eles, é para confiscar suas terras com o objetivo de nelas construir loteamentos reservados para os judeus.
A situação piorou depois dos anos 80. Por mais discriminante que fosse, a habitação social tinha então pelo menos o mérito de existir. No momento, ela agoniza. Em trinta anos, nem sequer um imóvel foi construído.
Numerosos comentaristas acolheram com entusiasmo a mobilização inédita que surgiu nessas últimas semanas em favor da mudança. Poderíamos tentar crer que os israelenses estão imitando seus vizinhos do mundo árabe para reivindicar mais justiça e menos desigualdades, assim como um melhor futuro para toda a região. No entanto, parece que os manifestantes apresentam mais de um ponto em comum com o regime que eles estão criticando.
“Os dirigentes desse movimento formam a espinha dorsal da sociedade israelense”, afirmou o ministro da Defesa, Ehoud Barak que completa: “Em caso de urgência, eles serão os primeiros a desmontar suas barracas e a se engajar no Exército.”8De fato, quando eles cantam “o povo quer a justiça social”, estão longe de incluir todo mundo em sua definição de “povo”. Com exceção de algumas vozes marginais, eles não expressaram nenhuma reivindicação relacionada ao fim da injustiça social maior que reina no país, a saber, o regime de quase apartheidque separa dois povos no mesmo território. É verdade que os manifestantes se definem como “apolíticos”, evitando até mesmo pronunciar a palavra “ocupação”.
O conjunto Israel/Palestina é um dos lugares mais divididos e onde há mais discriminação no planeta. Mas a segregação que organiza esse conjunto não é geográfica (com exceção de Gaza) nem mesmo ligada à “Linha Verde”, a fronteira resultante da guerra de 1948. Ela provém de um sistema de divisão racial e colonial que reduz o espaço a um número infinito de pontos cuja confusão vai evoluindo conforme as leis de exceção e os cálculos militares. Os habitantes se encontram então divididos em diversas subcategorias, cada uma dotada de direitos – ou da ausência deles – específicos.
Privilégios perdidos
Há uma única fronteira em Israel/Palestina, um só Exército, uma única moeda, uma só arrecadação aduaneira e de Taxa sobre o Valor Adicionado (TVA). No entanto, o sistema de estradas separadas imposto à Cisjordânia – uma estrada para os colonos, outra para os palestinos – recorta o território como se fosse uma grade milimetrada. Os muros e os checkpointscompletam um sistema que torna a vida impossível para os palestinos. Cerca de meio milhão de colonos israelenses – quase 10% da população judia de Israel – e 276 mil palestinos de Jerusalém vivem em território além da Linha Verde, única fronteira internacionalmente reconhecida. As instituições sociais e econômicas de Israel o julgam, entretanto, parte integrante do país, sendo os colonos considerados cidadãos, e os palestinos de Jerusalém, apenas “residentes”.
A economia palestina não passa de uma subdivisão da economia israelense. Ela utiliza a moeda do ocupante e depende assim de sua política monetária. Metade de seu PIB depende dos bens e dos serviços de Israel; suas importações e exportações transitam por Israel, que recolhe as taxas geradas por esse comércio com a promessa – nem sempre cumprida – de repassá-las à Autoridade Palestina; 14% da mão de obra palestina da Cisjordânia trabalha em Israel ou nas colônias etc. A economia palestina é equivalente à de um país em via de desenvolvimento: em 2010, seu PIB per capitaatingia apenas US$ 1.502.9 Se considerarmos o espaço Israel/Palestina como um único e mesmo conjunto econômico, a Palestina pesa somente 2,45% do PIB da entidade, enquanto representa 33% de sua população.
Nessas condições, um observador externo poderia, não sem razão, ver os manifestantes do Bulevar Rothschild como pessoas que lutam por privilégios perdidos. O protesto, polifônico, pode surpreender pelo modo de organização, ou melhor dizendo, pela falta dela. Os manifestantes reivindicam mais justiça social, mas o conteúdo exato de suas reivindicações permanece indefinido.
O Bulevar Rothschild transformou-se em um supermercado de ideias: muitas barracas são montadas para defender as causas mais diversas. Indivíduos e organizações realizam conferências e lançam debates públicos; artistas trazem suas contribuições; chefes de cozinha vão até lá para preparar as refeições; panfletos invadem o bulevar. O site “oficial” anuncia dezenas de eventos, organizados de maneira independente, em todo o país. Sem hierarquia nem mecanismos de decisão institucionalizados, o protesto parece não ter um porta-voz identificável.
Uma coisa é certa: as duas categorias mais pobres da sociedade, os palestinos de Israel e os judeus ultraortodoxos, não vieram montar barracas no bairro mais chique da capital. A crise de moradia, por exemplo, afeta essas categorias de modo muito mais sério que as classes médias de Tel-Aviv; no entanto, elas nunca entram em questão nesse grande encontro de ideias. Em um registro mais próximo daquele dos partidos xenófobos europeus do que dos “indignados” gregos ou espanhóis, não é raro escutar vozes elevando-se contra as “vantagens” que beneficiam “pessoas que não trabalham e que fazem muitos filhos”.
É verdade que as manifestações de rua que juntam milhares de jovens só podem reavivar a esperança dos militantes mais velhos. Quando, mais do que isso, são jovens mulheres que entram na luta, há motivo em dobro para se animar. A convergência entre as classes médias superiores, majoritariamente asquenazes, e as categorias sociais mais modestas, essencialmente sefarditas, constitui um fenômeno encorajador. Mesmo se apresentando como apolítico, o movimento conseguiu em duas semanas colocar em descrédito trinta anos de doutrinamento contra o social. E, ainda que relegadas à margem, algumas vozes árabes estão ousando se pronunciar, na busca de uma tomada de consciência dos manifestantes. Não é absurdo imaginar que essa reivindicação embrionária de justiça social possa acabar engrossando e englobando toda a população. A mobilização foi surpreendente para todo mundo, logo podemos pelo menos esperar que outras surpresas venham.
Yael Lerer é Fundadora da editora Andalus, em Tel-Aviv.