Novas dinâmicas da integração da infraestrutura sul-americana
Política externa adotada pelo Brasil a partir de janeiro de 2023 resgata o tema da integração da América do Sul
A lógica que vigorou por quinhentos anos está se esfarelando. Foi invertida. Hoje é o Brasil que precisa cruzar o Panamá, Drake, Magalhães ou o Índico para chegar aos mercados mais dinâmicos do mundo, na Ásia Pacífico. Vai perdendo força o campo gravitacional que amarra a dinâmica logística brasileira com a costa atlântica. A cada dia, fica mais evidente a necessidade de criar caminhos pelo interior da América do Sul que conectem os dois oceanos. A histórica “Casa da Integração Regional”, o Ministério do Planejamento, resgatou esse tema e tem avançado muito nos últimos meses.

De frente para a Europa
Muito antes da chegada dos europeus na América do Sul já existia um complexo sistema de trilhas pré-incaicas, utilizadas para a circulação de pessoas e o transporte de cargas. Era o chamado Qhapaq Ñan. Aquelas rotas e ramificações tinham mais de 10.000 km de extensão, passando pelos atuais territórios do Peru, do Chile, do Equador, da Colômbia, da Bolívia e da Argentina. A rede chegava ao Brasil pelo caminho Peabiru, cortando principalmente os atuais estados de Mato Grosso do Sul, Paraná e São Paulo, com ramais para Santa Catarina.
A própria dinâmica do processo de colonização europeia na América do Sul impôs a utilização da navegação marítima como principal meio de transporte. A descoberta de minerais preciosos ocorreu inicialmente nos Andes, nos atuais territórios da Bolívia e do Peru. O grande volume e o peso das cargas limitavam o uso das rotas pré-existentes. Por isso, foi necessário um grande esforço logístico para conduzir a prata e o ouro até o litoral do Pacífico antes de levá-los à Europa. A estrutura básica dos caminhos pré-incaicos acabou sendo útil para escoar esses minérios até a costa.
Os minerais preciosos extraídos, sobretudo do Cerro Rico de Potosí, eram levados no ombro dos indígenas escravizados e no lombo de mulas até o porto de Arica, de onde eram conduzidos por navegação de cabotagem até Lima. Daí, rumo ao norte, faziam pequenas escalas até o Panamá. A travessia do istmo centro-americano era feita a pé, novamente por homens e animais de carga. Ao chegar ao porto marítimo de Veracruz, já no Caribe, as riquezas sul-americanas eram embarcadas em galeões, que seguiam em comboios para Cádiz e, finalmente, Sevilla. A travessia do Atlântico durava em torno de quarenta dias e quase sempre havia paradas em Havana, cidade portuária que se destacava pela quantidade de estaleiros, bares e variedades de rum e tabaco.
O avanço da navegação e o aumento acelerado das quantidades de prata extraídas de Potosí criaram a necessidade de melhorar a logística de transportes até a Europa. Pouco a pouco foram ganhando maior dimensão os contrabandos via Rio do Argento (ou da Prata) e via Passagem de Drake, o temido caminho pelo extremo sul da América do Sul. Já em 1520, há pouco mais de quinhentos anos, os europeus patentearam o Estreito de Magalhães, caminho bioceânico de 600 km que permite contornar a América do Sul via Terra do Fogo. Além dos obstáculos impostos pelo clima hostil, a travessia era dificultada pela brava resistência dos primeiros habitantes do lugar. A região é povoada há mais de 9.000 anos, desde a Idade da Pedra.
Como o principal polo econômico e militar do Sistema Internacional se manteve centralizado na Europa por mais de 450 anos, pelo menos entre 1492 e 1945, a maior preocupação logística na América do Sul era o escoamento da produção dos países banhados pelo Pacífico. Apesar das imensas dificuldades de navegação, Brasil, Argentina, Uruguai, Colômbia e Venezuela, com saídas diretas para o Atlântico, não enfrentavam os mesmos problemas logísticos que Equador, Peru e Chile. Nos anos 1860 e 1880, Paraguai e Bolívia travaram e perderam sangrentas guerras contra os vizinhos, empenhados em contar com saídas para o mar. Já no século XX, a situação de isolamento relativo dos países do Pacífico foi radicalmente transformada pela construção do Canal do Panamá, em 1904, e pela transição da hegemonia inglesa para a norte-americana, depois da Segunda Guerra Mundial.
De costas para a Ásia
Durante meio milênio, desde o início da ocupação portuguesa no atual território do Brasil, escoamos nossos produtos ao exterior via Atlântico. Primeiro só para Portugal, depois para a Europa. Com o tempo, também para os Estados Unidos. As relações comerciais com a África, o Oriente Médio e a Ásia, apesar de importantes, sempre foram muito menores. No entanto, nas últimas décadas esse cenário tem sofrido profundas transformações.
Em 2000, apenas 2% de todas as exportações brasileiras eram destinadas à China. Hoje, essa participação supera os 30%. Ao mesmo tempo, em 2000, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Roraima e Acre representavam apenas 1% das exportações totais do Brasil. Hoje, esses Estados somam 14% de nossas vendas. São mudanças drásticas e irreversíveis. Entre 2000 e 2010 esses cinco Estados representaram 15% do superávit comercial brasileiro com o mundo. Entre 2011 e 2022, a sua participação relativa alcançou impressionantes 54%. Isso ocorre apesar desses Estados terem menos de 5% da população e do PIB nacional.
Outro dado relevante: segundo o IBGE, dos onze Estados brasileiros de fronteira, oito estão entre os que a população mais cresceu desde 2010. O Brasil está avançando com força rumo ao Oeste. Nos últimos anos, o país adotou políticas de desconcentração espacial da economia. A Embrapa permitiu que o Cerrado e outros biomas se tornassem altamente produtivos e competitivos. A população, o PIB e as exportações dos Estados de fronteira crescem mais do que a média nacional. A agricultura e a pecuária se expandem para o Centro-Oeste, o Nordeste e o Norte.
As transformações foram intensas em pouco mais de vinte anos. Mudaram os produtos exportados pelo Brasil, mudaram os destinos das nossas exportações e mudaram os Estados brasileiros que mais geram superávit comercial. No entanto, há algo que mudou muito menos do que o necessário. Ainda que, em alguns casos específicos, estejam sendo utilizados portos do Arco Norte, grande parte das exportações do Brasil ainda continua saindo pelas mesmas aduanas. O porto de Santos-SP concentra 30% do total, seguido, de longe, por Paranaguá-PR, Itaqui-MA e Itaguaí-RJ, todos com 8%.
A lógica que vigorou por quinhentos anos está se invertendo. Hoje são os países banhados pelo Oceano Atlântico que precisam cruzar o Panamá, Drake, Magalhães ou o Índico para chegar aos mercados mais dinâmicos do mundo, localizados na Ásia Pacífico. O antigo problema equatoriano, peruano e chileno se transformou em um problema brasileiro, argentino e uruguaio. Os países mediterrâneos, a Bolívia e o Paraguai, parcialmente adaptados à Hidrovia do Paraguai-Paraná, também buscam transformar a sua atual logística.
As grandes vantagens que o Brasil possui (qualidade do solo, índices pluviométricos regulares, participação empresarial, capacidade produtiva e linhas de crédito) estão se diluindo diante das perdas de tempo e de recursos oriundos da falta de infraestrutura adequada e das anomalias logísticas. As atuais formas de escoamento da produção têm impacto negativo sobre a competitividade internacional dos nossos produtos.
Novas alternativas logísticas
O Canal do Panamá, com quase 80 km de extensão, tem sido muito útil. No entanto, há sinais de esgotamento frente à modernização das embarcações. Nos últimos anos têm sido permanentes os esforços para ampliar as capacidades diante das exigências de maior comprimento dos navios porta-contentores e de maior profundidade dos calados. Uma das soluções para as cargas brasileiras destinadas à Ásia tem sido cruzar o Cabo da Boa Esperança e navegar pelo oceano Índico até os portos dos novos parceiros.
De acordo com dados da INFRA S.A., em uma viagem entre os portos de Santos-SP e Shanghai, na China, a opção do Cabo da Boa Esperança representa, em termos de distância, 2.000 km a menos do que o Canal do Panamá. A redução de tempo seria em torno de quatro dias. Ao considerar a alternativa do Estreito de Magalhães para ligar os dois portos considerados, a vantagem seria de 2.160 km a menos do que o Canal do Panamá.
Porém, existe a possibilidade de conectar a produção brasileira, e de outras áreas mediterrâneas do continente, com os terminais portuários do Chile, do Peru e do Equador por via terrestre. As chamadas Rotas Bioceânicas cumprem esse papel. Ainda de acordo com os dados da INFRA S.A., o trajeto entre os portos de Antofagasta, no Chile, e Shanghai seria cerca de 6.000 km menor e com doze dias a menos de viagem. Esse tipo de exercício tem sido feito ao considerar a viabilidade do uso de diversas estruturas portuárias no Pacífico, como Antofagasta e Iquique, no Chile; Ilo, Matarani e Chancay, no Peru; e Manta, no Equador.
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A expansão da fronteira agrícola brasileira para territórios cada vez mais distantes dos nossos portos tradicionais no Atlântico e a crescente participação asiática nas exportações do Brasil estimulam a criação desses caminhos alternativos, por rotas internas da América do Sul. Há quase cem anos, a literatura geopolítica trata da necessidade de conectar o Brasil com o Oceano Pacífico, por meio de rodovias, ferrovias e hidrovias. Nos anos 1930, a área entre as cidades atuais de Corumbá-MS, Campo Grande-MS e Ponta Porã-MS já havia sido compreendida como uma futura “Santos Mediterrânea”.
O peso da Ásia Pacífico cresceu rapidamente e o que exportamos para aquela região são basicamente commodities. Nota-se o fenômeno de reprimarização da nossa pauta de exportações e evidencia-se um processo de desindustrialização da economia brasileira. O peso da indústria de transformação no PIB, de 24,5% em 1985, chegou a cair para 11,3% em 2021. Em 2023, apenas oito tipos de bens representam quase 66% das nossas vendas ao exterior: soja, petróleo, minério de ferro, açúcar de cana, milho, carnes, celulose e café. A presença chinesa ocupa cada vez mais espaços também na economia dos países vizinhos, contribuindo para a diminuição do nosso comércio intrarregional.
De frente para a América do Sul
Além do escoamento da produção para a Ásia Pacífico, o Brasil deve ter grande atenção na integração sul-americana. Em 2022, exportamos US$ 330 bilhões para o mundo. Aos parceiros da região, destinamos US$ 40 bilhões, 12% do total. Hoje, 45% das nossas vendas para os países sul-americanos têm sido distribuídas pelo porto de Santos-SP e outros 45%, escoadas por vias rodoviárias. Neste caso, destacam-se as aduanas de São Borja-RS, Uruguaiana-RS, Foz do Iguaçu-PR, Corumbá-MS e Chuí-RS.
Vale apontar que apenas 3% das exportações brasileiras para a China são de produtos manufaturados. No caso da América do Sul, 85% das vendas são compostas por bens industriais. Além disso, apesar de representarem apenas 1% das importações mundiais, os vizinhos sul-americanos são responsáveis por 35% de todas as exportações brasileiras de alta e média-alta intensidade tecnológica. É evidente que a América do Sul sempre será política e economicamente fundamental para o Brasil. E a recíproca é verdadeira.
As realidades geográficas e os processos históricos da região conduzem a um forte vínculo. No nosso caso, a integração também é mandato constitucional: parágrafo único do artigo 4º da Carta Magna de 1988. É importante buscar a concertação entre os vizinhos e contribuir para sua estabilização política e desenvolvimento econômico, empenhando-se por consolidar a ideia de prosperidade compartilhada.
Claramente, a integração regional representa a possibilidade de promover a faceta mais dinâmica da economia brasileira, o setor produtor de bens industrializados. O mesmo argumento serve para os países vizinhos.
Recente estudo revela que apenas 1% das firmas brasileiras exportam ao mundo e que, destas, mais de 61% realizam as suas vendas exatamente para a região. Em 2022, o Brasil exportou mais para o Chile do que para o Japão, a Alemanha e a Índia; mais para a Colômbia do que para a Itália; e mais para o Paraguai do que para a França. A Argentina é o nosso terceiro maior comprador, somente atrás da China e dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, importamos mais do Chile que da Espanha e do Paraguai do que do Reino Unido.
É fundamental trabalhar pelo fortalecimento do comércio intrarregional, que alcançou o seu ápice em 2011. Ao mesmo tempo, é necessário promover mecanismos de pagamento compensado, que diminuam a dependência do uso de divisas nas transações. Os intercâmbios dentro da própria região também representam um espaço privilegiado para a atuação de pequenas e médias empresas (PMEs), que se beneficiam de menores distâncias, proximidade cultural, pagamentos com moedas locais, menor complexidade e custos relativos dos trâmites e um ecossistema favorável aos intercâmbios de fronteira. O bom desempenho econômico dos vizinhos é de fundamental importância para as empresas brasileiras, sobretudo as intensivas em mão de obra qualificada e com emprego formal.
Integração da infraestrutura sul-americana
A política externa adotada pelo Brasil a partir de janeiro de 2023 resgata o tema da integração da América do Sul para o primeiro plano e busca mobilizar novamente a articulação com nossos vizinhos. Além de ser mandato constitucional, a integração regional aparece diversas vezes no plano de governo para o período Lula III. No dia 30 de maio de 2023, o presidente anunciou o “Consenso de Brasília”, ao lado dos outros onze chefes de Estado e de governo da América do Sul.
Há quase uma década não ocorria uma reunião dessa magnitude. Após alguns anos de distanciamento e omissão, que fomentaram a fragmentação política e a desintegração econômica da América do Sul, o Brasil reassumiu a histórica tradição de contribuir com o processo de integração regional. É vital compreender que a região é fundamental para o desenvolvimento do Brasil e vice-versa. É urgente enfrentar as imensas assimetrias entre os nossos países.
No tema da integração de infraestrutura, as orientações do Consenso de Brasília são muito claras: considerar projetos de conexão física e digital, redefinir uma carteira de iniciativas prioritárias, privilegiar obras em regiões de fronteira com maior impacto econômico e social, apoiar ações que envolvam mais de um país, estimular projetos que incluam a multimodalidade nos transportes, garantir a sustentabilidade das iniciativas e utilizar de forma mais significativa os mecanismos regionais de financiamento de longo prazo.
No início de junho, apenas uma semana depois do histórico encontro de presidentes em Brasília, a ministra Simone Tebet criou o Comitê de Integração e Desenvolvimento Sul-Americano do Ministério do Planejamento e Orçamento. A histórica “Casa da Integração Regional” resgatou o tema.
A finalidade do grupo do Planejamento é contribuir com a retomada da agenda integracionista no campo da infraestrutura, a partir da releitura e da atualização das experiências da iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan). O trabalho tem sido feito por meio de intensa articulação federativa, envolvendo outros ministérios, instituições públicas, bancos regionais de desenvolvimento e os governos dos onze estados brasileiros de fronteira.
Luciano Wexell Severo é diretor da Secretaria de Articulação Institucional (SEAI) do Ministério do Planejamento e Orçamento (MPO).