‘Inundação de Al-Aqsa’ a luz dos 76 anos de ocupação colonial
Há necessidade de pensar a situação como um processo de “limpeza étnica” dos palestinos ao invés dos termos “guerra” e “conflito” que pressupõem simetria de poder
“A situação na Palestina ocorre devido ao apoio que o exército [israelense] dá aos colonos judeus. Há alguns meses que atacam as cidades palestinas, os bairros, queimam plantações de trigo, queimam árvores de azeitona. Como eles têm agora o feriado deles, entraram na Mesquita de Al-Aqsa com o ministro deles… ministro da direita sionista. Nisso explodiu a situação. Hoje eu estava em Belém na casa da minha mãe e acordamos com estas notícias. A situação está grave, essa guerra tem 50 anos, desde 1973, a guerra contra o Egito, a Síria e o Estado israelense [faz menção à Guerra do Youm Kippur]. A situação está greve, amanhã não tem escola, eu também não vou trabalhar porque a Palestina está em luto. O governo sionista estava em reunião agora com o ministro do exército de Israel, eles continuam atacando a Faixa de Gaza. O mundo surdo, mudo, continua apoiando os sionistas e o governo de Israel. Eles têm direito a defesa e nós não temos! (Entrevista concedida por Hussein [1] em 7 de outubro de 2023).
Acontecimentos recentes
A fala de Hussein descreve alguns acontecimentos recentes na Palestina que servem para compor o contexto das questões que iremos apresentar aqui. Na semana passada, durante práticas religiosas do feriado judeu (Sukkot), movimentos extremistas israelenses invadiram a Mesquita Al-Aqsa e atacaram violentamente pessoas palestinas em Jerusalém.
No dia 03 de outubro colonos fecharam a ala sul da mesquita, permitindo a entrada de um contingente de 600 colonos israelenses. No dia 05, outros milhares chegaram e ocuparam toda a área. No dia 06 de outubro, a polícia israelense impôs severas restrições ao acesso de fiéis muçulmanos à região da mesquita, impedindo sua circulação. Simultaneamente, houve uma invasão de colonos na Mesquita de Abraão, na cidade de Hebron. O começo do mês foi marcado por agressões a homens, mulheres e crianças palestinas, e até assassinatos. Segundo um representante da Embaixada Brasileira na Palestina, a situação era de “apreensão em torno da escalada de violência”.
Cenas de violência, abuso e desrespeito protagonizados por colonos e soldados israelenses nos locais sagrados islâmicos não é novidade. A mesquita Al-Aqsa, em particular, é constante palco desses abusos. Um dos locais mais importantes para o Islã, ela é o alvo “perfeito” para as ofensivas coloniais e islamofóbicas contra palestinos. É importante que se diga que Jerusalém é uma cidade sagrada também para cristãos, igualmente alvos de ataques.
Em face disso, o grupo político Hamas declarou uma operação de retomada e resistência, denominada em Operation Al-Aqsa Flood (Operação Inundação de Al-Aqsa). O grupo lançou um ataque aéreo com mísseis e conseguiu romper pontos do bloqueio terrestre, ocupando postos militares israelenses e rendendo militares. O Hamas realizou um ataque em uma escala inédita que chocou Israel, rompendo a ideia de uma inteligência e exército infalíveis. Logo após os ataques, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu fez declarações de “guerra” e destruição do “inimigo” e, no momento em que escrevemos, está realizando ataques aéreos sistemáticos sobre Gaza.
O que está acontecendo agora não pode ser deslocado do contexto histórico de ocupação do território palestino nem dos movimentos e ações de resistência palestina, tampouco deve se tornar um pretexto para o escalonamento da violência, como deixam claros posicionamentos oficiais das embaixadas e de organizações palestinas.
Em nota oficial, a embaixada Palestina do Brasil afirmou: “O ciclo de violência e ataques de colonos não parou durante sete décadas. Não haverá paz nem estabilidade até que a ocupação israelense termine, responsável pela continuação do conflito. O extremismo e o racismo aumentarão a taxa de violência. Israel deve respeitar o direito internacional e reconhecer os direitos nacionais legítimos e inalienáveis do povo palestino: o seu direito ao seu Estado independente e viável, com Jerusalém como capital, de acordo com as resoluções e entendimentos de legitimidade internacional. Nem a violência, nem a agressão, nem o racismo acabarão com esta anomalia: a ocupação” [2].
Já a Federação Palestina do Brasil (Fepal) publicou em nota nas redes sociais: “A RESISTÊNCIA PALESTINA VIVE – e ela é justa e legal de acordo com o Direito Internacional. Hoje é um dia histórico. Após 76 anos de colonialismo, genocídio e limpeza étnica, os palestinos fazem valer seu direito à autodefesa, reagindo às políticas de extermínio sionistas. Lembrando dos dois milhões de palestinos presos em Gaza e da situação de precariedade”.
Nestes discursos, eles acionam a narrativa reiterada pela Resolução 37/43 de 1982 da ONU que garante o direito de defesa previsto pela ONU, reiterando que a ação é “uma resposta ao processo de limpeza étnica” e que “a resistência palestina é justa e legal, de acordo com o direito internacional”.
Gaza (Palestina) sob ataque
Gaza está sitiada há 15 anos por Israel, com uma população de 2 milhões de pessoas vivendo em situação de grave crise humanitária: a taxa de desemprego está estimada em 82%, e 56% da população vive na pobreza.
Em 2006, ocorreram eleições em Gaza, que elegeram o Hamas, um partido político sunita, fundado em 1987, no contexto da Primeira Intifada. Sua origem está atrelada à Irmandade Muçulmana do Egito, o que faz com que seja enquadrado como “inimigo”, tanto de Israel quanto do Egito. Os principais aliados do Hamas, atualmente, são Turquia, o grupo Hezbollah e o Irã, possuindo representação política no Qatar. Em vista dessa vitória nas urnas, Israel instaurou um bloqueio com o apoio do Egito em seu lado da fronteira. A ação configura “crime contra a humanidade” segundo a lei internacional, e acabou por empurrar a sua população para a miséria. É importante dizer que o cerco militar serve como forma de controle do território continuado entre a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Segundo relatórios da Human Right Watch e B’tselém, a situação na Palestina é reconhecidamente uma situação de Apartheid.
Além disso, a Faixa de Gaza sofreu sucessivos ataques ao longo dos anos. Entre os mais brutais se encontram os ocorridos entre 27/12/2008 e 18/01/2009. O Human Rights Watch acusou Israel de uso de fósforo branco como armamento e o Centro Palestino de Direitos Humanos declarou que 1.434 palestinos/as foram mortos, incluindo 960 civis, 239 policiais e 235 militantes.
Entre julho e agosto de 2014, o sequestro e morte de três jovens israelenses foi atribuído ao Hamas, mas nunca provado ou reivindicado pelo grupo. Em retaliação, extremistas israelenses sequestraram e mataram o adolescente palestino Mohammed Abu Khdeir. Além disso, o caso se tornou um pretexto para Israel lançar bombardeios sobre Gaza, que mataram cerca de 2.000 pessoas.
Em julho de 2020, começou um novo plano de Anexação da Palestina: 30% da Cisjordânia e a margem norte do Mar Morto (e o vale do Rio Jordão) foi ocupada por assentamentos ilegais. O plano chamado por Donald Trump, à época presidente dos Estados Unidos, de “Acordos do Século” tinha caráter unilateral desconsiderando os protestos de organizações palestinas, da população e da Autoridade Nacional Palestina (ANP). O projeto foi recebido como uma violação dos direitos internacionais e um meio para legitimar a ocupação ilegal de terras palestinas, que lograria, em última instância, a limpeza étnica.
O relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU), Michael Lynk, afirmou que “O direito internacional é muito claro: a anexação e a conquista territoriais são proibidas pela Carta das Nações Unidas”, e “O Conselho de Segurança, começando com a Resolução 242, em novembro de 1967, afirmou expressamente a inadmissibilidade da aquisição de território por guerra ou força em oito ocasiões, mais recentemente em 2016″.
Em 2021, invasões à esplanada das Mesquitas em pleno mês do Ramadan, além de uma série de ordens de despejo para palestinos de Jerusalém Oriental (em Sheikh Jarrah), ocorreram em continuidade com a política de anexação territorial. Em resposta a esses ataques, o Hamas realizou a operação Espada de Jerusalém, com bombardeios aéreos em Tel Aviv que resultaram em 13 mortes de israelenses. Por sua vez, Israel atacou Gaza por 11 dias consecutivos, matando – segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidades – 261 palestinos, incluindo 67 crianças e 41 mulheres, deixando mais de 2.200 feridos.
Nas redes
É necessário repensar as comuns categorias atribuídas aos palestinos nas mídias israelenses e ocidentais, que os descrevem como “inimigos” e “terroristas”, enquadramentos que mascaram a violência colonial cotidiana e a assimetria política, econômica e militar entre Israel e Palestina. Há necessidade de pensar a situação como um processo de “limpeza étnica” [4] dos palestinos ao invés dos termos “guerra” e “conflito” que pressupõem simetria de poder.
A análise de alguns grupos de pessoas palestinas com quem conversamos definem este como um momento histórico de retomada das terras e luta anticolonial. Para os palestinos que saíram de Gaza após o furo do bloqueio pelo Hamas, foi a primeira vez que colocaram os pés em seus territórios ancestrais. No plano das posições oficiais, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas lançou uma nota afirmando ser legítima a defesa contra os crimes de Israel. O líder político do Hamas afirmou ser essa uma Revolução árabe, que começa dia 7 de outubro, acompanhado do apoio da Jihad Islâmica, outro grupo de Gaza.
Apesar da cobertura que estamos observando nas mídias brasileiras, com ausência de vozes palestinas e uma profusão de narrativas orientalistas, percebemos um aumento no volume de vozes brasileiras em solidariedade com os palestinos, enfatizando os aspectos violentos da ocupação colonial, e, portanto, seu direito à autodefesa. Os próximos dias serão de ansiedade pelas vidas dos palestinos em Gaza (e também na Cisjordânia), à mercê de ataques aéreos massivos de Israel. Cabe agora pensar os novos processos e reconfigurações de forças na região e os desdobramentos destas ações. Os palestinos lutam por sua terra e sua existência desde 1948, com pouca – ou quase nenhuma – ajuda externa, à revelia dos poderes imperialistas e sob o silêncio conivente da comunidade internacional. Como disse um interlocutor palestino no sábado do ataque, “estamos há 76 anos esperando pelo retorno, pela justiça e pelo fim do Apartheid e da limpeza étnica”.
Bárbara Caramuru é Doutora em Antropologia pela UFSC. Professora e pesquisadora. Helena Manfrinato é Doutora em Antropologia pela USP. Atualmente é pesquisadora do CEBRAP.
[1] Nome fictício, a fins de preservação da vida do interlocutor que está em Ramallah.
[2] Nota do Ministério de Relações Exteriores e expatriados da Palestina, compartilhada pela embaixada com a pesquisadora.
[3] Antes era na Síria. Depois que a guerra civil sua sede mudou para o Qatar.
[4] Ilan Pappé, A limpeza étnica dos Palestinos.