A manobra de Joe Biden no espelho de seus antecessores
Entre uma busca por protagonismo e a natural representação dos interesses do governo de Israel por parte dos EUA no Conselho de Segurança, o presidente estadunidense é confrontado com inúmeros fantasmas de antecessores
A foto de Linda Thomas-Greenfield vetando a resolução brasileira para parar a carnificina em Gaza pode se tornar um momento tão icônico quanto o de Colin Powell, há mais de 20 anos, neste mesmo Conselho de Segurança da ONU. Powell havia sido o primeiro homem negro a ser Secretário de Estado, durante a administração de George W. Bush, e foi lembrado com muitas homenagens ao morrer de complicações decorrentes de Covid-19 em 2021. Contudo, também foi lembrado, como relatou Peter Maass no The Intercept, como o homem que fez um discurso cheio de mentiras na ONU, usado para justificar que os EUA partissem na sua “nova” empreitada no Iraque.
Os custos daquela guerra foram tremendos. Os iraquianos não se esqueceram que Powell foi protagonista naquele 5 de fevereiro de 2003, tendo por 76 minutos defendido que a invasão era uma movimentação militar justa e proporcional. Hoje, sabemos que as informações usadas naquela justificativa foram fabricadas. Não se encontraram as ditas armas biológicas e de destruição em massa. Contudo, a mortandade de iraquianos foi de muitos milhares. Powell abandonou seu posto ainda em 2004 e nunca admitiu seu papel na venda desta narrativa. Falou em algumas entrevistas que houve erros naquele momento, mas jamais declarou que participou de uma enganação consciente. O jornalista estadunidense Robert Draper viria a descrever no New York Times que as mentiras naquele discurso foram decisivas para a angariação dos apoios cruciais que os EUA tiveram para seu esforço militar, especialmente o do Reino Unido.
Confira a animação do Le Monde Diplomatique Brasil sobre a esquerda norte-americana.
Draper também afirma que Powell teria lhe dito o seguinte: “que escolha eu tinha? Ele é o presidente”
Por isso, é uma pergunta válida se Thomas-Greenfield passou por uma situação semelhante. Nota-se, com isso não se está dizendo que a administração Biden está se utilizando de mentiras na sua diplomacia da crise entre Israel e o Hamas. É verdade que o presidente estadunidense chegou a repetir algumas narrativas israelitas que prontamente foram desmentidas, como a história de que o Hamas havia “decapitado 40 bebês” durante seu ataque ao país no último 7 de outubro. Contudo, a Casa Branca o desmentiu em seguida, retirando dos EUA a responsabilidade por essas histórias. Ainda há grupos que defendem que isso ocorreu, mas são minoritários neste momento. Isso é compreensível porque esse caso veio em meio a tantos relatos que fizeram funcionários do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu naqueles dias após os ataques sofridos, que não só retoricamente feriam o Hamas, como perigosamente plantavam narrativas desumanizantes para todos os palestinos. Biden quase embarcou nessa narrativa de extrema-direita, mas foi freado.
Contudo, o democrata ainda assim fez de sua posição uma aposta perigosa, que contempla provavelmente muito de sua política exterior, mas também em boa medida a sua situação interna. Frente as eleições que se aproximam e que parecem indicar uma nova onda republicana, vetar a resolução do Brasil foi, na prática, prolongar as possibilidades de massacres ainda maiores seguirem ocorrendo na região. Diz-se, e se pode inferir do discurso de Thomas-Greenfield, que se trata de uma manobra para que Biden possa ele mesmo “resolver” a situação e ganhar os louros. Também pode ser que os custos ao democrata de uma posição que possa ser vista como “antissionista” neste momento sejam altos demais.
E por que Thomas-Greenfield estaria numa situação semelhante a de Powell? Porque é válido perguntar o que pensa a diplomata, frente à compreensão que deve ter das consequências de sua ação em políticas e em vidas. Como começam a aparecer relatos de possíveis rachas sobre este posicionamento no Departamento de Estado de Biden, e histórias de que não haveria mais um consenso nem em seu governo, nem entre os democratas (muito menos seus constituintes), é fatal questionar se Thomas-Greenfield concorda com o presidente ou está agindo de maneira parecida com a de Powell. Um funcionário de carreira do governo dos EUA, Josh Paul, pediu exoneração do cargo recentemente e publicou uma extensa carta no X (Twitter), onde afirma que o posicionamento da administração Biden neste caso era a sua motivação. Este é um sinal forte de como o dito “apoio totalmente sólido” do presidente Biden pode vir com diversos ônus e bônus, assim como a sua manobra diplomática.
Thomas-Greenfield pode concordar com Biden, ou estar agindo como Powell, o fato é que provavelmente terá a sua carreira marcada pela foto de sua recusa a parar o morticínio em Gaza. Justo ou não, é um resultado provável. Se Biden, que é o responsável por essa decisão, quer estender um pouco essa guerra para salvaguardar sua eleição, ou quer simplesmente o protagonismo para “conseguir ele mesmo a paz”, só o tempo dirá. As vidas perdidas pela prorrogação do conflito, no entanto, são as mesmas e decorrentes desta decisão em si, não das intenções por trás dela.
É importante recordar também que esse apoio sólido a estas ações de Israel tampouco existe entre toda a ala dita “mais à esquerda” do Partido Democrata. Esta ala, por mais que Biden considere “garantida”, pode ser mais importante do que o presidente estadunidense imagina para o pleito que se segue. Não se imagina essas pessoas votando em Trump ou nos republicanos, mas não seria a primeira vez que pessoas mais à esquerda dos EUA simplesmente se recusam a votar. Devem emergir memórias de quanto custou ao Partido Democrata a manobra para garantir um candidato menos esquerdista em 1968. Naquele momento, relata-se que Lyndon B. Johnson, então presidente, foi a influência final na convenção que democraticamente apontava para um candidato mais à esquerda para os democratas disputarem as próximas eleições. O resultado foi que o vice-presidente dele, o “moderado” Hubert Humphrey, foi consagrado candidato. Posteriormente, ele perderia as eleições para Richard Nixon.
O candidato Bernie Sanders havia demonstrado aos democratas o quanto de sua real força vem de votantes que almejam votar em um candidato de uma esquerda mais “pura”, que é rara no ambiente político estadunidense. Tanto que a retórica que se usava muitas vezes até dentro do Partido Democrata para impedir que ele fosse o candidato nas duas vezes que perdeu foi: ele é um “socialista”. Acontece que muitos que votaram em Hillary Clinton e posteriormente em Biden adorariam votar em um socialista. Acontece também que os preços de uma retórica beligerante aparecem em pontos como esse, já que o próprio Sanders está recebendo um rechaço gigante por parte de ex-constituintes por sua posição alinhada somente ao lado israelense. Em contraste, houve repercussão positiva em muitos setores às falas da deputada democrata Ilhan Omar, que clamou para que os EUA considerassem uma posição distinta. Importante ressaltar, essa posição não é a de um apoio à Palestina ou à sua causa, mas a consideração de um cessar-fogo, para que se possa salvar ao máximo a vida de civis. Essa fala está em sintonia com o que dizia a proposta apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança.
Este cálculo do governo estadunidense corre ainda um risco que talvez não tenha previsto: a falta de apoio ao “direito de se defender” de Israel pelo mundo, seja no Sul Global ou até em enormes manifestações em prol de interromper o morticínio em Gaza por toda a Europa e pelos EUA. As representações dos políticos da extrema-direita que governam Israel tentam comparar esses protestos a antissemitismo. Contudo, devido à violência obscena das imagens de crianças palestinas mortas, está difícil vender essa situação. Até dentro de Israel os protestos contra Netanyahu são expressivos, sendo alguns inclusive brutalmente reprimidos por forças de segurança — protestos feitos por israelitas, não por palestinos. Além disso, é vívida ainda a memória das opulentes ações autocráticas que este governo tomou a pouco tempo em seu país, ferindo o poder Judiciário num ato que o coloca em irmandade com a extrema-direita global e seus movimentos contra as Constituições nacionais de seus respectivos países.
Fantasmas do passado do hall de presidentes dos EUA
Que Biden não deseja o destino da popularidade de Bush, está claro. Hoje, é difícil encontrar (fora da extrema-direita) quem apoie ou siga justificando as ações dos EUA no Iraque. A própria atual cúpula democrata que o diga, tendo Biden famosamente encerrado a guerra do Afeganistão porque ela “não tinha mais sentido”. Se tornou inegável também, até para figuras notoriamente conservadoras, como o britânico Piers Morgan, que os resultados daquela política militarista foram desastrosos. A morte de tantas pessoas não resultou em nada que não mais desordem e caos. O Afeganistão de hoje não está melhor pela presença militar dos EUA, tampouco os grupos terroristas foram contidos.
Ironicamente, o programa ultraconservador de Morgan mostrou como a incerteza quanto a decisão de Biden paira mesmo sobre pessoas conservadoras que apoiariam a causa da direita israelense. Para isso, basta que se vejam as entrevistas que Morgan realizou com o comediante e médico egípcio Bassem Youssef, com o streamer Hasan Piker e com o embaixador palestino no Reino Unido, Husam Zomlot. O britânico segue tentando desmontar os pontos argumentativos palestinos que desejam impedir os massacres, ressaltando o que afirma Israel, mas é impossível negar que o simples fato de estar dando voz a estas figuras (algumas que não perderam a oportunidade para atacá-lo), demonstra que essa “certeza” de apoio a tudo que vem do lado israelita não é tão sólida.
Porém, como foi com a história no caso de Bush e o Iraque, houve um “sweet spot” político que o republicano soube aproveitar graças a estes esforços de guerra. O presidente estadunidense, naquele momento, capitalizou muito politicamente em responder com dureza aos ataques que seu país havia sofrido. Biden pode imaginar que há algum capital político a ganhar com alas mais conservadoras em manter este tipo de posição mais dura, pelo máximo de tempo que puder. Mas os ataques desta vez não foram diretamente aos EUA, e isso muda a situação. Há de se considerar também o cenário atual, com a campanha do ex-presidente Donald Trump se fortalecendo com a retórica de que o mundo está um caos porque Biden seria “fraco” e “débil”.
Há ainda mais fantasmas: o último presidente dos EUA que foi visto como “muito à esquerda” e “precário” frente a uma crise forte foi Jimmy Carter. Além de Trump, é o único presidente dos EUA desde os anos 1930 que não foi reeleito e não deixou sucessor no cargo. Sua derrocada se deu, entre vários fatores, pela forma como lidou com a Crise dos Reféns no Irã, em 1979. O “presidente dos direitos humanos” havia sido fraco frente a uma ameaça estrangeira e isso custou vidas estadunidenses. Essa frase deve ecoar nos salões de planejamento político de Biden.
Outro memorável democrata que foi alvejado por uma política exterior fraca foi Johnson, em grande parte devido à sua falha em aplicar a política de John F. Kennedy para a América Latina, que “evitaria o comunismo e traria democracias liberais” na segunda metade do século XX. A Aliança para o Progresso acabou na prática por trazer ditaduras militares, especialmente no caso brasileiro. Além de tudo, não “freou o Castrismo”, como desejava. Richard Nixon capitalizou disso e fez a Casa Branca republicana, entre muitos fatores, porque faltava “pulso firme” aos democratas. Uma análise impecável do quanto esta política custou aos EUA e aos democratas pode ser vista no livro The Alliance That Lost Its Way: A Critical Report on the Alliance for Progress, de Jerome Levinson e Juan de Onís.
A questão brasileira nesse imbróglio
Era imaginável que uma proposta no Conselho de Segurança que partisse da China ou da Rússia seria vetada pelos EUA. Era também imaginável que os EUA estariam representando Israel na posição que ocupam na governança global, como foi ao longo de muitos momentos de escalada de tensões na região desde a década de 1940. Contudo, a proposta para uma solução do conflito era do Brasil, país notoriamente conhecido pela sua diplomacia sóbria, negociadora, comedida e sempre em prol dos direitos estabelecidos pela ONU. Ao contrário do que alguns políticos pouco familiarizados com o histórico diplomático brasileiro tenham dito em busca de capital político, a política externa brasileira foi costumeiramente o melhor que o país demonstrou ao mundo.
Além do mais, não se trata de uma proposta que nasceu para ser recusada, como foi a russa. O Brasil realmente ponderou e construiu algo que contemplava os pontos de todos, com desagrados mínimos. Foi uma proposta criada para passar.
As abstenções do Reino Unido e da Rússia fazem sentido, dentro de suas ações diplomáticas, para reforçar posicionamentos. Vale lembrar que abstenções não impedem o texto de ser aprovado como resolução. O Reino Unido iria pontuar uma posição mais pró-Israel, sem necessariamente vetar a questão. A Rússia mostraria uma posição mais antiamericana e ressaltaria preferir sua própria proposta, recusada pelo Conselho.
A recusa dos EUA, neste cenário, acabou por soar mesquinha, como uma ação unilateral dos “donos do mundo”, contra um país aliado que não buscava uma posição adversarial à administração Biden. Basta lembrar da última visita de Lula aos EUA. O presidente brasileiro foi usado até como cabo eleitoral pelo estadunidense em busca dos votos “blue collar” (de trabalhadores ligados à produção industrial e aos sindicatos). O longo artigo do jornalista brasilianista Brian Winter na última edição da revista piauí, O Americano Petista, alonga este ponto perfeitamente e demonstra o que foi afirmado. Winter revela que Biden sofre de múltiplos problemas de popularidade, mesmo atendendo às exigências de um país que sabe que o modelo de Ronald Reagan está morto, mesmo que não queira admitir. O jornalista deixa em aberto que Biden sofreria em sua aprovação por mais motivos do que se pôde captar naquele momento. Creio que o que se relata nesta análise explicaria alguns pontos faltantes. Biden sofre porque, diferentemente de Lula e das posições históricas brasileiras, é presidente dos EUA e assombrado pelo histórico de seu país e de seus ex-colegas no cargo. A política externa pode ser um calcanhar de Aquiles que o democrata e muitos de seus apoiadores não estão compreendendo em plenitude. O apoio sólido em permitir que o conflito continue pode custar muito mais votos a Biden do que os que traria.
Afinal, a perspectiva é: enquanto o mundo discute se Israel bombardeou o Hospital Batista Al-Ahli e matou inocentes civis (incluindo crianças), Biden escolheu estar com Netanyahu, por motivos que podem ser variados, porém inerentemente políticos. Até o momento da escrita deste artigo, fontes ligadas à Israel, aos EUA e ao Reino Unido (mais especificamente à BBC) apontam para a narrativa de Netanyahu de que a tragédia foi decorrente de um míssil da Jihad Islâmica que teria saído desviado. Contudo, fontes locais indicam características de um ataque aéreo israelense, em conjunto com checagens feita pela Al Jazeera e pelos peritos independentes britânicos da Forensic Architecture. Todas as análises são preliminares, mas Israel tem uma desvantagem nesse conflito de narrativa: o fato de ter avisado ao Hospital que ele deveria ser evacuado antes do ataque.
Conforme explicitou no X (Twitter) o professor especialista em Relações Internacionais, Alonso Gurmendi, talvez países como os EUA e o Reino Unido, tenham selado seu destino para a opinião do Sul Global com a decisão de não permitir que um mínimo de cessar-fogo ocorresse para o resgate de inocentes naquele pequeno território sitiado e bombardeado. Escolhendo este lado, estão afundando sua dita “superioridade moral”, não somente para os governos dos países que ambicionam manter em sua zona de influência, mas para os cidadãos deles.
Com as crescentes passeatas e protestos na Europa e nos EUA contra essa decisão, também se questiona se não cavaram suas covas políticas. Alguns optaram por recrudescer em uma posição pro-Israel, como Olaf Scholz na Alemanha, ameaçando com deportações em massa quem se manifestar pró-Palestina demais em Berlim. Outros tomaram posições surpreendentemente distintas, como o governo espanhol, que condenou as atrocidades em Gaza e teve que ouvir dos diplomatas israelitas que havia “antissemitas” nos seus ministérios. O presidente espanhol em exercício e presidente de turno da UE, Pedro Sánchez, na Cúpula no Egito para a solução deste conflito, encontrou-se no sábado (21) com o líder político palestino Mahmoud Abbas, mas ainda não com Netanyahu. Obviamente defendeu que Israel deve ser mantida segura contra o terrorismo, mas também frisou que o objetivo desses encontros é a busca pela paz e que o povo palestino não pode ser ignorado. Enquanto isso, líderes do partido Podemos, que integrou seu último governo e deve, mais timidamente, integrar o próximo, abertamente pedem para que a UE cesse a venda de armas para Israel, fazendo eco a múltiplas manifestações que ocorreram na Espanha e que clamavam que “um genocídio não deve ser cometido em meu nome”.
Entre todo este imbróglio, o mais importante, conseguir o (ainda que momentâneo) cessar-fogo, não ocorreu. Enquanto isso, palestinos morrem porque talvez, em nome de uma “fúria cega” frente a um ataque que foi feroz, brutal e terrorista por parte do Hamas, o governo de Israel opte pela violência total. Deixo a frase “fúria cega” entre aspas porque chegou a ser dita por Morgan. Netanyahu talvez pense se beneficiar politicamente disso, e o tempo dirá. Contudo, os primeiros indicativos não são positivos. O mesmo pode ser dito de Biden e Scholz. Na última sexta-feira (20), mais um ato pouco esperado ocorreu, desta vez no mundo diplomático, como relatou Jamil Chade. 50 países se juntaram na ONU contra o veto proferido pelos EUA, basicamente clamando pelo cessar-fogo que poderia vir se tivessem permitido que a moção brasileira triunfasse.
Em termos práticos, o cessar-fogo não ocorreu porque Biden jogou uma moeda no ar, numa aposta que se fiou de um passado que talvez já não exista, no que concerne as convicções majoritárias sobre o Oriente Médio nos EUA, na Europa e Sul Global. Em pouco tempo, essa moeda cairá e o presidente estadunidense verá se ganhará louros ou se terá enterrado sua carreira política, junto com as de uns tantos chefes de governo aliados, e, possivelmente, a de Thomas-Greenfield.