A reforma do Conselho de Segurança
O Brasil conta com o apoio da França e do Reino Unido e, em menor medida, da Rússia; China e EUA costumam expressar, apenas, que deveríamos ter mais peso nas decisões internacionais. O país poderia beneficiar-se da permanência mesmo sem direito a veto, pois se manteria como voz ativa e ganharia horizonte de longo prazoEduardo Mello
Assim como a ação do Estado é determinada por suas elites, a atuação do Conselho de Segurança (CS) resulta da correlação de forças do sistema interestatal. Sua composição essencial – cinco membros permanentes (os “P5”) com direito a veto – reflete o poder originado na Segunda Guerra Mundial e cristalizado em 1945, na criação das Nações Unidas.
Naquele ano, a ONU tinha 51 Estados, para um CS com onze assentos (22% do total); hoje, tem 193 para quinze assentos (7,7%), após a reforma de 1965, que lhe acrescentou quatro vagas não permanentes. A Cúpula Mundial de 2005 definiu a “necessidade urgente” de uma nova reforma, para torná-lo mais representativo, eficaz e legítimo. Cinco “questões-chave” formariam a base das negociações: a) categorias de membros; b) veto; c) representação regional; d) tamanho e métodos de trabalho; e) relação com a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU).1
Avançou-se em 2015, quando as negociações passaram a basear-se em texto que prevê o aumento de assentos em ambas as categorias.2 A decisão, aprovada por consenso, foi considerada vitória do G4 (Alemanha, Brasil, Índia e Japão), mas não dispõe sobre veto ou tamanho do novo CS (há certa convergência de que deverá ter cerca de 25 membros).
Mantém-se divergência quanto a soluções provisórias, ao veto e a assentos semipermanentes (de maior duração e recondução sucessiva). O G4 propõe, para maior equilíbrio geográfico, mais seis permanentes (dois para países africanos) e quatro ou cinco não permanentes. Tem como principal opositor o movimento Uniting for Consensus, de países como Argentina, Espanha, Itália, México e Paquistão, que propõem maior rotatividade e não veem como democrática a criação de vagas permanentes.
São pouco otimistas as expectativas de conciliação entre as diversas propostas, que devem ainda contar com anuência dos P5. Estes dificilmente cederão a vantagem do veto; outros dificilmente aceitarão novos membros permanentes. A posição de dominância, absoluta ou relativa, não costuma ser cedida pacificamente.
Poder e legitimidade
É legítimo o argumento de que o sistema não mais pode basear-se em estruturas que refletiam sua gênese, no fim da Segunda Guerra Mundial. Os conflitos atuais, no entanto, seguem reproduzindo a lógica daquela gênese, com a primazia de fatores geopolíticos sobre considerações ético-morais (como justiça e direitos humanos). Fatores aqueles ainda sob domínio majoritário dos P5.
Para Edward Carr, é utópico justificar a barganha da mudança negociada no que é “justo e razoável”: a “ditadura das potências” é uma “lei internacional”, e a ameaça de guerra, condição para que seja derrogada. Ainda assim, a “ditadura” deve ser moderada, pois o status quo não duraria indefinidamente. Logo, soluções negociadas seriam de interesse coletivo,3 a fim de conciliar moralidade e poder, díade cujo problema fundamental é fixar meios pacíficos de mudança.4
A reforma almeja fixá-los. O sistema é mais complexo que em 1945, mas sua essência permanece: é reflexo do poder, e não da legitimidade. Perdura nele o paradoxo do uso da força – a posse de arsenal nuclear, limitada pela mútua destruição –, mas se trata de paradoxo relativo. O uso é improvável, mas não impossível, sendo ameaça subjacente à “ditadura das potências”.
Por outro lado, a reforma poderia ganhar força com a crise do CS, incapaz de conter conflitos que se entrelaçam em arcos de instabilidade, de Calais a Raqqa, do Paquistão à Nigéria. Por exemplo, as tensões entre Estados Unidos, Rússia e China; as guerras e as crises migratórias; a mudança do clima; a expansão do terrorismo (1.882 ataques em 2001, 16.818 em 2014);5 a pobreza e a desigualdade (62 pessoas com riqueza igual à de 3,6 bilhões).6
A crise é causa e consequência do quadro de polarização do CS, em dois blocos cada vez mais coordenados (Ocidente × Rússia e China). Em 2014, a França propôs remeter o conflito na Síria para análise do Tribunal Penal Internacional (TPI). Para a embaixadora norte-americana Samantha Power, a medida seria uma “prestação de contas” à comunidade internacional. Para Rússia e China, dificultaria solução política e possibilitaria intervenção, como no caso da Líbia, razão pela qual opunham veto. Veto que, para os embaixadores francês e britânico, foi um “insulto contra a humanidade”, “vergonhoso”. Ao adendo da França, o representante russo Vitaly Churkin contrapôs que o colega “não fora muito convincente”. “Apenas aqueles que queiram ser persuadidos podem sê-lo!”, treplicou Gérard Araud. “Não cederemos ao que você diz!”, insistiu Churkin.7
A magnitude da atual crise é inédita. O aperfeiçoamento do sistema – de Westfália à ONU, passando pela Liga das Nações – parece ter chegado ao limite. Nesse cenário, a reforma enfrenta não só a “lei internacional” como também a “grande transformação” teorizada por Karl Polanyi. Isso porque a causa formal, o âmago do CS (permanência e veto), nunca foi alterada; mas sua causa material, a natureza dos Estados que compõem o sistema, sim.
Evolução do sistema-mundo
Nos últimos cinco séculos, a expansão do capitalismo relacionou-se com a competição interestatal por capital e com a formação de estruturas políticas de controle. Gerou crescente concentração de poder, em que o capital dependia do poder estatal para reproduzir-se, e em geral a economia subordinava-se à política. Fusão que Weber chamou de “única” e que Marx assim traduziu: “the love of power is an element in the desire to get rich” [o amor pelo poder é um elemento no desejo de ficar rico].
Na virada do século XX, as corporações começaram a substituir o sistema interestatal como locus primário do poder global, tendência interrompida pelas duas guerras. E 1945 deu início à hegemonia dos Estados Unidos e a uma quebra de paradigma: Roosevelt concebeu a ONU como um “governo mundial”, que estenderia o Estado de bem-estar ao resto do planeta.8
Se antes os banqueiros controlavam os fluxos da alta finança, com Bretton Woods o controle passaria para uma rede de organizações governamentais focadas fundamentalmente em poder, segurança e bem-estar.9 O traço distintivo desse paradigma foi o predomínio do Estado sobre o mercado e, no âmbito deste, do capital monopolista sobre o financeiro.
Essa predominância foi revertida a partir dos anos 1970, quando se iniciou a derrocada do keynesianismo no Ocidente, colapso que acelerou o fortalecimento do capital financeiro vis-à-vis o Estado-nação, em escala global.10
O novo fundamental real do Estado
O Estado, não sendo fonte autônoma de poder, depende das forças que o constituem. O espírito de 45, documentário de Ken Loach, retrata a criação da saúde pública e as estatizações no Reino Unido, medidas hoje impensáveis, exemplo da prevalência do governo democrático sobre os agentes privados. O paradigma de 1945 rejeitava a ideia do mercado autorregulado pelo capital financeiro: os mercados só poderiam ser expandidos sob a administração de governos (Estado) e de grandes corporações (capital monopolista).11
Para Foucault, a reação neoliberal fez que se passasse de um mercado local, sob a “vigilância” do Estado-nação, para um Estado nacional sob o controle do mercado. Este passou a usar o Estado para governar a sociedade, dando-lhe um novo fundamento real.12 Desde Westfália não havia uma autoridade acima do sistema interestatal; o neoliberalismo fez do livre-mercado uma “autoridade superior” mundial.13
É nesse quadro que o CS foi gestado, como síntese do poder estatal e do capital monopolista. Entre 1945 e 2015, a transformação qualitativa neoliberal subverteu essa síntese, afetando os postulados-base da reforma: a lógica do poder nacional-territorial, quintessência da razão interestatal do CS, foi substituída pela lógica do poder econômico neoliberal, que passou a comandar as relações entre os Estados e as relações sociais no interior destes.
Conforme Thomas Piketty, a democracia sob controle do capitalismo financeiro globalizado “desnacionaliza” países, territórios que se tornam sujeitos de conflitos mais interoligárquicos que internacionais. Estes, muito mais difíceis de conciliar, pois tornam opaco o interesse público em favor do interesse privado, reduzindo o estímulo à cooperação.14 Se o neoliberalismo privilegia a competição à cooperação, a supressão dessa ameaça é um dos principais substratos valorativos da reforma, o multilateralismo.
As viradas dos séculos XX e XXI se assemelham, com indícios de caos sistêmico, verificados quando as grandes potências, tomadas por interesses oligárquicos, confrontam-se abertamente. O desequilíbrio entre variáveis políticas e econômicas enfraquece a democracia, nos âmbitos nacionais, e o multilateralismo, no contexto internacional. Crise da própria ONU, pressionada a substituir seu sentido original pelo do mercado, com lobbies armamentistas, alimentícios e farmacêuticos sobre agências como FAO e OMS.
Níveis extremos de desigualdade, entre os Estados e entre as classes no âmbito deles, fazem ressurgir protestos contra o que Giovanni Arrighi chamou, no caso da belle époque, de “dupla exclusão”: de povos não ocidentais perante ocidentais; e de massas despossuídas nos países desenvolvidos.15
Assim, os eixos político e econômico são articulados pela convergência da lógica da força na relação entre os Estados e entre seus respectivos setores sociais. Fusão, em escala planetária, dos dois níveis superiores da luta de classes: capital × trabalho, no plano nacional, e Estado × Estado, no internacional.16
O Conselho no século XXI
O núcleo do CS apresenta choques entre as diferentes concepções de Estado e mercado. Com a assunção da economia de mercado por Rússia e China, as tensões passaram do plano ideológico da Guerra Fria (capitalismo × comunismo) para o geopolítico-econômico, predominantemente.
Enquanto o Ocidente busca manter o Estado e o mercado sob controle da lógica neoliberal, Rússia e China defendem um Estado indutor e regulador (mais próximo, talvez, do pensado por Roosevelt). Repete-se, de certa forma, a rivalidade original entre Gênova e Veneza: um modelo de capitalismo financeiro, controlado pela alta finança; e um de capitalismo monopolista, dominado pelo Estado e por corporações.
O reformismo de China e Rússia parece indicar essas ambiguidades. Ao mesmo tempo que têm interesse na multipolaridade, dificilmente cederão os “superpoderes” de 1945, muito menos para rivais históricos (como o Japão e a Alemanha). Buscam preservar o status quo, mas estimulam outros polos (como os Brics, o AIIB) para contrabalançar a atual correlação de forças. Esta favorece o Ocidente e o obriga a constantemente usar o veto (ou ver decisões desconsideradas em maior ou menor medida, como no Iraque, na Síria e na Líbia).
O mesmo se aplica ao Ocidente, que tenta estender sua dominância. Ao mesmo tempo que precisa recuperar as condições para uma hegemonia moderada, deve, pela lógica neoliberal, expandir constantemente o sistema, como se poderia ver na iniciativa TTIP-TPP-Tisa, que enfraquece o sistema multilateral de comércio. Expansão típica da ordem capitalista, assim como a concentração de poder, que parece insinuar-se na incipiente formação de um G2 norte-americano/chinês.
São tensões centrífugas e centrípetas, que poderiam fazer que o CS passasse a atuar como gendarme da fossilização das estruturas políticas e econômicas, a fim de evitar mudanças na configuração sistêmica e, por consequência, na divisão internacional do trabalho.
O pleito brasileiro por
um assento permanente
Essas complexas tendências poderão ter impacto na pretensão do Brasil de se tornar membro permanente do CS, sob a bandeira do multilateralismo e de suas contribuições para a paz e a segurança.
O Brasil conta com o apoio da França e do Reino Unido e, em menor medida, da Rússia; China e Estados Unidos costumam expressar, apenas, que deveríamos ter mais peso nas decisões internacionais. O país poderia beneficiar-se da permanência mesmo sem direito a veto, pois se manteria como voz ativa e ganharia horizonte de longo prazo em termos de articulação e mediação.
O país é interessante caso de análise, por apresentar certo equilíbrio entre Estado e mercado desde o início do século, com interseções e disputas entre o governo e o capital financeiro nas políticas interna e externa. É, portanto, país “em aberto” na disputa de influência dos demais polos, principalmente os P5.
Se o país se inclinar por orientação progressista e/ou independente, com prevalência do Estado sobre o mercado (mais próxima do modelo sino-russo e dos Brics), pode perder apoio dos Estados Unidos. Se adotar posição mais conservadora e/ou neoliberal (mais próxima do modelo ocidental), pode perder a simpatia de Rússia e China.
O apoio de um dos polos do CS pode causar redução proporcional do outro.
Ademais, o pleito brasileiro não teria tanta força se feito de forma isolada. Atrelado ao G4, porém, enfrenta oposição da China, contra o Japão, e do Paquistão, contra a Índia, além de outros casos.
É nesse contexto que o esforço pró-reforma, impulsionado por países como o Brasil, busca uma transição pacífica – e inédita – entre o tempo de 1945 e o tempo futuro, a fim de tornar menos injusta a ordem (ou desordem) internacional.
Utopia indispensável para conter a paralisia ou, pior, a mudança pela guerra sistêmica, ameaça presente na cisão do CS e verificada em atritos na Ucrânia, na Síria e no Mar do Sul da China.
Risco gestado na própria essência de 1945, traço nuclear da lógica do poder que a mantém viva. O pecado da gênese do sistema, que pode, tal qual fissão atômica, criar um novo mundo – ou destruir o atual.
Metáfora plena de autoironia.
Eduardo Mello é diplomata e mestre em Ciência Política pela UFRGS. É autor de Brisas de Bissau (Pragmatha, Porto Alegre, 2015). O texto reflete apenas as opiniões do autor.