Jovens, qual será o futuro?
Os jovens são mais profundamente afetados pelas transformações sociais. Cabe, portanto, indagar quais perspectivas há para sua formação e inserção em uma vida profissional na contemporaneidade, particularmente para os que estão em situação de pobrezaAlexandre Barbosa Pereira
A ideia de juventude na atualidade é marcada por muitos paradoxos. De um lado, temos a exaltação da condição juvenil: todos querem estar, parecer, sentir-se e consumir como se fossem eternamente jovens. A juventude apresenta-se assim como um valor a ser vivenciado, compartilhado e, fundamentalmente, desejado.1 Por outro lado, os jovens são com frequência percebidos como problema, sobretudo quando pobres. Ou seja, existem formas específicas de ser ou parecer jovem que são extremamente valorizadas, marcadas pela disposição física e pela inclinação para o consumo, como também há a tendência em pensar a juventude como um período de instabilidade, incerteza e de maior vulnerabilidade, que pode até mesmo se tornar um perigo social. Isso demonstra que há muitos modos de ser jovem. Assim, se para determinada camada da população desfrutar a moratória social, período livre das obrigações da vida adulta, é bem-visto e considerado indicador de prestígio e de uma vida feliz e de sucesso, para outra qualquer tentativa de usufruir o tempo livre ou de expressar-se de modo mais espetacular pode ser condenada e estigmatizada.
Essa relação complexa e multifacetada dos jovens com o tempo livre mostra-se fundamental para entender como estes se inserem em outras duas esferas sociais no mundo contemporâneo: o trabalho e a educação. O tempo livre é uma dimensão importante porque na sociedade capitalista industrial a divisão entre tempo de trabalho e tempo liberado do trabalho regula, em grande medida, as relações sociais. No caso de jovens pobres, seu tempo livre é visto como perigoso e, por isso, precisa sempre ser ocupado produtivamente. “Cabeça vazia, oficina do diabo”, diz o ditado popular. Por isso, muitos projetos sociais voltados a atender os segmentos jovens da população mais pobre apresentam como missão principal ocupá-los, tirá-los da rua ou “levar-lhes cultura e lazer”, o que demonstra que o ócio juvenil por si só não é visto apenas como improdutivo, mas também como danoso para os próprios jovens e para “a sociedade”. No entanto, é no tempo livre que eles encontram o principal palco para exercer seu maior protagonismo.
Há tempos as ciências sociais têm mostrado o rendimento de compreender os jovens e suas práticas culturais fundamentalmente com base em sua expressão no tempo livre. José Machado Pais2 chega a dizer que quem quiser estudar juventude não o pode fazer sem abordar o lazer, pois seria esse o espaço de maior visibilidade e expressão das culturas juvenis. Nos últimos tempos, contudo, o uso juvenil do tempo livre tem sido marcado fortemente pela articulação com as novas tecnologias da informação e da comunicação: internet, redes sociais, smartphones, entre outros dispositivos. A associação com as tecnologias tem não apenas criado novas formas de diversão, como também alterado profundamente os modos de ser jovem, produzindo novas subjetividades e sensibilidades.
Se há alterações em como se vivencia a juventude, há também mudanças nas relações sociais de uma forma mais geral, pois não existem juventudes isoladas, mas em constante contato intergeracional com indivíduos de outras faixas etárias ou fases da vida. Por esse motivo, no contexto educacional contemporâneo, formal ou não, os usos do tempo livre e as novas subjetividades juvenis, associadas fortemente às novas tecnologias, têm se apresentado como um de seus mais fundamentais desafios. Por um dispositivo que cabe na palma da mão, o telefone celular, é possível estabelecer contato com muitas outras pessoas, lugares e informações. Além disso, por intermédio dele se pode fotografar, filmar, ouvir música, fazer anotações, gravar mensagens e até realizar chamadas telefônicas. Nele e nos microcomputadores pessoais estão a extensão de muitos dos sentidos humanos e, principalmente, da memória. Altera-se, assim, a própria relação com o passado. Se entendermos por educação o processo de transmissão das tradições dos mais velhos aos mais novos ou mesmo o modo como aqueles tentam, com base em suas próprias experiências, formar estes, a grande questão que fica é como pensá-la e colocá-la em prática num contexto marcado pela valorização excessiva da novidade e pela obsolescência acelerada que caracteriza não apenas o desenvolvimento dos aparatos tecnológicos, mas também as relações sociais. Nossa cabeça foi decapitada à nossa frente e não precisamos mais, conforme afirma Michel Serres,3 retomando as reflexões de Montaigne sobre o surgimento da imprensa, enchê-la com informações e memorizações, mas fazê-la funcionar eficiente e criativamente, privilegiando ações e conhecimentos que não podem ser produzidos pelas máquinas.
Entretanto, em muitos contextos ainda se insiste em pensar os processos educativos e de formação apenas como acúmulo irrefletido de conhecimentos a realizar-se em confinamento. Escolas pautadas pela lógica do vigiar e punir perdem cada vez mais seu sentido e a eficiência do que se propõem a fazer, pois têm de competir com outras instâncias poderosas de formação, como as mídias. Essa transformação pode ser percebida no cotidiano de qualquer instituição de ensino no Brasil, seja ela pública ou privada. Muitos professores lamentam: “Não consigo mais dar aulas para essa geração”. Hannah Arendt,4 em texto do final dos anos 1950 sobre a realidade educacional nos Estados Unidos, já afirmava que haveria um enfraquecimento da função de transmissão de tradições no Ocidente, porque o próprio passado e as tradições como referências perderiam prestígio e sentido. Isso gera inúmeros dilemas, pois, como expõe a filósofa, até mesmo para transformar o mundo atual é preciso mostrar seus limites e contornos para as novas gerações. Nesse sentido, a ideia de formação deve ser pensada não como formatação do educando, mas como o ato de dar forma ao mundo para que os mais jovens possam compreendê-lo e mesmo mudá-lo, se assim quiserem. Em síntese, não é possível pensar um futuro sem tomar como referência os erros e acertos do passado.
Se por um lado a valorização excessiva do presente e a obsolescência cada vez mais rápida das relações e tradições culturais afetam os processos educativos e mesmo os colocam em xeque, por outro se pode pensar como houve também uma transformação nas relações de poder que enfraqueceu a ação disciplinar que rege grande parte das instituições de ensino. A figura do pan-óptico de Bentham, um centro a vigiar e controlar tudo, como discutido por Foucault em seu Vigiar e punir, perde sentido ou passa a concorrer com outras modalidades. Com essas mudanças, criam-se novas formas de controle, que são internalizadas. Hoje, todos somos possíveis vigilantes da aplicação das normas hegemônicas em nós mesmos e nos outros. Um professor, por exemplo, pode ser filmado por um aluno e até questionado mais amplamente se fizer algo que fuja a certos padrões estabelecidos. Indo ainda mais longe, pode-se dizer que introduzimos o pan-óptico em nós mesmos. Temos nossa subjetividade marcada por esse controle incorporado e passamos a nos cobrar por desempenho, produtividade e sucesso, como mostram diferentes autores.5
As mudanças nas formas de controle têm se revelado mais intensamente nas relações de trabalho, pois provocam alterações nas articulações entre tempo de trabalho e tempo livre, divisão característica da sociedade industrial. Na atualidade, há uma implosão dessa dicotomia, que embaralha o tempo liberado para o lazer e o enriquecimento pessoal com o tempo obrigatório do trabalho. Essa imbricação cada vez maior entre as duas dimensões, entretanto, não se dá pela atribuição de um sentido libertador ou enriquecedor ao trabalho, mas acontece de forma perversa, por meio da invasão e colonização do tempo livre pelo mundo do trabalho. Por outro lado, o usufruto do tempo livre é reduzido também a um tempo de consumo, o que faz que mesmo aquele que seria o momento de desfrutar maior liberdade e enriquecimento pessoal esteja atrelado ainda em grande medida ao mundo da produção de bens e coisas. Os jovens são mais profundamente afetados por essas transformações sociais. Cabe, portanto, indagar quais perspectivas há para sua formação e inserção em uma vida profissional na contemporaneidade, particularmente para os que estão em situação de pobreza.
Em artigo sobre o acesso das camadas populares ao ensino superior e sobre a relação de segmentos sociais mais jovens com o trabalho, Maria Corrochano6 apresenta, por meio de narrativas, as diferentes formas de entrada no mercado de trabalho, relação com os estudos e ingresso no ensino superior. Ela expõe as dificuldades daqueles que têm poucos recursos, econômicos e de tempo, para organizar um projeto de vida de mais longo prazo. Há tanto quem tem de começar a trabalhar cedo e possui poucas expectativas de melhora de vida, como quem, apesar de estar em um trabalho precário, sonha com e busca um emprego melhor. Nessa diversidade de perspectivas apresentadas, a autora demonstra como aqueles que conseguiam efetivamente construir e estabelecer uma trajetória com maiores potencialidades de sucesso eram justamente os jovens que transcendiam o interesse no trabalho como instrumento utilitário para obtenção de recursos e procuravam novas e mais promissoras possibilidades. Para estes, a formação implicava fundamentalmente um preparo para a vida. Conseguiam, assim, desprender-se de um ponto de vista mais utilitarista e/ou de pensar apenas na sobrevivência no presente para elaborar um projeto de futuro. Essa dimensão é fundamental para refletir sobre a educação e o trabalho num mundo marcado cada vez mais pela instabilidade e ausência de perspectivas de longo prazo.
No que diz respeito às políticas públicas, percebe-se como os jovens há muito têm constado como seu alvo privilegiado. Isso se deve em grande medida à ideia de pensá-los, principalmente se pobres, como um problema. O equívoco maior de muitas políticas públicas de trabalho e formação profissional para a juventude é justamente pautar-se por, ou tomar como pressuposto, um caminho apenas utilitário de garantir ou oferecer subsídios para a inserção no mercado de trabalho, seja ela qual e como for. Quando se preparam os jovens apenas segundo essa concepção, sem considerar a importância de uma ampliação de repertório que lhes possibilite a construção de um projeto por si e para si, a formação é reduzida a uma dimensão meramente instrumental, que pode inclusive gerar culpas individuais e sofrimentos por eventuais fracassos, não garantindo a necessária autonomia.
Nesse sentido, iniciativas como as da Prefeitura Municipal de São Paulo – de qualificação, formação e inserção de jovens de famílias de baixa renda no mercado de trabalho, como o Jovem SUS e o Jovem Monitor/a Cultural, ambas voltadas para a faixa etária de 18 a 29 anos – são importantes para quem terminou o ensino médio e está numa fase da vida para a qual há poucas opções de políticas públicas. Além disso, trata-se do segmento que mais sofre com o desemprego. Projetos como esses articulam a questão do trabalho e da formação para esse público determinado, com inserções em Unidades Básicas de Saúde, no primeiro caso, e em equipamentos públicos de cultura, no segundo. Embora bem-vindas e potencialmente promissoras, há de se destacar alguns cuidados necessários, pois, sem associar, ao mesmo tempo, a formação mais técnica com uma formação mais global e crítica, propostas desse tipo podem não ter os resultados esperados e servirem apenas para uma inserção provisória e precária de jovens em atuações profissionais, não lhes possibilitando uma ampliação de repertório e de perspectivas para sua própria vida e futuro.
O exemplo do programa Jovem Monitor/a Cultural, coordenado pela Secretaria Municipal de Cultura, revela-se bastante interessante por configurar um processo educativo ligado ao mundo do trabalho, mas que não se reduz a este. No programa, os jovens recebem um auxílio financeiro mensal e passam por 30 horas de formação, sendo 6 horas de formação teórica em entidades conveniadas como o Instituto Pólis e a Ação Educativa e 24 horas de formação prática realizada diretamente em equipamentos públicos de cultura. A formação teórica abrange um rico e variado conjunto de temáticas, como: políticas culturais, diversidade e cidadania cultural, interculturalidade, linguagens artísticas, arte-educação, comunicação, diversidade sexual e a própria condição juvenil contemporânea. Uma ação como essa, se pensada de uma perspectiva que transcenda o treinamento ou não se reduza à inserção dos jovens como tarefeiros nas instituições em que atuam, pode ser bastante produtiva, principalmente se for capaz de, ao mesmo tempo, formar os jovens e ser formada por eles, entendendo melhor a realidade deles para pensar uma ampliação das próprias políticas públicas de cultura na cidade. Afinal, um ou uma jovem de um bairro da periferia de São Paulo pode contribuir, e muito, para que se pense quais seriam as particularidades de ações culturais para uma população que tem acesso a poucos equipamentos públicos oficiais de cultura. Ganham assim os jovens do programa, o poder público e a população de todas as faixas etárias.
Analisar casos práticos como esse é de crucial importância para problematizar e avançar nas políticas para a juventude, porque, como demonstra Arjun Appadurai,7 com as inovações tecnológicas e a produção de um mundo mais conectado, as pessoas conseguem mais intensamente imaginar-se em outros lugares ou de outras perspectivas. Assim, é possível optar entre construir um projeto de vida compartilhado que se apresente como politicamente transformador dos indivíduos e de suas coletividades, ou apenas elaborar fantasias imediatistas, individualistas e autocentradas. As políticas públicas devem, portanto, ter consciência de qual desses dois movimentos está estimulando. No caso daquelas que constituem processos educativos, revela-se urgente pensá-las como uma forma de apresentar aos mais jovens os caminhos já trilhados para que estes possam escolher entre segui-los à sua própria maneira ou construir novos.
Alexandre Barbosa Pereira é professor da Unifesp e doutor em Antropologia Social pela USP.