Kung-fu e luta de classes
Longe de se resumirem a uma simples diversão, muitos filmes de artes marciais chineses falam acima de tudo de justiça e dignidade – de um indivíduo, de uma classe ou de um povo oprimido que eleva a cabeça, esfrega o nariz e dá uma surra merecida num tirano mais bem armado.Daniel Paris-Clavel
Em 1973, o situacionista René Viénet,1 sinólogo e cinéfilo bem informado, modificou os diálogos de uma obscura produção de Hong Kong: Crush, dirigido no ano anterior por Tu Guangqi, com roteiro de Ni Kuang. Ele transformou a história clássica de um vilarejo chinês invadido por samurais e defendido por um adepto do kung-fu (Jason Pai Piao) em um agradável “brinde aos explorados pela eliminação dos exploradores”, intitulado La Dialectique peut-elle casser des briques? [A dialética pode quebrar tijolos?]. Muitos não veem ali nada além de uma paródia subversiva com base em um cinema excêntrico vindo do Oriente.
No entanto, à diferença de muitos de seus companheiros da Internacional Situacionista, Viénet não tem nenhum desprezo pelo cinema popular. Ao contrário: por ter sido um dos primeiros importadores de filmes de kung-fu na França, ele conhece perfeitamente os códigos. Daí a eficácia de uma transformação que segue perfeitamente a trama do filme, apenas metamorfoseando os samurais em burocratas prontos a subestimar – como ocorre com frequência – as capacidades autogestoras do proletariado. Certos filmes chineses não tinham esperado o olhar bem informado (e aguçado) de raivosos parisienses para afirmar sua dialética com grandes golpes de pé saltado (uma espécie de voadora nas genitais). Basta voltar a 1971 para encontrar, em Hong Kong, um dos exemplos mais flagrantes: O dragão chinês (Tang Shan Da Xiong),2 de Lo Wei, com um certo… Bruce Lee.
Depois de ter interpretado o papel de Kato na série norte-americana The Green Hornet [lançada no Brasil com o título O besouro verde], Bruce Lee assinou com a Golden Harvest, uma companhia de Hong Kong na época à beira da falência. A fim de economizar cenários e vestuário, esta transpôs para a época contemporânea a história verídica de Chen Chao-an, chinês do fim do século XIX muito popular na Tailândia por ter defendido ali seus compatriotas imigrados.
A pobreza obrigou o jovem a ir para a Tailândia, onde foi contratado por interferência de seu primo Hsiu Chen (James Tien) numa fábrica de blocos de gelo. Mas o diretor utiliza discretamente estes últimos para transportar pacotes de droga. Os operários que descobrem o segredo são todos eliminados de forma igualmente discreta. Hsiu Chen, que pratica kung-fu, é ao mesmo tempo o justiceiro local e o representante dos companheiros na fábrica. Quando os operários desaparecem – todos no cassino, segundo o diretor –, ele vai até a vila do patrão (o big boss do título em inglês), um homem que gosta de garotas jovens e também um especialista em artes marciais, interpretado por Han Ying-chieh, coreógrafo das lutas do filme. Como Hsiu Chen pensa em prestar queixa, acaba assassinado.
Com quatro dos colegas tendo faltado à chamada, os operários entram em greve e ameaçam saquear a fábrica. Eles enfrentam então o encarregado e os capangas do patronato sob o olhar impassível de Chen Chao-an, que jurou à mãe não lutar… mas acaba por se envolver, colocando em fuga os rufiões – oh, apesar de tudo, trata-se de Bruce Lee! O diretor logo o nomeia encarregado, para grande alegria dos trabalhadores. Opa, basta uma promoção para que as vítimas do capital sejam esquecidas? No entanto, sua euforia passa quando uma amiga lhe lembra a razão da ira deles.
Indicado como porta-voz, Chen é convidado a jantar pelo diretor, que chama call girls muito sedutoras. Enquanto seus colegas comem uma refeição simples, preocupados com sua ausência prolongada, o delegado sindical se alimenta fartamente com seus novos “parceiros sociais”, antes de despertar no bordel. De volta à fábrica, percebe, diante do desprezo e do sarcasmo dos colegas, que se tornou… um pelego. E, quando soa a sirene para a voltar ao trabalho, a base se recusa a obedecer-lhe.
Dessa vez, ele vai ver o patrão em pessoa, que se apresenta a ele como o tipo paternalista que se fez por si próprio, ganhou seu Rolex com o suor do corpo e considera seus empregados “seus filhos”. Tendo voltado sem mais respostas para o alojamento que divide com os outros operários, Chen é deixado de escanteio, o que é compreensível: simples manobra, ele não dá um pio; transformado em encarregado, dá ordens e se refugia no bordel em vez de dormir com os companheiros de labuta… É então que uma prostituta, solidária com seus irmãos de sofrimento, lhe revela a verdade sobre o tráfico de drogas. Chen visita à noite a reserva de gelo e descobre os corpos congelados de seus amigos desaparecidos. Ele compreende que a paz social não passa de uma capa bonita que esconde os andrajos que estão por baixo. Sua vingança (de classe) será terrível…
O dragão chinês bateu todos os recordes de bilheteria e lançou a carreira de Bruce Lee. De todos os seus filmes é não somente um dos mais violentos (Chen dá cabo de uma dúzia de assassinos), mas também um dos mais políticos. Aliás, a censura não se deixou enganar por ele. Nos Estados Unidos, a cena final, na qual Chen enfia os dedos no caro terno de seda do patrão, foi cortada, talvez por medo de que os espectadores sentissem uma comichão de brigar no dia seguinte…
Outras produções rapidamente surgiram seguindo os passos desse filme. Afinal, os empregados dos grandes estúdios chineses, trabalhando em média 48 horas por semana e 354 dias por ano, tinham sem dúvida algumas mensagens subliminares para transmitir a seus patrões… Podemos citar Tie Zhi Tang Shou [Dedos de aço que matam], de Hui Kwok, com roteiro de Ni Kuang, feito em Taiwan em 1972. Camponeses são submetidos ao patrão de uma exploradora florestal que parece saído de uma escola de administração de empresas. Não contente de fazer os operários trabalharem duramente por um punhado de arroz, ele os deixa entorpecidos vendendo-lhes ópio e prostitui suas mulheres e irmãs num bordel no campo, onde os infelizes gastam o que lhes resta. Mas um praticante de kung-fu (Tony Liu Jun Guk, que interpretou um heroico aldeão em Crush) se imiscuiu entre os camponeses. Ele tem a firme intenção de tatear a próstata patronal com dois dedos que… matam!
Em 1978, o diretor Liu Chia-liang, um mestre autêntico de kung-fu, revolucionou o gênero com A câmara 36 de Shaolin (Shao Lin San Shi Liu Fang). Nessa obra-prima, o ator Gordon Liu interpreta o papel do monge San Te, que deseja abrir os ensinamentos do templo de Shaolin aos leigos a fim de combater o opressor manchu. Mas é sua “falsa continuação”, O retorno à câmara 36 (Shao Lin Ta Peng Hsiao Tzu, 1980),3 que vai consolidar o uso do kung-fu nas negociações sindicais.
Os trabalhadores de uma tinturaria têm de aguentar encarregados violentos, em meio a uma queda geral dos salários. Um pequeno vigarista, Chun Jen-chieh (Gordon Liu), se faz passar pelo célebre justiceiro San Te a fim de defender as reivindicações dos trabalhadores. Diante do fracasso de suas artimanhas, ele tenta se infiltrar no templo de Shaolin para ali aprender de fato o kung-fu. Descoberto pelo verdadeiro San Te (interpretado dessa vez por Chin Chu), ele é condenado a uma tarefa titânica: montar andaimes de bambu o ano inteiro. Sem perceber, desenvolve toda uma técnica muito pessoal, o “kung-fu do andaime”!
Desejando estender as possibilidades oferecidas pelas artes marciais, Liu Chia-liang trabalha com clichês “super-heroicos” do gênero. A mensagem desse Retorno à câmara 36 é clara: as técnicas do kung-fu são acessíveis a todos, com a condição de que se compreendam seus fundamentos teóricos. Como lhe ensinou o esperto Chun, dominando o uso do bambu e o equilíbrio para montar os andaimes, toda prática pressupõe um saber… e o saber é uma arma.
Além disso, ainda que o personagem de Gordon Liu pertença ao lumpemproletariado, preferindo viver de pequenos esquemas a se matar no trabalho, seus amigos operários o respeitam e chegam a apelar para seus talentos para tentar enganar o patrão – uma flagrante ilustração da necessária aliança dos diferentes estratos da classe trabalhadora… Não por acaso, o roteiro é novamente de Ni Kuang.
Em 1994, Liu Chia-liang dá novamente mostras de suas preocupações político-marciais no empolgante O mestre invencível 2 (Drunken Master 2/Jui Kuen 2),4 codirigido por seu autor principal, Jackie Chan. Ele interpreta o célebre Wong Fei-hung, especialista no “boxe do bêbado”, às voltas com um embaixador inglês desejoso de pilhar as riquezas artísticas chinesas em benefício do British Museum. Paralelamente, os operários de uma fundição vizinha sofrem as pressões do patronato anglo-chinês para trabalhar mais ganhando menos. E, quando ameaçam fazer greve, levam uma surra.
Quando se completa a cota de barras de ferro produzidas e prontas para a exportação (em caixas que disfarçam o patrimônio local), os patrões anunciam o fechamento da empresa e a demissão dos funcionários. Fei-hung e seus colegas decidem então partir para a ação: “Eu vou incitar os estudantes, e você, os trabalhadores!”, lança seu amigo que vende peixes. A manifestação degenera quando um policial saca sua arma ao ouvir um manifestante invocar o “direito dos povos a dispor deles mesmos e de sua história”. A partir daí, o uso astucioso de seus instrumentos de trabalho (o vendedor de serpentes joga seus répteis vivos nos soldados) e de seu particularismo cultural (o kung-fu) permite aos manifestantes entrar na fábrica. Ali se desenrola o sublime combate final entre um Fei-hung cheio de vontade de lutar e os colarinhos-brancos da empresa. O público não se enganou: O mestre invencível 2 foi um enorme sucesso, tendo os lucros revertidos para a associação dos dublês de Hong Kong.
O kung-fu muitas vezes desempenhou um papel de primeiro plano nas revoltas que marcaram a história da China, seja a dos Taiping (1850-1864) ou a dos Boxers (1899-1901). Mesmo recentemente, os jornais locais relatavam como aldeões venceram os bandidos de promotores expropriadores. Era lógico que o cinema de artes marciais, nascido em 1926 em Xangai, depois proibido a partir de 1931 durante várias décadas, refletisse esse estado. O espectador ocidental, habituado ao “realismo” quando se trata de abordar as questões sociais na tela, pode se ver desconcertado ou mesmo ceder à tentação de zombar desse material. Em contrapartida, pode-se lamentar que os filmes de Ken Loach ignorem o golpe de pé saltado, esse “gesto puro que separa o Bem do Mal e desvela a figura de uma justiça enfim inteligível”.5