A liberdade de expressão e a democracia
Diante dos recentes ataques contra museus, peças de teatro e palestras ocorridos no Brasil, o Le Monde Diplomatique Brasil entrevistou o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia da USP e ex-ministro da Educação (2015). Na pauta, a importância da liberdade de expressão e o combate ao clima de ódio instaurado no país
Le Monde Diplomatique Brasil – Qual é a importância da liberdade de expressão?
Renato Janine Ribeiro – Você tem algumas liberdades que são fundamentais. A de expressão é uma delas. Por que fundamentais? Porque elas fundam as outras. Se você não tiver liberdade de expressão, fica muito difícil ter liberdade de organização e liberdade de voto, dois pilares da democracia. Portanto, você precisa ter a possibilidade de dizer o que pensa, o que acha. Há outro aspecto da expressão, que é a liberdade de expressão científica. Se você não tiver possibilidade de discutir e até de rever posições que socialmente são muito importantes, é muito difícil o avanço da ciência. Desse modo, penso que são dois pontos fundamentais: um para a vida democrática, outro para o avanço científico.
Eu defendo a liberdade de expressão, mas não defendo a liberdade de propagar o ódio, entende? Ou o preconceito. Não penso que a liberdade de expressão seja ilimitada.
Qual é o limite?
É diferente se você está falando de ciência ou de opinião. No caso da ciência, o limite é aquilo que pode ser justificado cientificamente. Então não vou publicar numa revista científica um artigo criacionista, porque não há nenhuma base racional que o sustente. Ele só tem base na revelação divina e em algumas religiões. Agora, se uma pessoa tem uma fé religiosa que inclui o criacionismo, isso é outra coisa. É uma liberdade de expressão que ela pode ter.
E quais são as consequências da liberdade de expressão? O senhor mencionou a democracia. Como a ameaça à liberdade de expressão afeta a democracia?
Democracia é um regime no qual as pessoas decidem, em função dos valores que têm; aqui se expressa um princípio ético importante, que é a igualdade. Então, os votos do mais rico e do mais pobre são iguais; os votos do mais culto e do mais inculto são iguais. Por quê? Porque não se está discutindo conhecimento, e sim valores. Por exemplo, se você prefere um Estado forte ou um Estado fraco, são valores que você tem o direito de defender. São as grandes questões políticas e que mais ou menos distinguem direita e esquerda. A direita querendo mais o livre jogo do capital, a esquerda querendo um controle social sobre o capital. Querer uma coisa ou outra dessas é algo que, em última análise, é decisão sua. Ninguém pode impor uma posição, o que torna a democracia um regime muito insatisfatório. Não insatisfatório em si, mas muitas pessoas não ficam satisfeitas com os resultados porque elas acham que o outro lado votou errado. Por exemplo, a direita reclamou do voto no PT nas quatro eleições presidenciais que perdeu. A esquerda não gostou da vitória do Doria [prefeito de São Paulo]… e em cada caso houve a ideia de que as pessoas tinham votado errado. O derrotado achava que o outro lado tinha ganho porque manipulou a opinião pública ou porque as pessoas eram ignorantes, algo assim. Mas esse é um preço da democracia. Em certo momento, o respeito à opinião do outro é o que prevalece. O problema que existe aí é que essa liberdade de expressão de opiniões e o voto na democracia com base em valores trazem uma questão que é se os valores não são passíveis de discussão. Você discute ou não os valores? Isso é um ponto complicado. Eu tenho tendência a considerar que alguns dos princípios básicos dos direitos humanos são impositivos, não podem ser contestados – podem ser contestados retoricamente, mas não se pode negar, digamos, o direito das pessoas a um processo justo. Por outro lado, o que significa cada valor? Igualdade quer dizer o quê? Igualdade de direitos? Igualdade de bem? Igualdade de quê? Esse é um ponto de discussão forte. E aí a discussão é importante. Por outro lado, sobretudo em sociedades atrasadas politicamente, temos a contestação de direitos humanos básicos. Mesmo aqui no Brasil há uma intenção de voto significativa num candidato que é explicitamente contra os direitos humanos… E aí, como fica? Isso é um problema, eu não tenho resposta. A decisão da ministra Carmem Lúcia sobre a liberdade de atacar os direitos humanos no Enem é uma decisão que me parece absurda, porque ela autoriza o discurso antiético, e o Enem é um exame que verifica o que a pessoa aprendeu no Ensino Médio e antes dele. A pessoa aprendeu conhecimentos, mas aprendeu também valores. Então, se ela defende a execução de pessoas sem julgamento, isso pode ser valorizado positivamente? Não vejo como. Aí a liberdade de expressão encontra um limite. O limite dela são os direitos humanos.
De uma perspectiva histórica, o que a restauração, em termos, da liberdade de expressão no pós-ditadura militar trouxe de benefícios para a sociedade, para o país?
A liberdade de expressão foi sendo conquistada já durante a ditadura. Havia desde os órgãos de imprensa que burlavam a censura de alguma forma, como Veja, Estadão e Jornal da Tarde, que tiveram um papel muito importante no enfrentamento da ditadura, até pequenas edições, pequenas tiragens, e gradualmente a coisa foi crescendo… No governo Figueiredo já havia bastante liberdade de expressão. Não se tinha muita liberdade de escolha, mas liberdade de expressão se tinha bastante. Depois da ditadura isso aumentou e permitiu uma discussão maior da vida pública, permitiu expor mais mazelas e falhas, e, em última análise, um dos aspectos do que vivemos hoje é que um monte de podridões que eram ocultas no Brasil estão sendo expostas. E essas podridões vêm de tudo que é lado. Isso é chocante para muita gente, mas o aspecto positivo que pode sair da crise que estamos vivendo hoje é as pessoas lidarem mais com a realidade política e menos com a fantasia. Isso ainda não está visível no horizonte, mas é um aspecto positivo e tem a ver com a liberdade de expressão.
Quais são os principais entraves à liberdade de expressão atualmente? O Estado, a sociedade, o mercado, os indivíduos?
Eu diria que há dois grandes pontos. Primeiro que nossa mídia é muito concentrada. Televisão, rádio e jornais são negócios, e isso faz que outras opiniões sejam um tanto limitadas. Mas não é uma limitação excessiva. Mesmo tendo os grandes jornais com posições políticas determinadas, você lê na Folha e no Estadão notícias que são contrárias à posição política do veículo. Isso não é uma coisa tão forte quanto a esquerda diz, no caso dos jornais impressos. Televisão é mais complicado, porque há um monopólio muito grande da Globo. Mas eu diria que a grande limitação mesmo é que as redes sociais não deram o resultado que delas se esperava. Em vez de se ter nelas um espaço de discussão, de abertura democrática, temos um espaço de reiteração. As redes sociais fazem que você leia quem se parece com você, e não quem discorda de você. Por exemplo, se você é de esquerda, vai ler que fecharam a Farmácia Popular, o que é mentira, a Farmácia Popular continua existindo. Na verdade houve uma redução da Farmácia Popular, mas essa informação objetiva você dificilmente lerá numa rede social. Se é de direita, você vai provavelmente ler todo dia uma dose muito grande de ataques ao PT, independentemente de ataques a outros partidos, independentemente da defesa… Então, no momento atual, as redes sociais estão sendo negativas em termos de construção de um espaço público.
O que a sociedade perde com o cerceamento da liberdade de expressão?
Não sei muito quem tem interesse de cercear a liberdade de expressão. Vemos alguns episódios de algo proibido de ser publicado, mas não são aparentemente tão significativos nem numerosos. Por exemplo, o Estadão foi proibido há uns dez anos de fazer qualquer menção a um filho do José Sarney.1 Isso é horrível, é detestável, mas no conjunto geral me parece pouco. Não vejo exatamente esse interesse de cercear a liberdade de expressão. Mesmo o Supremo, até nas decisões das quais eu discordo, como a questão do Enem, seguiu a opinião favorável à liberdade de expressão. Foi esse o julgamento da Carmem Lúcia, a meu ver errado, mas no qual o bem superior que ela defendeu foi a liberdade de expressão.
E no caso dos protestos e abaixo-assinados pedindo o cancelamento das palestras da Judith Butler aqui no Brasil?
Isso foi muito ruim, tem muito a ver com ignorância, com clima de ódio. Agora, a bem da verdade, quando veio aquela blogueira cubana, Yoani Sánchez, houve também protesto contra ela e gente que tentou evitar que ela falasse. Eu não consigo ver diferença entre os dois casos. A Judith Butler é uma intelectual, a outra não, mas e daí? Eu não posso julgar. A liberdade de expressar opinião não pode estar subordinada ao nível intelectual da pessoa que está falando. Portanto, acho horrível, uma vergonha para o Brasil, mas isso tem muito mais a ver com o clima de ódio do que com setores específicos. Me chocou muito quando a Yoani Sánchez veio, a mobilização que houve para tentar impedi-la de falar. Tinha gente que dizia que a Yoani Sánchez era sustentada pelos Estados Unidos e tem gente agora dizendo que a Butler representa uma tentativa de destruir a família. Em vez de deixarem as pessoas se expressarem e discutir, vão muito além disso; eu acho horríveis os dois casos. Mas o problema aí é mais o clima de ódio do que o cerceamento. Por exemplo, hoje eu vi no Facebook a história de uma moça que estava na Rotisserie Bologna, na Rua Augusta, e um homem perguntou em quem ela iria votar em 2018; ela falou “Lula” e levou um soco na cara.2 Isso faz parte desse clima de ódio. E aí, sim, as pessoas ficam com medo de falar o que pensam. Isso afeta a liberdade de expressão, sim, de alguma forma. Clima de ódio dá nisso. E hoje o clima de ódio tem por vítima, sobretudo, a esquerda, mas não quer dizer que não haja recíproca também…
Como garantir e ampliar a liberdade de expressão?
Eu penso que a gente tem de voltar a dialogar no país. Está muito difícil… há uma parte que acha que os da esquerda são um bando de ladrões, não quer papo e quer a destruição da esquerda… [Por outro lado,] uma coisa é quem conspirou para tirar a presidenta; outra é quem apenas foi para a rua, foi enganado pelas propagandas, e eu vejo muita gente ainda dizendo: “Eu não perdoo, não perdoo”. Como vamos conseguir retomar um diálogo no país se não houver uma capacidade de olhar para a frente? Porque, no fundo, o que é importante da liberdade de expressão não é você dizer uma coisa e eu dizer o contrário e nós dois ficarmos repetindo a mesma coisa o tempo todo. O importante da liberdade de expressão é que ela permite às pessoas dialogar e melhorar o raciocínio na sociedade. Liberdade de expressão não é um fim em si, é um gigantesco meio, um meio fantástico para você ter avanços sociais, pelo diálogo. Um grande erro é fechar-se, dizer que não vai haver diálogo. Agora, isso é muito difícil, porque uma parte da discussão acaba sendo uma expressão de extremos, que não é discussão. Portanto, de alguma forma o Brasil vai ter de retomar a conversa. E, quanto mais qualificada a retomada, melhor. Qualificada eu quero dizer com argumentos. Por exemplo, o Nelson Barbosa, que foi ministro do Planejamento [2015] e da Fazenda [2015-2016] da Dilma, publicou um artigo na Folha dizendo que reformar a Previdência é necessário.3 Agora, quais são os parâmetros? Não são esses, mas a esquerda tem de dizer qual reforma da Previdência ela quer; e esse não é um discurso que a esquerda esteja tomando agora. A esquerda prefere dizer que é contra qualquer reforma da Previdência. Temos assuntos que vão ter de ser discutidos; é necessário abrir uma negociação no país, uma conversa. Antes até de negociação, tem de haver conversa, mas isso é muito difícil hoje.
*Luís Brasilino é editor do Le Monde Diplomatique Brasil.