Literatura infantil e democracia – Parte 3
Problemas contemporâneos na discussão hegemônica sobre o ensino de literatura e a formação de leitores literários pela via escolar
“Por que os reis são reis?
Os reis são reis porque eles dizem que são: mas isso somente enquanto as pessoas, por força ou por vontade, a eles obedecem. Quando as pessoas se dão conta de que os reis são homens iguais aos outros, e elas bastante fortes para botá-los para correr, proclama-se a república.”
(RODARI, Gianni. O livro dos porquês. Ilust. Giulia Orecchia. Trad. Michele Iacocca. Erechim: Edelbra, 2012, p. 45)
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Este texto dá sequência à discussão iniciada em Literatura infantil e democracia – Parte 1 e em Literatura infantil e democracia – Parte 2. A reunião das partes 1, 2 e 3 sistematiza uma das aulas ministradas em um curso de extensão oferecido na Universidade Federal do Espírito Santo, no primeiro semestre de 2018, por um conjunto de professores de diferentes áreas do conhecimento. O curso dedicou-se a pensar os rumos da democracia brasileira e latino-americana após os graves acontecimentos jurídicos, midiáticos, político-parlamentares de 2016, que culminaram com a destituição da presidenta eleita Dilma Rousseff e a assunção de seu vice, Michel Temer. A atividade extensionista em questão atendeu a uma demanda por parte da sociedade (de as universidades discutirem a conjuntura). Complementarmente, constituiu-se como um gesto solidário ao professor Luís Felipe Miguel, da Universidade de Brasília, que teve a oferta de uma disciplina optativa análoga questionada pelo então ministro da Educação, José Bezerra Mendonça Filho – atitude que pusera em xeque princípios constitucionais (de autonomia universitária e liberdade de cátedra). As reflexões das diferentes aulas do curso estão publicadas em GALVÃO, Ana Carolina; ZAIDAN, Junia; SALGUEIRO, Wilberth. Foi golpe! O Brasil de 2016 em análise. Campinas: Pontes, 2019. Confira nos links a seguir a Parte 1 e a Parte 2.
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Literatura, infância & educação: que sociedade temos, qual queremos?
Dando sequência às discussões realizadas na Parte 1 e na Parte 2, e considerando que tenha ficado claro não apenas por que eu defendo que a literatura infantil deve participar do processo democrático, mas também minha aposta na educação escolar como via privilegiada de democratização de acesso à literatura infantil (e, assim, ao processo de formação humana omnilateral), passo, neste terceira e última parte, à discussão sobre o que me parecem ser problemas contemporâneos na discussão hegemônica sobre o ensino de literatura e a formação de leitores literários pela via escolar.
Recordo que, quando fiz o doutorado, trabalhei em uma disciplina com cartas, memorandos e ofícios escritos por professores, diretores de escola e inspetores de ensino aos dirigentes de províncias, na primeira metade do século XIX. Isso produziu em mim uma aguda consciência de que os problemas da educação brasileira se repetem, de que nossa sensação nostálgica de um passado supostamente melhor é falsa. O insistente lamento pelo “baixo nível” dos alunos, pela crescente indisciplina, pelo desinteresse e pela falta de concentração; a inexistência de condições infraestruturais mínimas e a reiteração de que os salários e os planos de carreira são aviltantes; as acusações que os professores fazem entre si de “falta de formação adequada”; a ausência ou fragilidade de um sistema de bibliotecas com materiais interessantes em quantidade e qualidade adequada… tudo se repete enfadonhamente. Até o presente.
Que sociedade temos? Que sociedade queremos? Feliz ou infelizmente, não podemos inventar uma outra realidade a partir da qual iniciaremos nossas aulas de literatura. É com essas pessoas, essas condições materiais objetivas, esses valores, esses modos de relação indiciados pelos fatos recuperados acima que precisaremos (co)existir, (sobre)viver, preparando um mundo para os que vêm após.
A indagação sobre que sociedade temos e que sociedade queremos exige outras indagações articuladas: Como pretendemos fazer as travessias entre a sociedade que temos e a que queremos? De que sujeitos humanos precisaremos neste processo? Qual é o papel do professor e das escolas (e aqui, por comodidade, incluo em “escolas” também as universidades) na educação desses sujeitos? Pergunto pelas escolas porque são, desde a Modernidade, a meu ver, as únicas instituições disciplinares constituídas a partir do Estado burguês que guardam em seu cerne uma tensão contraditória constitutiva – e nisso se diferenciam, por exemplo, do hospital ou da prisão.
Ao mesmo tempo que têm forte papel de controle e docilização, as escolas são socialmente designadas para se incumbirem dos processos de ensino-aprendizagem e, assim, da transmissão crítica e devidamente contextualizada de conhecimentos, procedimentos e atitudes rudimentares, elementares ou avançados (conforme o nível escolar) nos diferentes campos do saber e das práticas humanas. Ou seja, as escolas são convocadas a confirmar em cada homem a sua humanidade, pela via da transformação qualitativa exercida sobre seu psiquismo, por meio da apropriação e objetivação dos conhecimentos, procedimentos e atitudes historicamente relevantes produzidos e transmitidos pelo conjunto dos homens e mulheres no processo histórico.
As escolas fazem isso satisfatoriamente? A resposta não é fácil. O mais óbvio e coerente com estatísticas e observação participante é responder que não. Mas cá estamos: muitos de nós nascidos em famílias pobres, com pais semiescolarizados, tendo vivido no campo escorchado pelo agrobusiness ou nas periferias urbanas violentadas cotidianamente, estudado em escolas públicas precárias, realizado nossos estudos pós-graduados com bolsas de pesquisa aviltantes e às vezes conciliando exaustivas jornadas com a leitura de centenas de páginas difíceis – com tudo isso, essa contradição dialética que é a escola conseguiu que, ao menos, saibamos que a solução para o país não é “armar a população e matar vagabundo” ou “reduzir direitos para preservar empregos” e, ao mesmo tempo, sejamos capazes de compreender (e, no caso dos professores de Literatura, ensinar a compreender) os textos e procedimentos literários que consideramos fundamentais.
Fetichismo na educação literária e na formação de leitores literários
Mobilizada pelas provocações filosóficas de Newton Duarte (2013), passo a abordar a fetichização na educação literária. O termo reporta a feitiço, a objeto produzido pelo homem ou pela natureza ao qual se atribuem poderes e se presta culto. Não à toa Ludwig Feuerbach, ao discutir fetichismo, entendeu que, no cristianismo tal como hegemônico, o deus cristão fora criado pelo homem à sua imagem e semelhança. Karl Marx, dando sequência, argumentou que a crítica à religião e seu modo de pensar e produzir o mundo não deveria ser o ponto de chegada, pois a grande questão seria perguntar por que os seres humanos precisam de deuses – ou seja, não seria o bastante combater as ilusões no plano das consciências, é imperioso compreender a realidade social que faz com que as pessoas precisem ser religiosas.
No momento de maior agudização de um modo de produção e vida que permite que, por exemplo, em 2018, tenha voltado a crescer neste país a mortalidade infantil por desnutrição e doenças simples de combater depois de 26 anos ininterruptos de declínio, as crescentes ondas de negação e combate ao pensamento elaborado passível de comunicação e debate amplo com direito ao contraditório – seja esse conhecimento científico, artístico ou filosófico – é uma evidência que não podemos ignorar. O conforto com que posições à direita e à esquerda negam a racionalidade (racionalidade é diferente de cientificismo caduco, por favor) e a possibilidade de participação no debate de quem esteja sinceramente interessado em formar posições bem informadas e esclarecidas, e assim defendem a cada vez mais ampla fragmentação solipsista (evidentemente, pouco efetiva na transformação das condições de vida) é um sintoma não do declínio de nossa sociedade, mas de sua máxima realização: a implosão.
Que têm as práticas de ensino de literatura a ver com isso? Os textos literários são produzidos, publicados e circulam em razão de necessidades dialeticamente individuais e sociais no processo histórico. Sejam necessidades da ordem artístico/estética, sejam necessidades expressivas, sejam necessidades reflexivas, sejam necessidades evasivas, lúdicas. Por isso, tanto o processo de criação quanto o processo de recepção têm como fundamento a comunicação intersubjetiva.
Para haver comunicação intersubjetiva, para além de uma linguagem comum, é necessário haver um corpo de conhecimentos, procedimentos e atitudes partilhado, a cada momento histórico: sejam os de ordem científica, sejam os de ordem procedimental, sejam os de ordem atitudinal – todos eles organizados pelo recurso a alguma forma de metalinguagem. Quem assegurará essa linguagem comum e esse corpo de conhecimentos, procedimentos e atitudes compartilhado? Não vejo outra resposta que não seja o ensino-aprendizagem de Literatura, não exclusivamente, mas principalmente pela escola.
É a transmissão desse corpo de conhecimentos, procedimentos e atitudes (corpo que, evidentemente, se transforma incessantemente) que a escola precisa legar a cada uma das pessoas e ao conjunto da sociedade no caso da Literatura. É a apropriação e objetivação desse repertório que propiciará a transformação qualitativa do psiquismo e, assim, permitirá que possamos, pela via educacional, com todas as suas idiossincrasias, educar os sujeitos humanos necessários à transformação da sociedade que temos em direção à sociedade que queremos.
A (so)negação, na escola, de conteúdos escolares imediatamente reconhecíveis, comunicáveis e objetiváveis (vejam que estou falando em objetivação e não em objetividade), o esvaziamento de um repertório de textos socialmente reconhecidos como clássicos (vejam que estou falando em clássicos, e não como canônicos) e a insistência na impossibilidade de negociação social de sentidos para os textos têm como consequências: a impossibilidade de reproduzir em cada ser humano singular a humanidade genérica, o esvaziamento de um campo de conhecimentos, procedimentos e atitudes humanas historicamente transmitidos e, enfim, a destruição de qualquer possibilidade democrática. A democracia necessita que saibamos produzir e negociar sentidos – os textos literários, com sua máxima plurissignificação, se lidos e discutidos intersubjetivamente com o propósito de debater posições enunciáveis e questionáveis, nos ensinam aquilo que é o fundamento do viver-com.
É preciso que nos perguntemos: A quem ou a que interessa que não haja um corpo de conhecimentos passível de organização, sistematização, transmissão/instrução, apropriação e objetivação no campo do conhecimento da Literatura? (E que, portanto, seja possível reduzir a formação do professor de literatura a um caldo de informações mal-ajambradas, insistindo em uma suposta formação pela e para a prática esvaziada de adensamento teórico, crítico e historiográfico?) A quem ou que interessa que a Literatura na escola seja reduzida a um simples momento de deleite, de lazer, de fruição gratuita – ou, noutra feita, ao reino dos equívocos e delírios individuais não como ponto de partida, mas como ponto de chegada? A quem ou a que interessa que os pobres deste país não tenham acesso ao que de mais elaborado a humanidade produziu em literatura – debatendo, questionando e transformando esses conhecimentos, procedimentos e atitudes como forma de preparação para uma transformação social mais ampla e de mais radicais proporções?
A negação à teoria literária (e sua transformação em conteúdo anódino), à crítica literária (e o horror à revisão bibliográfica criteriosa) e à historiografia literária (e sua identificação reducionista a uma sucessão de estilos de época, com o esvaziamento do dinamismo que lhe é inerente) e, assim, a redução do ensino de literatura à mera relação sujeito-texto (sem mediação consciente, deliberada, planejada e sistemática) prestam serviço à reinvenção contínua da roda (ou seja, à negação de que avançamos por superação dialética). Prestam, de minha perspectiva, serviço à perpetuação de uma situação em que os seres humanos não se entendem como participantes de um rico caudal de relações nas quais têm não apenas o direito mas o dever de se inserir ativamente para fazer as coisas não retrocederem – como estamos vendo em nossos dias, no Brasil e no mundo.
Ou seja, penso que a discussão sobre as práticas de ensino de literatura, no âmbito da comunidade acadêmica (e incluo aqui todos os professores de literatura deste país, sejam os que atuam na educação básica, sejam os que atuam no ensino superior) passa pela desfetichização do ensino de literatura. Por isso, retomo a discussão sobre fetichismo. Questiono o fetiche que se imiscui em posições hoje hegemônicas em nosso campo, que obliteram, desde minha perspectiva, a natureza daquilo que deveria ser a educação literária escolar e, assim, fragilizam a Literatura como campo do conhecimento e como disciplina escolar, esvaziando o trabalho do professor, com consequências nefastas para sua formação, sua carreira e sua prática.
Se não há o que ser ensinado, porque haveria aulas de Literatura? Se qualquer texto vale e se o estudante só precisa conhecer o seu mundo imediato, porque seria necessário haver bibliotecas e centros culturais de qualidade, diversificados, atualizados e com boa curadoria e mediação? Se o trabalho do professor não tem necessidade de escolher conteúdos a serem transmitidos, procedimentos didáticos a serem planejados e executados, aprendizagem a ser verificada, por que ainda se gastaria dinheiro público formando e remunerando pessoas para esse trabalho? Se aquilo que espontaneamente ou no senso-comum sabemos sobre a literatura é tão ou mais legítimo que o saber científico, filosófico e artístico acumulado pelas pesquisas e estudos mais avançados, por que se concederiam licenças e bolsas para a formação continuada dos profissionais da Educação?
Eu poderia elencar dezenas de fetiches em circulação sobre o ensino de literatura, que obliteram a inextrincável relação literatura & sociedade. Mas vou suspender por aqui. Como professora, vou propor uma tarefa: repensarmos os fetiches que têm lastreado nossos debates sobre as práticas de ensino de literatura, à luz das reflexões sobre a quem ou a que eles interessam. Que sociedade precisa que o ensino de literatura seja fetichizado – e, portanto, dada sua incapacidade de estabelecer uma compreensão vigorosa do real, fracasse? Recorro às lições do grande mestre Antonio Candido (2004): literatura desenvolve e confirma em nós nossa cota de humanidade – e o faz, também, e talvez privilegiadamente, por meio de seu ensino. Se não faz isso, coopera para que a barbárie se repita. E a gente nem vai mais entender a diferença entre tragédia e farsa.
Sugestões de obras infantis e(m) potencial democrático
Evidentemente, nenhuma obra literária (para crianças ou não), por si só, institui ou não uma possibilidade democrática – ou formará necessariamente sujeitos e subjetividades abertas ao outro, engajadas politicamente no diálogo e na tomada de decisões que favoreçam a vida-em-comum. Talvez, rigorosamente pensando, sejam mais favoráveis à democracia as obras que menos explicitamente a tematizem. Porém, o momento presente nos impõe certas urgências – e entre elas está encontrar material que nos ajude, ao menos, introduzir com as crianças conversas que possibilitem que, com elas, nos esforcemos para compreender uma realidade bastante difícil.
A instabilidade política (na correlação com os fatos econômicos, históricos e sociais), o avanço já sinalizado de pautas conservadoras, a ameaça ao ordenamento jurídico constitucional e às liberdades democráticas, a corrosão do pensamento elaborado e do espaço-tempo escolar como fundamental a seu compartilhamento e apropriação – enfim, todos esses elementos do contemporâneo reverberam também sobre as vidas das crianças, e elas têm o direito de ser respeitadas em suas dúvidas, angústias e necessidades (cognitivas, emocionais etc.).
Quando discutimos, anteriormente, em outro espaço, se políticas públicas para a educação literária são efetivamente públicas e efetivamente literárias, sistematizamos algumas ideias que talvez seja importante recuperar aqui, nessa discussão que agora relaciona a literatura infantil à democracia:
“Com essas decisões [sociais] (péssima distribuição de renda, maior peso da tributação sobre os mais pobres, destinação de grande parte dos recursos nacionais para manter o sistema de favorecimento dos super-ricos por meio do pagamento de juros e amortizações da dívida [pública], cortes robustos nas políticas sociais, ameaças ao direito constitucional à educação pública [de qualidade]), é possível dizer que temos políticas [democráticas] […] voltadas ao bem-comum e à ressalva ao direito de todos? […]
[…] É preciso ter clareza de que luta por políticas públicas de educação literária desarticulada da luta pela transformação das condições de vida em sentido mais amplo é, a rigor, vã. […] E isso […] só pode ser feito se indagarmos que sociedade temos e que sociedade queremos. […]
É preciso nos libertarmos da arrogância que supõe que as pessoas defendem pautas que fazem a vida humana indigna por serem “burras” ou “desinformadas”. É preciso entendermos que existem pessoas que se regozijam com o sofrimento alheio e que se deleitam com a diferença de classes e com a posição de privilégio ou prestígio que têm / que julgam ter / que sonham ter.
[…] É preciso nos libertarmos da noção simplória de que a educação e a literatura automaticamente, como causa-e-efeito, nos tornarão pessoas melhores, mais humanas e preocupadas com a vida-em-comum. Não necessariamente. […]” (DALVI, 2018, p. 33-34).
Por tudo isso, é importante compreender que as obras sugeridas como afins ao projeto de iniciar com as crianças conversas que possibilitem ajudá-las a pensar criticamente sua realidade são, já, um corte não necessariamente democrático, visto que nem todas as crianças (e nem todos os mediadores de literatura infantil) poderão efetivamente ter acesso às obras indicadas.
Outro aspecto necessário à nossa discussão aqui é que mesmo uma obra que, à primeira vista, não seja de ótima qualidade (textual, imagética, gráfica), com a adequada mediação, pode converter-se em importante material educativo (educativo, aqui, tem um sentido lato, e não um sentido estrito, escolar, pedagógico, moralizante ou – pior – dogmático). Isso, claro está, se ensejar uma compreensão alargada do real, se convocar à reflexão crítica, se pautar o questionamento sobre as injustiças e desigualdades em nossa vida-em-comum. E vice-versa: uma ótima obra do ponto de vista textual, imagético, gráfico, sem uma adequada mediação ou com uma mediação limitada ou castradora, pode converter-se em seu antípoda: pode dar lastro a um modo de leitura conservador, mistificador, reificante. Nesse sentido, não apenas as escolhas do que lemos, mas o nosso modo de ler é que talvez seja fundamental – do ponto de vista da formação para a democracia e da formação pela democracia.
Feitas tais considerações, listamos, no primeiro bloco abaixo, alguns aspectos aos quais deveríamos estar atentos ao selecionar obras de literatura infantil para ler com as crianças; e, na sequência, indicamos, para aqueles que estão iniciando na tarefa de forjar um repertório literário infantil, algumas rotas iniciais, recorrendo à experiência como leitores-criança, como professores, como pesquisadores, enfim, como interessados nas interrelações entre literatura infantil e democracia.
Para selecionar obras de literatura infantil para ler com crianças, é preciso antes de tudo respeitar toda e qualquer criança. Pressupor que toda criança é um ser com inteligência, emoção, sensibilidade, curiosidade. É necessário, também, acreditar que seja um direito social e cultural da criança se apropriar das obras de arte historicamente produzidas pela humanidade. Outra coisa fundamental é não supor que, por ser criança, aquele sujeito em formação necessariamente requeira facilidade, obviedade, imediaticidade. Muitas vezes é a aposta no difícil, no ousado, no imprevisto o que irá despertar o interesse e catalisar a aprendizagem e o desenvolvimento infantil.
Um outro ponto importante é estar ciente de que tudo aquilo que existe na sociedade irá aparecer na literatura elaborado, recriado ou cifrado de alguma maneira – e vice-versa. Muitas vezes, a criança só irá notar se aquele dado for algo que, na sua realidade concreta faz sentido ou tem relevância. Compete ao mediador de leitura mais experiente avaliar se deverá ou não chamar a atenção da criança para alguma questão à qual ela (a criança) espontaneamente não dedicou seu interesse.
Tudo isso que sinalizamos até aqui, obviamente, precisa estar em sintonia com o objetivo de ampliar o repertório cultural infantil, atentando a questões de gênero, região geográfica, classe social de origem, identificação étnico-racial, filiação político-ideológica etc. É preciso oferecer diferentes autores (do texto e das imagens/projeto gráfico); diferentes editoras (editoras grandes, médias, pequenas, artesanais; editoras do centro e da periferia do país); diferentes ilustrações (técnicas, traços, estilos, esquemas de cores variados); diferentes temáticas e estilos; diferentes temporalidades e localizações geográficas (quando há); diferentes abordagens e pontos de vista; diferentes formatos editoriais (livros pequenos, grandes, formatos padrão ou fora do padrão); diferentes acabamentos gráficos (papel fosco, brilhante, alta ou baixa gramatura, livros costurados, grampeados, colados, sanfonados…); diferentes universos sociais… Enfim: é preciso fugir aos esquemas prontos e óbvios, evitar tanto quanto possível as produções enlatadas / previsíveis – especialmente aquelas feitas em série para o sucesso fácil.
É preciso também explorar obras que sejam mais explícitas, outras que sejam mais alegóricas; algumas com linguagem mais poética, outras mais referencial; algumas com mais fácil paralelismo com a realidade imediata da criança, outras mais exigentes do ponto de vista da produção de sentidos. Torna-se extremamente enriquecedor, ainda, quando a criança pode tanto conhecer, por meio da ficção, uma realidade completamente diferente da sua, mas pode, também, ler a obra de um autor de sua cidade ou sua região.
Feitas essas advertências, na expectativa de indicar obras que mais explicitamente introduzam questões atinentes à vida democrática em sociedade, subdividimos dois blocos: o primeiro, com obras mais informativas (e, talvez, menos literárias/ficcionais); o segundo, com obras menos informativas e mais propriamente literárias/ficcionais. É preciso deixar bem claro que as escolhas foram feitas atendendo a uma mescla de gosto pessoal e de diferentes possibilidades formativas. E que não se espera, com essas sugestões, constituir um cânone, um rol de leituras obrigatórias – nada disso! É apenas uma sugestão momentânea para quem não tem muito ideia de por onde poderia começar. Uma primeira indicação é a coleção “Livros para o amanhã” (volumes 1 a 4), da editora Boitatá (selo infantil da Boitempo Editorial). Cada volume é temático e se dedica, respectivamente, a explicar às crianças o que seria(m) democracia, ditadura, classes sociais e homens e mulheres. São livros traduzidos do espanhol e ricamente ilustrados por quatro artistas diferentes.
Já a obra escrita por Rosemary McCarney e publicada no Brasil pela editora Melhoramentos sob o título de “Onde vou morar?: a vida de uma criança refugiada” compõe bem, com as demais já citadas, um painel de temas difíceis… as ideias de pátria, de guerra, de sem-teto são bastante pesadas e exigentes, mas fazem parte do corpo de conhecimentos e questões humanas que precisam constituir o repertório a ser apropriado pelas crianças, na tentativa de compreender e transformar o mundo em que existem com os outros.
Uma outra indicação é a adaptação da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, feita por Ruth Rocha e por Otavio Roth. Existem pelo menos duas diferentes edições: uma da Quinteto Editorial e uma da editora Salamandra. Na mesma linha, há uma série de obras que discutem direitos; uma delas, publicada pela editora Cortez, de autoria de Fabiano Piúba e Rafael Limaverde, é a que discute os direitos das crianças como leitores: “Toda criança tem o direito de ler o mundo”.
Três outras obras fundamentais – por apresentarem às crianças, respectivamente, a noção de dinheiro, alguns rudimentos de uma consistente teoria sobre o sistema econômico-social em que vivemos e, enfim, a biografia bastante humanizada do principal pensador responsável por essa teoria – são: “O deus dinheiro” (texto adaptado de Karl Marx e ilustrações de Maguma); “O capital para crianças” (texto de Joan Riera e ilustrações de Liliana Fortuny); e “Marx” (de Corinne Maier e Anne Simon). São obras publicadas pela editora Boitatá e pela editora Barricada.
Do ponto de vista da introdução do modo de pensar filosófico, uma boa sugestão é a obra “Uma janela para a filosofia”, de Maurício Abdalla e Mari Ines Piekas, publicada pela editora Paulus. Especificamente quanto às questões éticas, uma boa sugestão talvez seja a caixa “Mundo cruel: filosofia visual para crianças”, de Ellen Duthie e Daniela Mortagón, também publicada pela editora Boitatá.
Agora, adentrando às obras de perfil mais propriamente literário/ficcional, poderíamos indicar as seguintes:
a) “A mulher que matou os peixes” (de Clarice Lispector e vários diferentes ilustradores, em diferentes edições) – por relativizar a ideia direta e linear de crime e castigo, por abalar as certezas inerentes a uma lógica esquemática de mundo, por instigar nas crianças um olhar crítico e desconfiado.
b) “Bisa Bia, Bisa Bel” (de Ana Maria Machado e diferentes ilustradores, em diferentes edições) – por entrelaçar diferentes temporalidades, por discutir questões de gênero delicadas e profundas, por evidenciar as mudanças relacionadas ao papel das mulheres na construção da sociedade brasileira, por tangenciar os efeitos dos regimes autoritários sobre as vidas particulares das pessoas.
c) “Chapeuzinho amarelo” (de Chico Buarque e Ziraldo) – por trabalhar as questões do medo, por legar autoconfiança às crianças, por fazer crer que muitas vezes nossos limites diante das coisas que julgamos intransponíveis são uma questão de perspectiva, por se apropriar e reinventar uma história tradicional que tanto atrai e seduz as crianças (no caso, a história da Chapeuzinho Vermelho).
d) “Decifrando Ângelo” (de Luís Dill) – por problematizar a violência, o bullying e a indiferença social em relação ao sofrimento particular; por provocar à reflexão sobre o que acontece nas quatro paredes da escola; por demonstrar formalmente que uma história só está completa com muitas versões do mesmo fato.
e) “No cangote do saci: lendas do Brasil” (de Maria Amélia Dalvi e Daniel Kondo) – por possibilitarem às crianças, por meio da cultura popular de seu próprio país, recriada poeticamente, lidar com os grandes traumas da constituição de seu povo, em diferentes realidades geográficas.
f) “Onde tem bruxa tem fada…” (de Bartolomeu Campos de Queiroz) – por valorizar a capacidade de imaginar e fantasiar, por questionar o consumismo, por questionar as convenções impostas pelo progresso, por valorizar o amor e a liberdade.
g) “O reizinho mandão” (de Ruth Rocha e Walter Ono) – por discutir justiça, legalidade, organização popular, opressão, democracia, governo.
h) “Um sonho no caroço do abacate” (de Moacyr Scliar) – por abordar temas como amizade, preconceito, religião, cor da pele, migração, intolerância.
*Maria Amélia Dalvi, doutora em Educação com estágio pós-doutoral em Letras e Linguística, é professora na Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do grupo de pesquisa Literatura & Educação (www.literaturaeeducacao.ufes.br). E-mail: [email protected] ou [email protected].
Referências bibliográficas
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: _______. Vários escritos. 4ed. São Paulo: Duas Cidades; Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004, p.169-191.
DALVI, Maria Amélia. Políticas públicas para educação literária: nem públicas, nem literárias? In: BRANDILEONE, Ana Paula Franco Nobile; OLIVEIRA, Vanderléia da Silva. Literatura na escola: contextos e práticas em sala de aula. Campinas: Pontes, 2018, p.23-38.
DUARTE, Newton. Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas: Autores Associados, 2016.