Livro ficcionaliza a vida de Cézanne para colorir uma realidade desastrosa com beleza
Em seu primeiro romance publicado no Brasil, ‘O primeiro sonho do mundo’, a escritora francesa Anne Sibran coloca o pintor e a natureza em relação de horizontalidade inspirada em suas vivências entre povos originários na Amazônia
“Justamente porque as catástrofes se multiplicam, porque a feiura se espalha, que é imperativo falar sobre a beleza,” conta a escritora Anne Sibran ao Le Monde Diplomatique Brasil. Ela acaba de lançar, pela Relicário Edições, seu primeiro título publicado no Brasil, O primeiro sonho do mundo. A obra tem uma premissa curiosa: narra o encontro ficcional entre o pintor impressionista Paul Cézanne, o oftalmologista Barthélemy Racine e sua parceira, Kitsidano, uma jovem indígena.
Formada em filosofia e etnologia, a autora fez carreira na literatura para jovens. Hoje, vive entre a França e o Equador, onde trabalha com cientistas na conscientização sobre as ameaças à Amazônia e às pessoas que a habitam. Sua trajetória se revela na forma de seu novo romance, que explora em linguagem doce, quase infantil, as interseções entre a arte e a ciência. O livro nasce na Amazônia equatorial, onde, ela conta, “descobri a fonte da minha emoção e da minha gratidão por Cézanne”. Ali, ela se deparou com uma realidade muito mais dura da que conhecia na França, face ao “desaparecimento dos ecossistemas, a aculturação e o assassinato dos povos originários”.
Escrever um romance sobre a importância do olhar e da beleza, para a autora, foi uma forma de reacender a linguagem e não se deixar fascinar pelo desastre. O inusitado O primeiro sonho do mundo baseia-se em uma história que se passa na França do século XIX, com personagens conhecidos como Émile Zola e Camille Pissarro passeando por suas páginas, para fazer o leitor refletir sobre como visões da alteridade, sobretudo dos povos originários, podem ser a chave para a salvação do desastre contemporâneo: “é no fio da beleza que a beleza se defende, mesmo que esse fio esteja esticado entre dois abismos.” Confira a entrevista completa:

Como nasceu o romance?
Há dois nascimentos para este romance. Dois momentos de escrita. Primeiro, a ideia do romance me veio há mais de vinte anos, do encontro entre uma frase de Paul Cézanne: “Eu gostaria de reencontrar as sensações que temos ao nascer” e as pesquisas conduzidas por um oftalmologista (na mesma época) que opera cegos de nascença e que se questiona sobre a primeira visão. Os resultados de suas pesquisas, a experiência dos “jovens videntes”, são tão próximos da experiência do pintor que vi ali o espaço de um romance. Os dois homens eram contemporâneos, e eu quis que eles se encontrassem neste livro em torno da questão da beleza, que está no centro dessas experiências.
Comecei o romance, depois o interrompi. Foi na Amazônia, anos depois, quando fui profundamente afetada pelo desmatamento, pela feiura da extração de petróleo, da qual fui testemunha, que decidi retomar o romance. A questão da beleza, da beleza do vivo, central neste romance, foi reativada pelo que vivi no Yasuni, no Equador. Escrever este romance é uma maneira de não me deixar ser fascinada pelo desastre. E de levar, durante o tempo de um livro, da forma mais sincera possível, a questão da beleza, para reacender minha linguagem, limpá-la do que vi, a fim de poder mergulhar novamente na escrita sobre a floresta, com ainda mais força.
Por que Cézanne, entre tantos artistas?
Cézanne me comove desde sempre. Ele também faz parte desses primeiros pintores livres que decidiram abandonar a luz artificial dos ateliês para ir aprender com o vivo, ao ar livre: dentro do cenário, junto às árvores, nas florestas. Pintores como Pissarro, que se colocam “na escola do vivo”. Isso corresponde também à época em que o desastre ecológico que conhecemos hoje começava a se formar: e já, naquele momento, o vivo estava sendo cada vez mais coisificado, com a aceleração da extração. É o período da “Corrida do Ouro”. Ao lado dessa frenesi do capitalismo nascente, Cézanne continua infalivelmente a comparecer, todas as manhãs, ao encontro com a beleza, nas colinas de Aix en Provence.
Como foi o processo de escrita do romance? Em que medida ele se baseia na realidade?
Tudo o que eu relato é historicamente correto. Ou seja, verossímil e fundamentado. Cézanne sofria de problemas de visão. Várias vezes, em suas cartas, ele menciona o medo de perder a visão. Trabalho neste romance há mais de vinte anos. Como disse, o impulso veio antes da minha partida para o Equador, desse paralelo tão fascinante para mim entre o pintor e o médico. Mas, após alguns capítulos em Paris, ao lado do médico, não conseguia escrever sobre Cézanne, que tanto me intimidava. Eu havia acumulado meticulosamente todos os conhecimentos históricos necessários para animar a trama do relato, dar-lhe corpo e cor. Mas precisei esperar atravessar o mundo para escrever o restante. Um pouco como o princípio das eclusas: esperar que a vida preenchesse o fluxo de narração, a audácia que me faltava. Foi na Amazônia que descobri a fonte da minha emoção e da minha gratidão por Cézanne, e despertei a força de compromisso que me faltava para o livro. A partir daí, o romance pôde ser escrito até o fim.

Fora Cézanne, o livro é composto por mais dois grandes personagens. O que as visões de mundo deles têm a nos ensinar hoje, no século XXI?
Sim, há também Barthélemy Racine e sua esposa Kitsidano, uma jovem indígena Pomo. O médico, fascinado pelas capacidades do olho, essa parte racionalista, e a jovem cega de nascença, que possui toda a sabedoria e a visão interior dos povos originários. Cada personagem do romance tem uma visão singular do mundo: o artista, a visionária cega, o racionalista; eles também representam partes de nós mesmos. Eu queria que a questão da beleza fosse sustentada, tecida por essas três vozes.
Você mencionou que estava na Amazônia quando começou a escrever o livro. O que a pintura de Cézanne te diz sobre a natureza e as florestas daqui, da América do Sul?
O que descobri sobre Cézanne, ao encontrar os povos originários da Amazônia Equatoriana, é o quanto ele se parecia com eles. Compreendi Cézanne junto aos Sacha Runa do Equador, ou aos Waoranis. Cézanne é um pintor animista. Ele desaparece naquilo que pinta. É impossível, ao olhar uma tela de Cézanne, saber de onde vem o ponto de vista do homem. Onde está colocado o cavalete. Tudo está no mesmo plano: a árvore, a colina, o bosque, as rochas. Tudo é singularmente vivo. Aliás, Cézanne dizia: “eu não pinto uma árvore, pinto essa árvore.” Essa relação com a natureza, em que o pintor se coloca em uma perfeita horizontalidade, tem muito a ver com os povos originários. Seus contemporâneos também contavam que o pintor conversava com as árvores, com as pedras, com tudo o que compartilhava seus dias aos pés da montanha de Sainte-Victoire, que era sua grande iniciadora, sua grande testemunha.
Por que falar da beleza enquanto catástrofes assolam populações inteiras, como é a realidade de alguns povos tradicionais da Amazônia, por exemplo?
Justamente porque as catástrofes se multiplicam, porque a feiura se espalha, que é imperativo falar sobre a beleza. Um não existe sem o outro. Não se trata de ignorar o que está acontecendo – a extinção das espécies, o desaparecimento dos ecossistemas, a aculturação e o assassinato dos povos originários. Mas me parece importante manter de forma inflexível esse encontro, essas ocasiões com a beleza, tudo o que nos coloca nessa horizontalidade em que entramos no esquecimento de nós mesmos, nesse abandono que nos vivifica e nos fecunda. Quando nos colocamos, para simplificar, do lado da vida.
Julien Gracq fala dos escritores do ressentimento e dos escritores do consentimento. É no impulso das forças vitais que surge a sensibilização para a importância das florestas e daqueles que as habitam. É em nome do que eles são, de sua cultura, de sua maneira de tecer o conhecimento entre as árvores, que podemos entender a importância de deixá-los em paz, deixar as árvores envelhecerem, proteger o canto que elas abrigam do barulho e das profanações. É no fio da beleza que a beleza se defende, mesmo que esse fio esteja esticado entre dois abismos.
Por que se voltar a esse “primeiro sonho”?
Porque ele é o coração vivo da semente, essa fulgurante primeira que nos inocula desde o nosso primeiro sopro, na abertura de nossas pálpebras, esse impacto de cores, essa irrupção da beleza. O primeiro sonho é esse líquido amniótico do mundo que banha o olhar dos recém-nascidos e de certos pintores, que também se oferece a cada surgimento, a cada encontro numa clareira, em meio a uma multidão, no coração de uma floresta primordial: a cada irrupção da beleza.
Porque é belo aprender, pelo testemunho daqueles que veem pela primeira vez (os operados de catarata congênita), que o mundo se revela primeiro, no primeiro olhar, em sua infinita beleza.
Carolina Azevedo é parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.