A luta do pai de Julian Assange pela liberdade do filho
John Shipton é protagonista em “Ithaka: A Luta de Assange”, novo documentário sobre o jornalista e sua família pela liberdade da imprensa
Em 11 de abril de 2019, Julian Assange foi algemado e arrastado para fora da embaixada do Equador em Londres em direção a um veículo blindado da Polícia Metropolitana. A imagem que rodou os noticiários é a de um homem desgastado por sete anos de isolamento, barba longa e cabelos brancos, corpo pesado que força em direção ao chão para se livrar dos quatro policiais que o seguram. Aquele momento inaugurava mais um capítulo na história do WikiLeaks e da luta de jornalistas contra uma decisão que poderia minar a liberdade de expressão e de imprensa mundialmente. A cena também abre o documentário que chega aos cinemas nesta semana, “Ithaka: A Luta de Assange”, dirigido por Ben Lawrence e protagonizado por John Shipton, pai de Assange.
Desde o lançamento do filme, em 2021, Shipton roda o mundo em busca de apoio à causa do filho. No Brasil, participou de coletivas de imprensa e ainda pretende encontrar-se com líderes de organizações como o Mercosul e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, ele conta que “gostaria de ver essas organizações adotarem o princípio de que a liberdade de Julian Assange é a liberdade deles mesmos.” A maioria dos líderes de países da América Latina já apoiam a causa, inclusive o presidente Lula, que escreveu nas redes sociais em junho deste ano: “Sua prisão vai contra a defesa da democracia e da liberdade de imprensa. É importante que todos nos mobilizemos em sua defesa.”

O apoio, no entanto, não parece ser o bastante, dado que os três últimos presidentes americanos se recusam a interromper o processo que é movido contra o jornalista, que é acusado pelo Estado americano sob a Lei de Espionagem, criada no contexto da Primeira Guerra Mundial com o intuito de impossibilitar que informações secretas sejam vazadas para países inimigos. Desde a década de 1970, no entanto, a lei tem sido reinterpretada por tribunais, que passam a empregá-la para incriminar qualquer um que compartilha informações classificadas, o que incrimina o trabalho de todo e qualquer jornalista investigativo no mundo.
A Lei de Espionagem contra a liberdade de expressão
A lei foi usada contra o jornalismo pela primeira vez em junho de 1971, quando o New York Times começou a publicar trechos dos Pentagon Papers – documento de 7 mil páginas que expunha as controversas decisões dos Estados Unidos sobre a Guerra do Vietnã. Furioso com a publicação da história real do conflito, o governo de Nixon ordenou que o jornal parasse de publicar os documentos. Quando o jornal se recusou, o Departamento de Justiça argumentou em um tribunal federal que a publicação do relatório classificado violava a Lei de Espionagem e pediu uma liminar que proibisse o jornal de publicar mais partes do relatório. Foi a primeira vez que o governo dos Estados Unidos tentou censurar um jornal em um tribunal federal.
As páginas foram vazadas para o jornal por Daniel Ellsberg, analista que participou da elaboração do relatório vazado. Ellsberg – que foi julgado por espionagem e quase enfrentou sentença de prisão de 115 anos – aparece rapidamente no documentário de Shipton, defendendo o direito de denunciantes e jornalistas como Chelsea Manning, Julian Assange e Edward Snowden. Em entrevista ao The Guardian em junho de 2021, aos 90 anos de idade, Ellsberg analisa: “os denunciantes têm muito menos proteção hoje. [Presidente Barack] Obama usou a lei oito ou nove vezes em dois mandatos. Trump levantou oito casos em um só mandato. Portanto, as fontes correm um risco muito maior de serem processadas do que eram antes de mim, e mesmo nos 30 anos que vieram depois do meu caso.”
De fato, foi a partir do governo de Obama que o Departamento de Justiça começou a usar a Lei de Espionagem de forma agressiva contra denunciantes que vazam informações para jornalistas, contrariando o objetivo inicial da lei, que previa o vazamento para países inimigos, e não vazamentos com o objetivo de fornecer a cidadãos informações de interesse público. Shipton entende que, desde então, “os Estados Unidos estabeleceram uma ordem, fundada na compreensão do momento unipolar no domínio da política mundial e da geopolítica. Como consequência disso, eles vêm estendendo de maneira arbitrária suas leis extraterritorialmente, a fim de intimidar e oprimir jornalistas mundialmente.”
Assange nas mãos de três presidentes
Um dos primeiros grandes alvos dessa ação de intimidação foi Chelsea Manning, analista de inteligência do Exército no Iraque acusada de fornecer arquivos classificados para o WikiLeaks em 2010. Os arquivos incluiam o vídeo “Assassinato Colateral” – que mostrava um helicóptero dos EUA disparando contra jornalistas da Reuters e civis no Iraque –, os registros da Guerra no Afeganistão e da Guerra no Iraque, os cabos diplomáticos do Departamento de Estado e os arquivos da Baía de Guantánamo. É por essa mesma operação que Assange continua encarcerado na prisão de segurança máxima de Belmarsh, na Inglaterra.
Considerada culpada em agosto de 2013 e condenada a 35 anos de prisão – de longe a sentença mais longa já dada a um denunciante –, Manning recebeu indulto presidencial ao final do mandato de Obama e foi libertada da prisão em maio de 2017.
A campanha pela liberdade de Assange se aproxima do fim do quarto mandato presidencial nos Estados Unidos sem destino similar ao de Manning. À esquerda e à direita, presidentes ignoram o lobby da família do jornalista e continuam infringindo a Assange o que Nils Melzer, especialista em tortura da ONU, chamou de “assassinato em câmera-lenta”.
No mesmo momento em que condenou Manning, o Departamento de Justiça do governo Obama determinou que não poderia acusar criminalmente Assange pela publicação dos documentos, porque não havia diferença entre aquilo que o WikiLeaks fazia e o que o New York Times ou qualquer outro veículo de mídia faz, protegidos pela Constituição dos Estados Unidos, que garante a liberdade de imprensa e o sigilo da fonte. Sem provas concretas, o governo continuou tentando incriminá-lo, passando os subsequentes oito anos sem ingressar com ação penal contra Assange, que ficaria escondido na embaixada do Equador em Londres durante todo esse período.
Sem o induto de Obama, Assange virou alvo do Departamento de Justiça de Trump, que dedicou os dois primeiros anos de mandato em esforço para coagir o Equador – então liderado pelo novo presidente Lenín Moreno – a suspender o asilo diplomático que o país havia concedido a Assange em 2012. Em abril de 2019, o governo Trump finalmente envia o pedido de extradição que foi usado pela polícia do Reino Unido para prender Assange assim que o Equador suspendeu oficialmente seu asilo diplomático.
Apesar do lobby de John Shipton e o resto da equipe jurídica de Assange pelo perdão presidencial ao fim do governo Trump, o presidente – que disse “amar o WikiLeaks” durante sua campanha, em 2016 – não fez esforços para retirar o jornalista da prisão de segurança máxima na Inglaterra. Como consequência, o governo Biden continua exigindo a extradição de Assange para os Estados Unidos, onde ele poderá enfrentar sentença de até 135 anos de cadeia.
Brigando contra extradição
Com o risco de extradição cada vez mais próximo, a família de Assange procura formas alternativas de pressionar o governo estadunidense a retirar as acusações. A figura de Assange, no entanto, se tornou progressivamente impopular na esquerda política e no partido Democrata desde 2016, quando o WikiLeaks divulgou e-mails da conta de John Podesta, chefe de campanha da democrata Hillary Clinton. O vazamento foi um dos grandes motivos para a virada nas eleições, que resultaram na chegada de Trump à presidência.
A mídia tradicional, que se beneficiou do vazamento de 2011 sobre crimes de guerra no Afeganistão e Iraque e defendeu o direito de Assange em transmitir aquelas informações, em grande parte também deixou de apoiar a sua causa de forma mais efusiva. Como lembra Shipton em coletiva de imprensa realizada na cidade de São Paulo no último dia 28, o próprio presidente Lula já questionou o silêncio da imprensa e sua relutância em apoiar a causa de Assange.
Em resposta desesperada, no entanto, a família volta seus esforços para a direita, em virada que pouco condiz com os intuitos originais do WikiLeaks. Além do lobby pelo perdão de Trump retratado no final do documentário, Shipton muitas vezes cita o ex-presidente como alguém em que ele pode se apoiar para conseguir a liberdade do filho: “Eu não quero dizer nada de ruim sobre Donald Trump, as pessoas já fazem isso o suficiente. […] No entanto, seu filho, que é considerado um porta-voz para certos aspectos da campanha de Trump, diz que seu pai olhará com simpatia para Julian Assange.”
Quando questionado sobre a forma como os seus esforços têm se voltado para defender pessoas como Trump e Tucker Carlson – jornalista de extrema-direita cujas falas são recheadas de teorias da conspiração, misoginia e racismo, a quem Shipton repetidamente faz referência enquanto exemplo de mídia alternativa – o pai de Assange disse que eles são defensores exemplares da Primeira Emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão.
O ex-presidente, no entanto, é um dos maiores responsáveis por ataques a jornalistas na história recente dos Estados Unidos. Trump habitualmente atacava a mídia em comícios e no Twitter, chamando a imprensa de “fake news”, “inimiga do povo”, “desonesta”, “corrupta”, “repórteres de baixo nível”, “pessoas ruins”, “escória humana” e “algumas das piores pessoas que eu já conheci”. Como Trump disse a Leslie Stahl da CBS News logo após ser eleito presidente em 2016, ele estava tentando destruir a credibilidade das reportagens da imprensa sobre ele.
Segundo levantamento do Comitê de proteção aos jornalistas, compilado no relatório “The Trump Administration and the Media”, além das milhares de declarações falsas feitas por Trump, sua promoção de teorias da conspiração e seus ataques à credibilidade da mídia terem minado perigosamente a verdade e o trabalho de jornalistas, ataques mais diretos colocaram em risco a imprensa nacional. Durante seu mandato, Trump pediu boicotes a organizações de notícias e mudanças nas leis de difamação para punir a imprensa; processou o New York Times, o Washington Post e a CNN por difamação após publicarem opiniões de colunistas e colaboradores; tentou revogar as credenciais de imprensa da Casa Branca de jornalistas cujas perguntas e reportagens ele não gostou; e ainda incentivou a interferência do governo federal nos negócios dos proprietários da CNN e do Washington Post.
Portanto, não há político mais provável a prejudicá-lo do que o republicano, que, fora da Casa Branca, continua falando sobre jogar jornalistas na cadeia – após jornalistas terem publicado um rascunho vazado de uma opinião que mostrava que a Suprema Corte estava prestes a reverter o caso Roe v. Wade, que garantia o direito constitucional federal ao aborto, Trump publicou em suas redes sociais: “Vá até o repórter e pergunte a ele/quem foi [que vazou a informação]. Se não obtiver a resposta, coloque quem quer que seja na prisão até que a resposta seja dada. Você pode adicionar o editor e o editor-chefe à lista.”.
Ataques à imprensa e outros reflexos do processo contra Assange
Ao contar que viu o filho por último em outubro do ano passado e só o verá novamente no próximo outubro, Shipton relata que o estado mental e físico de Assange após 13 anos de encarceramento é muito preocupante, citando a frase de Nils Melzer: “A tortura é uma ferramenta usada para enviar um aviso a outros. Ela é mais eficaz quando é infligida em público.”
O atual momento político dos Estados Unidos e do mundo é preocupante para a liberdade de Assange: presidentes e candidatos dos dois lados do espectro político sucessivamente ignoram ou desafiam o caso do jornalista, o que ameaça o futuro do trabalho de jornalistas, que, por sua vez, não vêm dando a importância devida ao caso. A personalidade controversa de Assange tem minado apoio popular a ele, mas é importante atentar às implicações práticas que seu caso traz à prática jornalística mundialmente.
Shipton conclui a conversa com jornalistas apontando que “nos últimos 14 anos, vimos o cenário midiático espelhar a qualidade e o estilo do WikiLeaks e de Julian Assange.” De fato, sua figura foi central para determinar a forma como descobrimos segredos de Estado e condutas ilegais da maior “democracia” do mundo. Desde 2006, a organização publicou mais de 10 milhões de documentos expondo crimes de guerra, tortura, acidentes nucleares, violência policial e outros crimes e casos de corrupção.
No entanto, caso seja extraditado e julgado culpado sob a Lei da Espionagem, o precedente aberto incriminaria o trabalho de repórteres dos veículos de notícias mais tradicionais do mundo. É para isso que Shipton tenta chamar atenção em “Ithaka”, com esperança de que sua mensagem reverbere, antes que seja tarde demais. Como argumenta Slavoj Žižek em artigo traduzido pela Revista piauí em setembro de 2013, “precisamos de uma rede internacional que organize a proteção daqueles que expõem o controle e dissemine as suas mensagens. Eles são nossos heróis porque provam que, se os ocupantes do poder fazem o que fazem, nós também podemos revidar e deixá-los em pânico.”
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.