Lutas por justiça alimentar no Brasil
Conheça experiências de ativismo alimentar que têm construído e lutado por justiça alimentar no Brasil e são protagonizadas por setores populares da sociedade civil
No Brasil, o tema da alimentação ilustra uma das maiores mazelas do país: a desigualdade. Em 2020, enquanto o agronegócio brasileiro teve expansão recorde, milhões de pessoas no país passavam fome. De um lado, o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio teve uma expansão de 24,31% em 2020, de acordo com dados da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea). Do outro lado, 59,4% dos domicílios brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar entre agosto e dezembro de 2020. Insegurança alimentar é quando há redução, preocupação ou incerteza quanto ao acesso regular e permanente aos alimentos, em quantidade e qualidade adequadas. Os dados são do relatório “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil”, resultado de estudo coordenado por pesquisadores(as) do Instituto de Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Freie Universität Berlin (FU Berlin), em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade de Brasília.
As desigualdades alimentares[1] são mais uma expressão das iniquidades que atingem o nono país mais desigual do mundo. Embora a campanha de entidades de representação do agronegócio tente convencer a população de que o “Agro é Pop” e alimenta brasileiros e brasileiras, grande parte da sua produção é destinada ao comércio externo e à produção de combustíveis e ração para animais.
Outro setor que propagandeia a ideia de alimentar a população é o da indústria alimentícia. São empresas que concentram a produção de alimentos ultraprocessados, definidos pelo Guia Alimentar para a População Brasileira como formulações industriais à base de ingredientes extraídos ou derivados de alimentos ou sintetizados em laboratório. São exemplos a margarina, molhos prontos, macarrão instantâneo. O poder político e econômico deste setor tem encontrado meios de deixar a população distante da informação sobre os riscos do consumo destes produtos, que incluem uma série de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes, hipertensão, câncer e obesidade.
O atual governo federal, por sua vez, não tem assegurado o direito constitucional da população à alimentação adequada. Medidas econômicas que não garantem a valorização do salário mínimo acima da inflação, desemprego, enfraquecimento de políticas sociais e de apoio à agricultura familiar estão entre os fatores que levaram ao crescimento da fome no país a patamares do começo do século.
Resistências
Apesar do lobby do agronegócio, das pressões da indústria de alimentos, do desmonte de políticas públicas promovido pelo governo federal, há resistência. Uma resistência que ocorre por meio de diversas práticas que têm formas variadas, ocorre no cotidiano, lideradas por múltiplos sujeitos políticos e que vem transformando e pode mudar ainda mais o modo como lidamos com os alimentos e nossa alimentação; que resiste ao modelo agroalimentar hegemonizado pelo agronegócio e pela indústria de alimentos; que combate a destruição e esvaziamento de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional do atual governo; que tem relações mais sustentáveis com o meio ambiente. É sobre os que lutam por alimentação mais justa, saudável e sustentável que eu quero falar.
Com este texto, convido-os(as) a conhecer uma série de experiências contemporâneas que tem construído e lutado por justiça alimentar no Brasil. Ou, para utilizar um termo empregado por pesquisadoras como Elaine de Azevedo e Fátima Portilho, experiências de “ativismo alimentar”. Trata-se de uma lista não exaustiva de práticas protagonizadas principalmente por setores populares da sociedade civil. Ainda que apresentadas de forma estanques, muitas delas se sobrepõem e estão articuladas.
A agricultura familiar e camponesa é um dos principais meios pelos quais se produz alimentos no Brasil. É caracterizada, principalmente, por ocupar pequenas extensões de terras e utilizar predominantemente mão de obra familiar. Reúne uma diversidade de atores, tais como trabalhadores(as) rurais, comunidades indígenas, quilombolas e pescadores(as). Há no país uma série de organizações que representam e defendem o interesse desta categoria, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf-Brasil) e os diversos movimentos reunidos em torno da Via Campesina Brasil. São movimentos que incluem em suas agendas e lutas políticas relacionadas à alimentação, entre as quais o direito à alimentação adequada, à soberania alimentar e à comida de verdade, que é entendida como o alimento que envolve diversidade produtiva e cultural, saudável, produzido sem transgênicos e agrotóxicos, por meio de relações justas com pessoas e a natureza.
Sem feminismo não há agroecologia
A produção de base agroecológica está espalhada por todo o país e se caracteriza por buscar “otimizar a integração entre capacidade produtiva, uso e conservação da biodiversidade e dos demais recursos naturais, equilíbrio ecológico, eficiência econômica e justiça social”. Neste sentido, pode-se dizer que a agroecologia é um projeto político que se opõe a um modelo de produção que destrói o meio ambiente, faz elevado uso de agrotóxicos e sementes transgênicas e é permeada por relações de injustiça socioambiental. É bem documentado por diversas pesquisadoras, como Emma Siliprandi, que as mulheres têm sido uma das principais protagonistas das experiências agroecológicas no Brasil. Relevância que se traduz também na mobilização política do movimento agroecológico, que chegou a cunhar o slogan “sem feminismo não há agroecologia”. Com isso, as ativistas buscam ressaltar a importância da igualdade de gênero nas relações sociais no cotidiano das experiências agroecológicas. O movimento agroecológico no Brasil tem na rede Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) uma das suas principais organizações. A agricultura familiar e camponesa pode ser de base agroecológica. Inclusive, as organizações de representação da agricultura familiar integram redes de agroecologia e tem incentivado a transição agroecológica nas suas bases.
Quando falamos em produção de alimentos, provavelmente a imagem mais comum em nossa mente é a de um sítio ou fazenda no interior do país. Contudo, a produção de comida também acontece nas cidades e não só tem contribuído para o abastecimento urbano como também tem sido um meio importante na sustentabilidade das cidades. Entre os benefícios da chamada agricultura urbana e periurbana pode-se destacar: suas áreas verdes contribuem para o meio ambiente; para a segurança alimentar; e a produção nas cidades para o abastecimento local reduz a necessidade de deslocamento dos produtos, diminuindo o consumo de energia necessário para distribuir os produtos – por sua vez, reduz os impactos ambientais. Além disso, muitas iniciativas de agricultura urbana também debatem paralelamente outras questões de justiça social nas cidades, como a mobilidade urbana e espaços de sociabilidade.
A agricultura urbana e periurbana é heterogênea, possui uma diversidade de formas e é desenvolvida por uma vários atores. Por isso, não é direta a relação entre esta prática e a justiça socioambiental, embora diversas iniciativas possam ser classificadas como tais, como muitas hortas urbanas e comunitárias e quintais produtivos. Um levantamento do Instituto Escolhas, feito em 2020, mostra que a agricultura urbana e periurbana praticada na região metropolitana do maior aglomerado urbano da América Latina tem o potencial de abastecer com legumes e verduras 20 milhões de pessoas anualmente. Desde 2014, o Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU) vem atuando na organização e promoção destas inciativas. Diversas destas inciativas têm por base a agroecologia.
Doação de alimentos
A doação de alimentos in natura ou preparados, principalmente em forma de marmita, é prática bastante conhecida na gramática das ações de solidariedade da população brasileira. A atuação de Betinho por meio da Ação da Cidadania está na memória de muitos que apoiaram as campanhas de arrecadação e doação de alimentos, sobretudo nos anos 1990. Esta forma de ação mais uma vez ganhou força no país recentemente na esteira do aumento da fome. Movimentos sociais como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) se empenharam particularmente na doação de alimentos da agricultura familiar e camponesa e de marmitas, especialmente após o início da pandemia. Estes movimentos enquadram estas ações como de solidariedade, disputando o sentido do alimento na sociedade, que deve ser entendido como direito e não como mercadoria, como destaco em outro artigo publicado em parceria com as pesquisadoras Camila Penna, Renata Motta e Priscila D. Carvalho. Também ganhou notoriedade no contexto da pandemia as campanhas de doação de cestas básicas organizadas pela Central Única das Favelas (Cufa).
Outra inciativa que busca arrecadar e doar gêneros alimentícios são os bancos de alimentos. Estes aparelhos funcionam da seguinte maneira: recebem doações de alimentos que seriam desperdiçados ao longo da cadeia produtiva, mas que ainda ofereçam qualidades sanitárias e sensoriais adequadas para o consumo humano. Com isso, cumprem importante papel de reduzir o desperdício de alimentos ao mesmo tempo em que combatem a insegurança alimentar. Os alimentos recolhidos são doados para entidades cadastradas no banco, como instituições assistenciais, creches, escolas, asilos, associações de bairros, entre outras. O primeiro banco de alimentos criado no Brasil foi o de Porto Alegre e está em funcionamento até hoje.
As cozinhas solidárias ou comunitárias são locais de preparação e distribuição de refeições para pessoas em situação de insegurança alimentar. Além de servirem almoços e jantares, em alguns casos se tornam também espaços de organização e participação comunitária. Um exemplo destas iniciativas são as cozinhas solidárias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Tendo como principal bandeira a luta por moradia, o MTST desenvolve esta ação coletiva como meio de lutar também pela garantia do direito à alimentação, principalmente para as populações periféricas. Com isso, conjuga em sua pauta agendas importantes na luta por direitos fundamentais: direito à moradia e à alimentação adequada.
Muitas outras experiências poderiam ser incluídas aqui, como Slow Food, Banquetaços, ações de boicote e de buycott, lutas por comércio justo, locavorismo, vegetarianismo, veganismo. Em comum, todas lutam por justiça alimentar. Proponho aqui que olhar simultaneamente para o conjunto destas experiências pode ajudar a perceber a potência do ativismo alimentar em curso no país, as transformações em andamento e as mudanças que ainda podem ser feitas. A luta por justiça alimentar é uma disputa de poder que tem marcadores de classe, gênero, raça, etnia e expressão territorial (diferenças rural-urbano e regional). Este conjunto de experiências, cada um a sua maneira, contribui para resistir ao modelo hegemônico dos principais setores do agronegócio, cuja tendência geral é utilizar grandes porções de terra, produzir voltado para o mercado internacional, utilizar grandes quantidades de agrotóxicos e transgênicos e destruir o meio ambiente. Resiste ao poder das grandes corporações da indústria de alimentos e cadeias de supermercados, que injetam diariamente produtos ultraprocessados no mercado. E resiste às tentativas da atual gestão do governo de desmantelar políticas de segurança alimentar e nutricional e enfraquecer sujeitos políticos que lutam por justiça alimentar.
É fundamental nesse momento de acirramento da fome no Brasil refletir sobre qual tipo de sistema alimentar desejamos. Qual tipo de modelo de alimentação queremos para nosso país? Nossas cidades. Escolas. Lares. Se o ativismo destas experiências não resolve os problemas alimentares do país, que carece principalmente de ações estatais para tal, ele ajuda a aliviar situações difíceis e a apontar visões de futuro que superem as desigualdades alimentares.
*O autor agradece as revisões de Bruno Prado, Eduardo Teixeira, Renata Motta e Victor Moreto.
Marco Antonio Teixeira é sociólogo, pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Freie Universität Berlin (FU Berlin) e coordenador científico do Grupo de Pesquisa “Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia” (LAI, FU Berlin).
[1] Termo que temos desenvolvido no âmbito do Grupo de Pesquisa Alimento pela Justiça (LAI, FU Berlin), liderado pela pesquisadora Renata Motta.