MAS define candidatos sob ambiente de repressão na Bolívia
Presidente Evo e militantes escolhem binômio enquanto governo transitório militariza as ruas e implementa estado de exceção com o aumento da violência política
Foi da capital Argentina, Buenos Aires, que o ex-presidente Evo Morales anunciou o ex-ministro da economia Luis Arce Catacora como o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS) para as eleições previstas para 3 de maio. O fato de a decisão ser proclamada do país vizinho revela a contundência das ameaças e perseguições contra amplos setores do campo popular promovidos na esteira do golpe de estado alcançado no mês de novembro através da violência desencadeada por milícias paramilitares contra lideranças e militantes da esquerda nacional, sob a conivência da polícia e das forças armadas.
O estado de violência foi mantido pelos governistas e reforçado na última semana com a militarização das ruas de diferentes cidades nos nove estados do país. O desfile acintoso de enormes tropas, tanques e pesado armamento em La Paz e a entrada de tropas no Trópico de Cochabamba acenderam o alerta sobre novos episódios de repressão, mas não tiveram o efeito de atemorizar os movimentos sociais que mantiveram a manifestação marcada para quarta-feira, quando acaba o atual mandato, estendido pelo Tribunal Constitucional para permitir à senadora conservadora e candidata presidencial Jeaniñe Añez continuar no posto máximo da nação, cargo para o qual autoproclamou-se de bíblia em mãos e costeada pela cúpula militar.
“Evo Morales tem uma cela com seu nome o esperando em Chonchocoro”, prometeu o senador e ministro Arturo Murillo referindo-se à prisão de segurança máxima situada em La Paz, na sequência do evento que oficializou a criação de uma divisão antiterrorista dentro da corporação policial, mais um potencial instrumento de perseguição política sob chefia do poderosos ministro, o qual emprega a expressão “caceria” para referir-se a lideranças do MAS.
Repressão
Desde que a direita voltou ao poder na Bolívia, em novembro, registraram-se oficialmente 32 mortos à bala em situações envolvendo as forças oficiais, afora quase mil feridos e 1.500 presos. A impunidade em relação aos massacres de Sacaba, em Cochabamba, e Senkata, em El Alto, quando forças oficiais abriram fogo e mataram dezenas de manifestantes transformaram-se em sínteses do atual momento. “O povo está revoltado, mesmo com toda força da polícia e do exército é comum cidadãos os chamarem de traidores em sua própria cara. Antes de Evo não havia um único oficial de alta patente com sobrenome indígena, isso mudou, o que aumenta a inconformidade com a postura dessas corporações”, conta o professor Marco Antonio.
O anúncio do calendário eleitoral para 3 de maio – quando se escolherá o novo presidente e representantes para Câmara e Senado -, não representou o restabelecimento das garantias legais. O estado de exceção imposto pelos governistas acentua-se com diferentes práticas autoritárias como a intimidação a organizações sociais classificadas de terroristas, a intenção de excluir a região do Chapare, bastião da esquerda, do pleito nacional sob alegação de falta de presença do estado, afora a ordem de detenção emitida contra Evo.
“Estamos vivendo em uma ditadura. O ódio racial e a violência tornaram-se armas desses que tomaram o poder e falam em caçar dirigentes do MAS sem constrangimento. Já é tempo demasiado e, a partir do dia 22, as manifestações devem se intensificar”, adverte a comerciante Miriam Diaz, de Oruro.
Por outro lado, as repetidas ações violentas de grupos de choque – vinculados aos motoqueiros de Cochabamba e à Juventude Cochala, dentre outros -, frente a oposicionistas que reclamam do governo, ocorre impunemente à luz do dia e com frequência e se espalham nas redes sociais, apesar do cerco midiático imposto aos meios de comunicação do país. O fechamento de emissoras incluindo mais de 50 rádios comunitárias, a detenção de jornalistas, o corte de sinal de internet em determinadas áreas são exemplos do assédio, repetido contra asilados em embaixadas, sendo a mais notória a do México.
O reconhecimento das violações aos direitos humanos por organismos como a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos do Mercosul não inibe a postura de membros da gestão nem de Añez que em discurso bradou para que os “selvagens não voltem”, em referência aos masistas. “O fascismo e o racismo se apresentam como o feroz estalido de uma classe ressentida com a história e a igualdade. (…) Por isso o ódio é a linguagem dessa classe envelhecida” escreveu o ex-vice presidente e escritor Álvaro Garcia Linera, também radicado em Buenos Aires.

Eleições
Será difícil a direita boliviana emplacar o rótulo de terrorista ou sedicioso a Luis Arce Catacora diante da figura pacata que representa o ministro da economia de melhor resultado na última década na América Latina. O crescimento médio de 5% ao ano, seguido de distribuição de renda, aumento do salário junto à uma política de nacionalização dos recursos naturais e diversificação da matriz produtiva alçaram a Bolívia ao topo da região, razão pela qual Lucho, como é chamado, foi recebido por milhares de apoiadores em El Alto, nesta terça-feira, 28.
Mesmo antes de definir seu binônimo – David Choquehuanca, líder aimará e chanceler será o vice -, o MAS liderava as pesquisas de intenção de voto, favorecido também pela dispersão de candidatos conservadores. “Será uma campanha muito diferente com a maior liderança política impedida de concorrer e ainda vivendo em exílio. De alguma forma, lembra o caso de Lula no Brasil. Soma-se a isso a radicalização de partidos de direita cujos expoentes são homens da elite, Camacho e Mesa especialmente”, observa o advogado Mario Velazquez.
Luis Fernando Camacho, rico empresário de Santa Cruz acusado de fraude fiscal dentre outros crimes, aposta na força regional e na aliança com Marco Pumari, do estratégico estado de Potosí, onde encontra-se o cobiçado lítio boliviano. O cruzenho briga com o ex-presidente Carlos Mesa para estabelecer-se como o nome mais viável da direita. “Pouco importa quem ganhará desde que não volte o grupo de Evo. Na política se aceita tudo e as alianças serão concretizadas para derrotar o socialismo e a corrupção”, acredita Cristina Villaroel, de La Paz.
Nos planos de ambos a privatização de estatais, a agenda econômica impopular e considerada entreguista pelos movimentos sociais é complementada pela recolocação no cenário internacional, a partir do alinhamento aos interesses estadunidenses, plano já iniciado pelo governo de turno, que, por exemplo acena com o retorno do DEA – Agência Antidroga dos EUA -, cuja memória remonta ao programa que previa a eliminação das plantações de coca no início dos anos 2000, folha tradicional na Bolívia produzida e consumida legalmente no território.
“Não se trata de um governo aliado dos Estados Unidos, é um governo dos Estados Unidos. A soberania tão duramente conquistada deu lugar à subserviência para a vergonha de nosso povo”, critica o jornalista Eduardo Lonfonn.
O fustigamento aos cocaleros se estende a outras correntes do campesinato, base social de sustentação de Evo. “A prioridade do governo anterior era o abastecimento do mercado interno para os bolivianos. Em poucos dias com a troca de comando as exportações e importações foram liberadas sem nenhum critério, isso tem causado desequilíbrio e prejudicado os pequenos produtores, que não vendem para fora e sofrem concorrência desleal das grandes empresas”, critica Otavio Rocio, produtor rural.
Do campo à cidade, a Bolívia deve ser sacudida pela intensa movimentação dos próximos meses em um cenário conflagrado e que replica em muitos aspectos as ditaduras da décadas de 1960, 1970 e 1980. Em 2020 novamente o que está em jogo é a democracia e a capacidade de um projeto popular inclusivo se impor uma vez mais nas urnas contra os herdeiros do autoritarismo.
Murilo Matias é jornalista.