Migrante, empreendedor e influenciador
Migrante bom é aquele que mobiliza afetos nas redes sociais e não pesa ao Estado
O quadro de agudização do neoliberalismo brasileiro tem sido acompanhado pela diminuição da execução de políticas públicas voltadas à inclusão de migrantes e refugiados e pelo foco da atuação de agentes da sociedade civil na capacitação de migrantes para o empreendedorismo. Nesse cenário, um conjunto de atores sociais estão mobilizados para atuar na causa da integração econômica de migrantes, reunindo entidades como organizações não governamentais e humanitárias, como a Agência da ONU para Refugiados (Acnur), e as corporações capitalistas transnacionais (plataformas de trabalho e de redes sociais), como Uber, AirBnB, Facebook e Instagram.
O encontro dessas entidades tem sua forma mais acabada a partir de 2018, com a institucionalização da Operação Acolhida, levada a cabo pelo Exército brasileiro, pelo Acnur, OIM e ONGs, em Roraima, a partir da inauguração de um sistema complexo de documentação de migrantes venezuelanos que chegam pela fronteira e da criação de abrigos.
Trabalho de campo realizado em Roraima, em 2022, confirmou dois vieses sobre o tema da inclusão laboral desenvolvida pela Operação Acolhida. As soluções para inserção laboral de migrantes que entram pelo estado, apresentadas como “duradouras”, são basicamente duas: interiorização de migrantes – com prevalência para o trabalho em frigoríficos – e incentivo ao empreendedorismo. Confirmam-se, dessa forma, conclusões de pesquisas anteriores que apontam que o empreendedorismo vem sendo elegido como o lugar preferencial para a inserção do migrante. Envolve não só a oferta de cursos e treinamentos, no caminho da profissionalização e da inserção no mercado de trabalho, mas também a partir de um trabalho discursivo de “empoderamento pessoal”, resultado de recurso à novilíngua neoliberal, que justifica a aceitação da precariedade como norma.
A gestão de si como empresa
O trabalho de conversão dos migrantes em empreendedores de si foi identificado a partir de pesquisa que acompanhou treinamentos para empreendedorismo migrante e confirmado em estudo focado nos discursos de um grupo de influenciadores digitais, cujas histórias pessoais são moldadas por semânticas que incluem a resiliência, o mérito e a superação. O migrante incorpora a figura do sujeito resiliente, capaz de superar as adversidades que lhe são impostas, enxergando no esforço e nos sacrifícios individuais o caminho para a resolução de dificuldades estruturais. Longe de questionar a existência de enfrentamentos comuns à realidade de milhares de migrantes, o que parece latente nessas narrativas é a forma em que tais obstáculos são ressignificados a partir da jornada do herói, na qual o protagonista não se deixa abater pelas provações vividas e o desfecho, ao menos até onde alcança a narrativa, é sempre positivo. As iniciativas de criação de conteúdo também podem ser inseridas no debate sobre a plataformização do trabalho, uma vez que o engajamento obtido em número de seguidores e visualizações nas redes sociais por si só pode vir a ser rentável.
Estudos recentes apontam a presença de um padrão discursivo que aposta na autonomia e na responsabilização do sujeito como chave para o sucesso. Embora essa fórmula extrapole o âmbito da migração e do refúgio, chama atenção a potencialidade de reverberação na conversão de cidadania vinculada ao neoliberalismo nesse contexto. Os migrantes são formatados discursiva e subjetivamente em uma pedagogia neoliberal que estimula a gestão de si como empresa, onde o indivíduo precisa trabalhar e aprimorar a si mesmo para negociar seu pertencimento no país. A hipótese aqui é de que os processos de negociação de pertencimento passam a ser elaborados a partir da prerrogativa do desempenho e da performance, em que a história pessoal do migrante pode se configurar como um caminho para mobilizar afetos, conquistar atenção nas redes sociais e moldar seu pertencimento no país, pela via do bom trabalhador, do empreendedor, aquele que não pesa ao Estado. Destacam-se a apropriação de enquadramentos midiáticos a partir dos quais os influenciadores conseguem adquirir visibilidade e até mesmo despertar a admiração de suas audiências, o que vem a cumprir diferentes finalidades nesse processo de reelaboração.
Sujeitos da própria sorte, adoecidos e endividados
Diversos são os estudos que sinalizam os efeitos despolitizadores do discurso anódino neoliberal, aquele que intercambia a peremptoriedade dos direitos por um manual de boas práticas, cujo efeito principal é o de esvaziar a luta coletiva pela batalha diária e individual do empreendedor de si. Troca-se o sujeito de direitos, da cidadania, pelo de consumidor, ou pelo sujeito do mérito.
Tomando por base um conjunto de perfis de venezuelanos que vivem no Brasil, percebeu-se que a cena midiática migrante tem sido povoada também por referências individualizadas de sucesso, por sujeitos que constroem a si mesmos como resilientes e batalhadores e, mais do que isso, capazes de inspirar o outro a partir de suas narrativas exemplares. O caso evidencia de que forma a constituição de uma subjetividade empreendedora se afirma como senha de pertencimento em sociedades neoliberais, como a brasileira, bem como as contradições que essas figuras condensam. No caso sob análise, o elemento mais fraco é a figura do migrante, deslocado de suas redes de afeto e apoio, suscetível à adaptação às normas de cada país para exercício de uma cidadania precária, num momento em que o empreendedorismo vem sendo elegido como o lugar preferencial para inserção sociolaboral, isto é, na prática, ele continua apartado da nova sociedade por meio da reivindicação de direitos e sobrepõe-se a esse indivíduo a responsabilização pela sua condição de estrangeiro, a partir da moralização do sacrifício por meio da autonomia.

Nesse sentido, os migrantes influencers são simultaneamente os entes que carregam consigo os ônus associados ao atual quadro de perda de direitos, intensificação e precarização laboral, enquanto trabalhadores plataformizados, e aqueles que legitimam as prescrições morais que acompanham essa formatação subjetiva tipicamente contemporânea, por meio de suas histórias. O migrante aceito é o que não reivindica, mas toma para si a responsabilidade de elaborar seu pertencimento, que será sempre marginal. Dentro desse contexto, além de acatar o papel de empreendedor, a figura que completa a dinâmica dessa nova formatação subjetiva é a do migrante empreendedor influenciador, aquele que vai ser tomado de forma ambígua: tanto informa, a partir das dicas e conhecimentos compartilhados acerca da própria experiência da mobilidade, como se torna a forma mais acabada da sociedade do desempenho, da positividade. O influenciador também é o ente responsável por legitimar o caráter de positividade a partir de um discurso inspiracional que complementa a subjetividade empreendedora.
É nesse caminho que se percebe a profusão de narrativas inspiracionais, nas quais o migrante midiatiza o próprio cotidiano e se converte em exemplo passível de ser admirado e replicado por seus seguidores. Logo, entende-se que a apropriação de tal retórica tem viabilizado o alcance de vozes minoritárias para públicos mais amplos, se constituindo como uma estratégia de comunicação e negociação intercultural e, assim, abrindo margem para um tipo específico de aceitação na sociedade receptora.
Embora a mudança de migrante-problema para migrante-exemplar possa parecer positiva, e até mesmo empoderadora, há que se destacar que estamos diante de um reconhecimento meritocrático que em muito se distancia da hospitalidade irrestrita historicamente creditada ao “Brasil cordial”. Pelo contrário, o que se tem visto, nos últimos anos, é que as portas não estão abertas para todos, ou, como dito pela autoridade máxima do país à época, “não é qualquer um que entra em nossa casa”. Mais do que um fechamento seletivo, parece restar pouco espaço para a acolhida a migrantes por meio do sujeito de direitos, a não ser a de se adequar à cidadania possível em tempos neoliberais: midiatizar sua experiência transformando-se em mídia de si, seja como empreendedor, seja como influenciador. Nos dois casos, sendo sujeitados ao trabalho plataformizado.
Júlia Lyra é mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.
Sofia Zanforlin é doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.