Milei é um desejo de choque
Diante da “impotência de Estado” da coalizão governista, o candidato da extrema direita Javier Milei promete, usando a expressão canônica, um exercício de vontade. Sua ascensão também é resultado do fracasso do gradualismo
A irrupção de Javier Milei [pré-candidato de extrema direita nas eleições presidenciais argentinas de outubro] e sua rápida transformação de debatedor de televisão em candidato competitivo são consequências do mal-estar profundo de uma sociedade colocada contra as cordas por uma década de recessão, pelo desespero de não saber de onde virá o próximo golpe e pela angústia causada pela inflação. Novos fenômenos sociais, como o trabalhador pobre que tem emprego estável mas não consegue fechar as contas no final do mês, ou a expansão do trabalho autônomo nos campos da economia digital, do comércio eletrônico e do delivery, completam o quadro que a pandemia agravou: se as origens do macrismo podem ser rastreadas até as mobilizações rurais de 2008, o surgimento do mileísmo se encontra nas marchas anti-quarentena e em sua demanda por liberdade. A sociedade está sofrendo uma mutação acelerada. São correntes submarinas que mal conseguimos vislumbrar na superfície.
Confira a animação do Le Monde Diplomatique Brasil sobre a corrida eleitoral argentina.
A ascensão de Milei tem duas dimensões. A primeira é conhecida: o candidato libertário reflete uma rejeição contundente ao estado atual de coisas. É uma contestação forte, um “até aqui aguentamos” que encontrou na sua linguagem de fúria uma forma de se expressar. 1 Com o Juntos por el Cambio [de Macri] estabilizando o voto antiperonista, o Partido Justicialista [de Alberto Fernández e Cristina Kirchner] se tornando um “partido da ordem” e até mesmo a Frente de Esquerda integrada ao sistema político, jogando com desenvoltura o jogo parlamentar, Milei se apresenta como o mais remoto dos outsiders, aquele que vive na ilha mais distante. Um excêntrico em seu sentido original: afastado do centro. Alguém que não hesita em apelar para a “resistência”, por exemplo, chamando à rebeldia fiscal ou reivindicando o direito de não escolarizar os filhos, e que além disso incorpora em sua figura a raiva social represada: parafraseando Pablo Stefanoni, poderíamos dizer que não apenas a rebeldia, mas também a paixão se tornou de direita.2
No entanto, não é apenas essa rejeição silenciosa que explica o crescimento de Milei. Se o macrismo foi essencialmente uma coalizão antiperonista, Milei é isso, mas é mais do que isso. Há um voto de esperança? Digamos que existe uma expectativa, especialmente entre os jovens, os homens de classe média baixa e os trabalhadores por conta própria. Após uma década de empate político, de “hegemonia impossível” entre duas coalizões que não conseguem nem derrotar uma à outra nem concordar em um programa comum,3 Milei diz, clara e firmemente, que ele sim pode, que as coisas que promete, por mais delirantes que pareçam, são factíveis. Diante da “impotência de Estado” da coalizão governista Frente de Todos, Milei promete, usando a expressão canônica, um exercício de vontade. Sua ascensão também é resultado do fracasso do gradualismo; Milei é um desejo de choque.
É isso o que acontece no debate sobre a dolarização da economia argentina proposta por Milei. Embora economistas ortodoxos e heterodoxos concordem, pela primeira vez, que, com os atuais níveis de reservas do Banco Central, a dívida acumulada e o contexto internacional, a dolarização seria extremamente dolorosa, o debate político dos últimos dias gira em torno dessa proposta que Milei formula envolta em uma nuvem de tecnicismos e especulações econômicas que ninguém entende, ao mesmo tempo em que alegremente propaga a versão de que dolarizar a economia significa dolarizar os salários. É claro que, no contexto atual, a dolarização não é factível, mas também era impossível construir um muro na fronteira com o México e Trump venceu as eleições – o que não significa que Milei vá vencer, mas sim que a sociedade está disposta a ouvir suas ideias.
Em todo caso, a discussão pública gerada em torno da iniciativa confirma a centralidade de Milei nessa fase do processo eleitoral. Algo similar ocorre com a participação das Forças Armadas em assuntos de segurança interna ou com o porte livre de armas, propostas que outros candidatos, como Patricia Bullrich [Proposta Republicana, centro-direita], também subscrevem. Impulsionado pelos tempos atuais, o economista conseguiu girar para a direita vários graus do eixo programático da campanha. Nesse sentido, Milei já venceu.
Desdemonização
Embora a forma destemperada de suas intervenções públicas nos leve a cair na tentação de não o levar a sério, há uma certa inteligência na ascensão de Milei que se revela em quatro decisões estratégicas. A primeira é se apresentar como o candidato da antipolítica, apelando para a luta contra a “casta”, um conceito importado do Podemos do qual ele tira o máximo proveito. A segunda, que decorre da anterior, é não ingressar no Juntos por el Cambio (“Juntos por el Cargo”), como fizeram José Luis Espert e Ricardo López Murphy, cuidando ao mesmo tempo para não atacar Macri nem Bullrich e concentrando suas críticas em Horacio Rodríguez Larreta [prefeito de Buenos Aires, Proposta Republicana], a quem chama de “Harry, o sujo”. A terceira é fechar acordos com forças provinciais do espectro conservador, a casta da casta, mas que é essencial para completar as listas legislativas e garantir um mínimo de fiscalização nas eleições. E a última é deixar de lado suas propostas de dinamitar o Banco Central ou permitir o mercado de compra e venda de fígados e rins, limitando suas aparições midiáticas aos temas que ele sabe que funcionam: fracasso do Estado, insegurança, economia.

Na verdade, Milei não está fazendo nada de novo. A desdemonização é um processo seguido por outros candidatos de extrema-direita em diferentes países. Na França, Marine Le Pen se distanciou das origens fascistas de seu pai e revisou sua proposta original de abandonar o euro; na Itália, Georgia Meloni conseguiu se tornar primeira-ministra após enviar todo tipo de sinais tranquilizadores para a União Europeia; e no Brasil, Jair Bolsonaro buscou – e obteve – o apoio da centro-direita tradicional. Assim como eles, Milei percorre uma linha tênue entre a exigência tática de conter seus excessos discursivos e a vontade de não perder a autenticidade, de continuar sendo ele mesmo.
Ao mesmo tempo, o discurso ultraconservador procura reter o núcleo duro da direita tradicional. De longe o mais ideológico dos candidatos presidenciais, Milei se posicionou contra a legalização do aborto, contra o feminismo e contra qualquer política pró-diversidade, uma combinação que não é tão estranha na Argentina: é, afinal, a dos governos militares, que juntaram neoliberalismo econômico com reacionarismo cultural. A inclusão em sua coalizão de líderes que construíram suas carreiras reivindicando a última ditadura, como Victoria Villarruel e Ricardo Bussi, expressa esse amálgama.
A estratégia é completada por uma operação simbólica audaciosa: a revalorização do legado econômico de Menem, muito oportuna em tempos de instabilidade do dólar e inflação descontrolada. Por anos, Menem foi uma espécie de ponto cego da política argentina, como se a história tivesse pulado de Alfonsín para Kirchner, a ponto de nem mesmo os políticos que cresceram à sua sombra se atreverem a reivindicá-lo. Em contraste, Milei sustenta que “Menem foi o melhor presidente da história e Cavallo o melhor ministro da Economia”, e com isso ergue uma bandeira. Se declarar-se fã da Geração de 37 é uma tentação à qual quase nenhum político argentino pode resistir, a reivindicação de Menem e Cavallo constitui um gesto mais ousado, que coloca Milei no grupo de líderes de extrema-direita que mergulham no passado em busca de seu lugar no presente: o Tea Party como antecedente de Donald Trump, Vox e o franquismo, José Antonio Kast e o pinochetismo, Jair Bolsonaro e a ditadura brasileira.
Até onde ele vai
As pesquisas concordam que Milei – que há pouco crescia com base nos eleitores macristas e mais recentemente também começou a atrair peronistas desencantados – continua em ascensão e que, se as PASO [Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias] fossem hoje, ele poderia ficar em terceiro lugar ou até mesmo em segundo, desbancando o peronismo. Se as duas coalizões [da direita tradicional e da esquerda] tiverem mais de um candidato, é provável que, considerado individualmente, ele seja o candidato mais votado em agosto. A pergunta é se, uma vez que isso aconteça, a sociedade reagirá assustada e tentará impor um limite a ele ou se, pelo contrário, se juntará à onda. Isso, por sua vez, dependerá da profundidade da crise econômica e do resultado das outras primárias, em particular as da Juntos por el Cambio: Bullrich poderia disputar o eleitorado com Milei e apostar no clássico dos clássicos contra o peronismo, enquanto Rodríguez Larreta investiria em uma grande frente moderada em busca dos votos peronistas. E se a Frente de Todos obtiver um resultado aceitável, ela terá que competir com o candidato do macrismo pelos votos dos libertários. Em um cenário de triplo empate, qualquer coisa pode acontecer.
De qualquer forma, enfrentar Milei exige uma sintonia fina que a política, especialmente o progressismo, ainda não conseguiu encontrar. Um exemplo são as propostas vazias da extrema direita em relação ao Estado, as quais parte da sociedade observa de forma muito crítica (nem todos os eleitores de Milei querem abolir a educação pública ou fechar hospitais, mas provavelmente todos concordam que são coisas que funcionam mal há muitos anos). Nessa altura da crise, os privilégios das elites progressistas geram cada vez mais irritação, e o establishment econômico também parece não entender o que está acontecendo: as críticas que Milei recebeu por sua participação na cúpula de empresários no luxuoso Hotel Llao Llao, que a mídia se encarregou de divulgar, são um problema para Milei ou mais um argumento para se apresentar como o candidato antissistema?
Por fim, rotulá-lo simplesmente como “fascista” não parece ser a maneira mais adequada de frear seu crescimento, em grande parte porque ninguém acredita que, caso vença as eleições, Milei irá instalar campos de concentração na rodovia Panamericana. Isso não significa subestimar a catástrofe que sua chegada ao poder implicaria, mas sim entender melhor a natureza exata de seu autoritarismo: ajuste fiscal, corte nos serviços públicos, eliminação dos programas sociais, retrocesso nas políticas de gênero e direitos humanos, flexibilização do porte de armas, uma política de vale-tudo para as forças de segurança – aí está o perigo. As experiências de Trump e Bolsonaro revelam que, mais do que a improvável criação de um regime fascista, as novas direitas produzem uma brutal degradação da vida cívica, o desmantelamento dos mecanismos estatais de solidariedade e a criação de uma zona liberada em nível nacional para ataques ao pluralismo e à diversidade. A previsível resistência de uma sociedade mobilizada como a argentina levaria o país à ingovernabilidade e ao caos.
Contudo, não nos deixemos vencer pela tentação de imaginar distopias; ainda falta muito e nada está definido, então voltemos ao começo.
Surgido das entranhas do próprio capitalismo contemporâneo (a consultoria financeira e os estúdios de televisão), Milei é o emergente mais visível do descontentamento de um número crescente de argentinos com o rumo do país e com a política, em uma crise que não para de se agravar, destruindo o tecido social em seu caminho. Desiludida de tudo, imersa em uma sensação de fracasso coletivo, a sociedade já puniu o kirchnerismo (em 2015), o macrismo (em 2019) e a Frente de Todos (em 2021). Hoje, parece mais propensa do que nunca a arriscar um salto no vazio.
José Natanson é diretor do Le Monde Diplomatique, edición Cono Sur.