Tão longe do plano: lugar da mobilidade e periferias no zoneamento de São Paulo
Quando se fala de mobilidade, esta não deve ser vista apenas como o deslocamento de pessoas, mas, antes de tudo, como uma questão política, social, cultural e espacial produzida em função dos interesses e necessidades das diversas classes e grupos sociais
“Periferianos, distantes estamos/ Eles querem manos, minas, longe do plano” (Ricon Sapiência)
Quase no apagar das luzes de 2023, no dia 21 de dezembro, os vereadores, por um largo placar de 46 a 9, aprovaram a revisão da Lei de Zoneamento da cidade de São Paulo. Em julho deste mesmo ano, o prefeito Ricardo Nunes já havia sancionado a aprovação da revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo, vigente inicialmente desde 2014 e Lei de Zoneamento de 2016. Essa recente aprovação vem gerando bastante polêmica nos meios de comunicação, pois para uma parcela expressiva da sociedade ocorreu de maneira bastante atropelada e sem a efetiva presença da participação popular, prejudicando o debate público sobre importantes temas relacionados ao uso do território paulistano.
No entanto, dentre os mais diversos temas tratados nessas alterações, daremos destaque a questão da mobilidade, particularmente, no que se refere ao estabelecimento, usos e interesses em torno das Zonas Eixo de Estruturação da Transformação Urbana (ZEU), fundamentado na proposta de incentivar o aumento da presença de pessoas em edificações residenciais verticais mais altas, justamente em áreas próximas aos meios de transporte coletivos.
O que há de novo no front?
Quando se fala de mobilidade, esta não deve ser vista apenas como o deslocamento de pessoas, mas, antes de tudo, como uma questão política, social, cultural e espacial produzida em função dos interesses e necessidades das diversas classes e grupos sociais. Na cidade de São Paulo, a mobilidade é historicamente um recurso desigual e não um direito coletivo. Isso não é nada novo. Recuando um pouco na história, esse processo é impulsionado pelo modelo rodoviarista definido no Plano de Avenidas de Prestes Maia, em 1930. Esse modelo se consolidou com a chegada das indústrias automobilísticas transnacionais na década de 1960. Neste contexto, ocorreu uma massificação do privilégio à classe média, moradora das áreas centrais, circular por automóveis, enquanto os mais pobres, segregados nas periferias, foram submetidos a um precário transporte coletivo por ônibus. Nos anos 1990, ocorreu a popularização dos transportes individuais (carro popular e motocicletas de baixa cilindrada), junto com o aprofundamento das péssimas condições dos transportes coletivos, refletido no aumento da lotação, tempo de deslocamento e tarifas de transportes, assim como, na ampliação das vulnerabilidades de acidentes e estresse no trânsito, congestionamentos e problemas ambientais, transformando a mobilidade precária de exceção à regra[1].
É assim que em meio à crise urbana e de mobilidade com continuidade do modelo rodoviarista na década de 1990 em São Paulo, a sociedade civil organizada passou a confrontar cada vez mais o modelo vigente e propor alternativas mais sustentáveis para a vida urbana. No fundo, as insatisfações com o modelo de mobilidade nas cidades brasileiras culminaram nas manifestações de junho de 2013. Contudo, no âmbito internacional desde a década de 1970 – devido à crise do Petróleo e pressão do movimento ambientalista – , já se debatia sobre o novo paradigma da sustentabilidade, que no campo da mobilidade foi associado a necessidade de apoiar os transportes coletivos e ativos (a pé e bicicleta)[2], pois estes, comparados aos automóveis, proporcionalmente poluem menos a atmosfera, ocupam uma menor área e requerem menor uso de combustíveis fósseis[3].
É neste sentido, que, à primeira vista, aproximar as pessoas dos transportes coletivos, tal qual definido no PDE de 2014, surgiu como uma proposta de sustentabilidade positiva no front das políticas de mobilidade. É verdade que os fundamentos dessas ideias já haviam sido desenvolvidos em alguma medida na década de 1970, em Curitiba, quando o prefeito à época, Jaime Lerner, desenvolveu o conhecido BRT (Transporte Rápido por Ônibus, em português), sendo um sistema de ônibus em corredores segregados, com edifícios mais altos em sua proximidade. Todavia, esse debate se ampliou nos países centrais do capitalismo, onde várias de suas cidades implantaram o que eles posteriormente viriam a definir como DOT, que é uma sigla inglês, que na tradução significa Desenvolvimento Orientado ao Transporte, sendo uma proposta baseada na maior densidade de pessoas e habitações em relação aos transportes, diversidade de usos e grupos sociais no território e desenho urbano favorecendo aos pedestres[4].
Portanto, com inspiração e princípios do DOT, o PDE de 2014 propôs a criação da ZEU, com a perspectiva de aproximar mais pessoas em edifícios altos nas proximidades do desigual sistema de transportes coletivos. Para tanto, a proposta foi de flexibilizar as construções de edifícios – podendo ser até quatro vezes o tamanho do terreno – em um raio no entorno de 600 metros das estações de metrô e trem e 300 metros dos corredores de ônibus. Isto é, com a proximidade das pessoas aos transportes coletivos, isso incentivaria seu uso, ainda mais considerando que esta proposta inibia relativamente o uso de automóveis, pois limitava 1 vaga de garagem nas unidades residenciais. No período de 2014 até 2016, de acordo com os Dados Abertos de Monitoramento (DAM) do PDE, as aprovações de construções de edificações verticais residenciais e de uso misto na ZEU cresceram 5%, em relação aos três anos anteriores do período citado, no entanto não chegou a 1% de unidades de habitação de interesse social (HIS).
Todavia, por mais qualidade e boas intenções que essa proposta carregava, é sabido que a adaptação de modelos urbanos estrangeiros pode ser arriscada, considerando as particularidades da formação socioespacial das cidades brasileiras, tal como ensina Milton Santos. Por exemplo, é sabido que o papel do Estado e regulação do planejamento urbano nas cidades europeias é mais forte do que o planejamento nas cidades brasileiras, onde os anseios do mercado imobiliário, muitas vezes, acabam por prevalecer.
Isso é bastante ilustrativo no caso paulistano, pois ao longo do tempo a proposta da ZEU, ao invés de ser aprimorada, foi sendo desvirtuada de seus propósitos originais. Isso já foi possível constatar com a aprovação da Lei de Zoneamento de 2016, com a ampliação das garagens para automóveis, pois apesar de limitar a cota de 32m² por unidade residencial, criou-se uma transição de 3 anos permitindo 1 vaga a cada 60m² de área construída. Sem contar, as construções de apartamentos residenciais de grandes metragens, até mesmo em alguns casos de 1 por andar, assim como, outros muito pequenos voltado apenas para aluguéis por aplicativo, entre outras distorções que se ampliaram com a revisão do PDE e Lei de Zoneamento de 2023.
Sendo assim, creio ser importante perguntar: podemos ainda dizer que a proposta da ZEU é para aumentar a densidade e diversidade de pessoas mais próximas dos transportes ou seria tão somente de construção de edifícios para os interesses do mercado imobiliário? A depender da resposta, pode-se dizer que almejada sustentabilidade é uma meta ou um discurso lucrativo para o mercado imobiliário, portanto, uma ideologia?
Breve contribuição de uma leitura espacial crítica para pensar a cidade
Na leitura espacial na perspectiva crítica do professor Milton Santos, o espaço geográfico é entendido como um conjunto indissociável de objetos e as ações, portanto, não como algo estático, mas como uma totalidade em movimento[5], sendo uma instância fundamental na produção e reprodução de desigualdades espaciais e pobreza urbana.
Neste sentido, não dá para falar de espaço sem falar de sociedade, nem muito menos falar de periferias sem falar de centro. Por exemplo, a desigualdade espacial é produto da segregação, pois, no mesmo processo e movimento, os mais ricos se segregam nas áreas centrais mais privilegiadas e os mais pobres são segregados nas periferias, em áreas com mais privações em termos de serviços públicos e oportunidades.
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Essas desigualdades espaciais visíveis na paisagem urbana de São Paulo, muitas vezes, atribuída a falta de planejamento urbano, segundo Flávio Villaça trata-se de uma ideologia[6]. Lúcio Kowarick explica que a aparente lógica da desordem é a própria lógica do capital[7]. No livro A metrópole corporativa de São Paulo, Milton Santos demonstra que as corporações lucram duplamente com a periferização e pobreza urbana, pois, de um lado, lucra com os vazios urbanos e sua especulação imobiliária, de outro, com as suas próprias carências e dificuldade de acesso nas periferias, que acabam por aumentar o preço da terra nas áreas centrais[8].
Essa histórica desigualdade espacial é fonte daquilo que Milton Santos chamava de cidadania mutilada[9], marcada por uma classe média que não quer direitos e, sim, manter seus privilégios, enquanto, os mais pobres periféricos querem os seus direitos, mas não conseguem ter acesso. Porém, é nessa ausência de cidadania no território que Santos chama a atenção para a força do lugar que, mesmo cheio de conflitos e contradições, é um campo basilar da comunicação, solidariedade e cultura coletiva dos pobres nos bairros e zonas periféricas da cidade. Então, seria esse o motivo da ausência de uma participação popular mais efetiva e presente nas periferias para a revisão do PDE e da Lei de Zoneamento de 2023?
Dos fluxos para o lugar: densidades de quem e para quem?
Um importante pensador chamado Manuel Castells, teorizando a sociedade informacional em que vivemos, chegou a sentenciar que o espaço de fluxos substituiria o espaço dos lugares[10]. Este foi um dos idealizadores do planejamento estratégico da renovação urbana de Barcelona nas Olimpíadas de 1992[11] que, sem dúvidas, acabou por influenciar, direta ou indiretamente, muitos planejadores ao redor do mundo. Na cidade de São Paulo, a proposta da ZEU, coincidência ou não, carrega esse espírito do tempo, privilegiando o planejamento urbano na perspectiva dos fluxos. Isso não quer dizer que seja um problema em si. Nem muito menos que não seja um aspecto importante. Ao contrário. Entretanto, o problema é a perda de relevância do lugar, na sua dimensão do bairro e suas zonas da cidade, para pensar a mobilidade para além dos eixos.
Tanto é que a perspectiva dos eixos no planejamento tornou-se praticamente um discurso único para pensar a mobilidade. Poucos questionamentos apareceram fora desse suposto consenso. Por exemplo, é sabido e desejado aproximar as pessoas em áreas próximas dos transportes coletivos, mas porque também não se debateu a necessidade de aproximar os transportes e os empregos onde já tem a mais densidades pessoas e que gastam mais tempo nos deslocamentos? Mas voltando ao importante debate sobre a ZEU, por que não se insistiu em reservar maior percentual de unidade de HIS destinadas às pessoas de mais baixa renda na ZEU? É neste sentido que esse importante debate não é sobre a verticalização em si, mas que tipo de verticalização que se almeja e quais serão as classes e grupos sociais beneficiados, para fazer valer de fato propostas de sustentabilidade e justiça social na cidade? Vejamos.
Com base em um programa de Sistema de Informação Geográfica (SIG), analisamos as densidades demográficas apenas na área ZEU, com os dados do Censo Demográfico de 2010 – último disponível –, foram observadas importantes desigualdades em termos de renda e grupos sociais. No que se refere à renda, a população que recebeu até 2 salários-mínimos tem uma densidade 7 vezes menor que a média da população da cidade de São Paulo na ZEU. Já as pessoas com renda superior a 10 salários-mínimos têm uma presença 15 vezes menor que a média da cidade na ZEU. Em termos raciais, verifica-se uma disparidade também significativa, já que a população negra (autodeclaradas pretas e pardas) tem uma densidade de 4 vezes menor do que a população branca na ZEU. Ou seja, é a mais nítida expressão da cidadania mutilada, pois enquanto a elite quer manter seus privilégios, os pobres não conseguem ter direitos, o que reforçaria a necessidade de um debate mais democrático sobre cidadania e justiça territorial.
Analisando essas desigualdades em termos de tempos de deslocamento por zonas da cidade de São Paulo, constatou-se que as periferias da Zona Leste são mais marcantes. Isso porque, nesta, o tempo de deslocamento é 26% maior do que a média de São Paulo, sem contar que na Zona Leste, o índice de imobilidade das pessoas que recebem até 2 salários mínimos é 76% superior ao observado na cidade como um todo.
Esses números ajudam a indicar os rumos de um planejamento urbano longe dos anseios da maioria da população, especialmente, àquelas que mais precisam da presença do Estado, quando se pensa em mobilidade e justiça social na cidade.
O plano é chegar para integrar ou segregar?
Pode-se concluir que a revisão do PDE e da Lei de Zoneamento de 2023, beneficiou, sobretudo, os interesses do mercado imobiliário na cidade de São Paulo. Isso pode ser constatado na ampliação das áreas de influência da ZEU em torno das estações de metrô e trem passaram de 600 para 700 metros e no entorno dos corredores de ônibus de 300 para 400 metros. Outro ponto foi a flexibilização consolidada da disponibilização de garagens aos automóveis nas unidades residenciais, sendo uma 1 vaga de garagem para cada 60 m² de área construída. O que ajuda a entender a inversão de uma tendência de diminuição das vagas de garagens entre 2014 e 2017, que aumentou de 9% em 2018 – último ano de dados disponível na DAM. Inclusive, foi flexibilizada a construção em ZEU previstas, assim como, ampliadas as possibilidades de aumento do gabarito de construção de edifícios nas áreas de centralidades e zonas mistas (miolos) dos bairros. Fatores estes que enterram definitivamente o argumento da sustentabilidade dos transportes coletivos do PDE. Não por acaso que nos anos de 2017 a 2021, com base no DAM, aumentou um pouco mais de 300% das construções de edificações verticais residenciais e de uso misto na ZEU, em comparação aos três anos anteriores, sendo que as unidades de HIS pularam para 32% do total, no entanto, as HIS1 destinadas às pessoas que recebem até 3 salários-mínimos, o aumento foi apenas de 1,2%.
No que se refere particularmente à flexibilização da ZEU previstas, os problemas podem tornar-se ainda maiores nas periferias urbanas de São Paulo, pois são as áreas da cidade com uma importante concentração. Já que a verticalização poderá chegar antes dos transportes coletivos nas periferias – considerando seu histórico lento de ampliação – gerando, muito provavelmente, mais segregação do que integração espacial. Ainda mais considerando esse modelo vigente de participação da população que ocorreu basicamente de maneira esvaziada e remota – mesmo depois do fim da pandemia – na revisão do PDE e Lei de Zoneamento de 2023. Isso se comparado ao PDE de 2014, que contou com reuniões presenciais nos bairros e zonas na cidade. Portanto, é, sem dúvida, um desafio urgente estabelecer um planejamento urbano mais democrático e popular.
Por ora, o poder público e interesses de mercado acreditam que conseguiram manter a população pobre, negra e periférica longe do plano, mas até quando?
Ricardo Barbosa da Silva é geógrafo, professor do Instituto das Cidades, Campus Zona Leste, Unifesp. É coordenador do grupo de estudos Rede Mobilidade Periferias.
[1] SILVA, R.B. Mobilidade Precária na Metrópole de São Paulo. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2016
[2] MIRALLES-GUASCH, C. Ciudad Y Transporte: El binomio imperfecto. Barcelona: Ed. Ariel, 2002.
[3] VASCONCELLOS, E. A. Transporte e meio ambiente: conceitos e informações para análise de impactos. São Paulo: Edição do Autor, 2006
[4] CERVERO, R.; KOCKELMAN, K.. Travel Demand and the 3Ds: Density, Diversity and Design. Transportation Research Part D: Transport and Environment, v.2, n. 3, 1997, p. 199-219
[5] SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Edusp, 2002.
[6] VILLAÇA, F. J. M. As ilusões do plano diretor. São Paulo: Internet, 2005.
[7] KOWARICK, L. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
[8] SANTOS, M. Metrópole Corporativa Fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/Nobel, 1990.
[9] SANTOS, M. Cidadania Mutilada. In: LERNER, J (Org.). O Preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 96/97, p. 133-144
[10] CASTELLS, M. Sociedade em Rede. A Era da Informação. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
[11] VAINER, C.B. Pátria, Empresa e Mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (Orgs.). A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p.65-103
Parabéns pela matéria, Ricardo! A questão da mobilidade urbana é subvalorizada no Brasil. Deveria ser mais discutida, pois tem implicações nas esferas ambientais, socioeconômicas e raciais.
Resolver a questão da mobilidade urbana de massas significa democratizar os espaços públicos.