Mobilidade urbana
A maior transformação na mobilidade ocorreria com a revisão da política de apoio irrestrito ao uso do automóvel. O Estado brasileiro tornou-se sócio e refém do projeto automobilístico desde a década de 1960. Ele é sócio porque recebe grande quantidade de impostos e refém porque não hesita em apoiar o setor sempre que eEduardo A. Vasconcellos
A mobilidade urbana no Brasil vem sofrendo, nas últimas décadas, grandes transformações que reduziram ainda mais a eficiência e aumentaram a iniquidade no uso do espaço público. De maneira geral, as políticas de mobilidade continuaram as mesmas verificadas na história moderna do Brasil, em que a utilização do espaço urbano a pé ou de bicicleta foi ignorado, o transporte coletivo foi organizado apenas para levar fisicamente as pessoas de casa ao trabalho e o automóvel foi prestigiado, incentivado e financiado com recursos públicos de grande expressão. O resultado foi a geração de uma mobilidade excludente, com altos índices de insegurança, poluição ambiental e, mais recentemente, congestionamento.
A nova geração de prefeitos que estará no poder em 2017 terá grandes desafios no campo da mobilidade.
No que diz respeito aos pedestres, grande parte das cidades do Brasil não tem calçadas adequadas, e em muitos casos elas simplesmente não existem. É essencial que a postura de atribuir ao proprietário do lote a responsabilidade pela calçada seja alterada, pelo menos no sistema viário principal. O poder público deve assumir esse compromisso, pois o custo de construção de calçadas é de apenas 5% a 10% do de construção do pavimento para circulação de veículos. A ideia é construir redes de caminhada segura, que aumentem o acesso dos pedestres à cidade e ao sistema de transporte coletivo.
No caso do uso da bicicleta, movimentos sociais de grande expressão vêm forçando a ampliação da prioridade nas vias, e muitas cidades já têm uma oferta significativa de faixas preferenciais. Um ponto preocupante é a aparente falta de integração das ações públicas com os usuários de bicicletas. Prioridades vêm sendo introduzidas sem a participação direta dos usuários interessados, fazendo que muitos projetos tenham uso reduzido pelos ciclistas, o que poderá abrir a possibilidade de seu desmanche por pressão de setores contrários a esses projetos.
Por outro lado, é muito importante dar atenção especial à segurança dos ciclistas, dada sua vulnerabilidade. A circulação entre veículos grandes traz riscos permanentes a eles. Já há boas experiências no país, e estão sendo criadas soluções para garantir melhor a segurança dos ciclistas, mas esse conhecimento precisa ser registrado e difundido. Isso é essencial para evitar o que aconteceu com os motociclistas. O apoio irresponsável ao uso das motocicletas causou a maior tragédia social da história do país, levando à morte 220 mil indivíduos e causando invalidez vitalícia em 1,6 milhão de pessoas entre 2000 e 2014. Há várias medidas possíveis para reduzir esse impacto, mas será preciso desenvolver um contrato social para que elas sejam colocadas em prática, uma vez que vão ferir muitos interesses. As principais medidas que podem amenizar o problema estão ligadas aos motociclistas e à organização de seu trânsito nas vias. No primeiro caso, é essencial melhorar a capacitação dos motociclistas, bem como fiscalizar rigorosamente o uso de equipamentos de segurança e as empresas de entrega rápida de mercadorias para respeitar o direito de segurança de seus funcionários. No segundo caso, é necessário reduzir a velocidade de circulação das motocicletas e de outros veículos motorizados e evitar que elas circulem junto a veículos de grande porte quando a velocidade do trânsito for elevada.
No que tange ao transporte coletivo, que opera em cerca de mil cidades com 100 mil ônibus, atendendo diariamente 60 milhões de pessoas, o desafio principal é garantir a qualidade do serviço e seu financiamento permanente. No primeiro caso, o sistema precisa ter capacidade maior nas horas de pico – para reduzir o excesso de lotação – e maior regularidade, de forma a ser confiável para os usuários. Isso só pode ser obtido com aumento da oferta de veículos e tratamento preferencial do ônibus nas vias públicas, em todo o território municipal, por meio de técnicas amplamente conhecidas no Brasil. No segundo caso, é preciso financiar a organização e a operação adequadas do sistema e ampliar o acesso às pessoas de renda baixa e aos trabalhadores informais (que não têm acesso ao vale-transporte). O financiamento vem sendo ameaçado por aumentos de custos e pelo temor dos prefeitos em reajustar as tarifas depois dos movimentos sociais de 2013. Essa postura poderá levar o sistema à regressão para um sistema informal atomizado e de baixíssima qualidade, operado por indivíduos (os antigos “perueiros”) e sem controle por parte do governo. O financiamento geral do sistema pode começar a ser feito com recursos que já existem e vêm sendo empregados desproporcionalmente no apoio ao uso do automóvel, tanto para a operação do sistema quanto para sua expansão. Por exemplo, dados de 2014 da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) estimam que nas cidades com mais de 60 mil habitantes os gastos com a manutenção do sistema viário usado pelos automóveis foram de R$ 8,7 bilhões, ao passo que apenas R$ 2,5 bilhões foram aplicados na manutenção do espaço usado pelos ônibus. Em segundo lugar, a garantia de melhores condições de tráfego para os ônibus reduzirá seu custo operacional, suavizando as pressões de aumento na tarifa – o custo adicional imposto aos ônibus pelo congestionamento gerado pelo uso excessivo do automóvel pode ser estimado entre 5% e 25%, dependendo do tamanho da cidade e do grau de congestionamento em suas vias. No caso da cidade de São Paulo, esse valor pode chegar a R$ 1 por passageiro transportado (R$ 2 bilhões por ano). No caso da extensão dos serviços, a infraestrutura pode ser garantida pelo uso de recursos existentes (IPTU, IPVA, ISS e Cide) e outros hoje destinados ao apoio ao automóvel. Um exemplo é a liberação generalizada do estacionamento em via pública, ocupando um espaço muito caro: na cidade de São Paulo, 1 milhão de pessoas recebem esse benefício por dia, que representa R$ 2,5 bilhões por ano de subsídio indireto.
Assim, a maior transformação na mobilidade ocorreria com a revisão da política de apoio irrestrito ao uso do automóvel. O Estado brasileiro tornou-se sócio e refém do projeto automobilístico desde a década de 1960. Ele é sócio porque recebe grande quantidade de impostos e refém porque não hesita em apoiar o setor sempre que este passa por dificuldades: atualmente a sociedade brasileira está pagando parte dos salários de empregados da indústria automobilística multinacional para evitar demissões. A nova Lei de Mobilidade Urbana e a Política Nacional de Mobilidade Urbana definem obrigações para os prefeitos e abrem espaço para a revisão das políticas, explicitando a possibilidade de criar restrições ao uso inadequado ou indesejado do automóvel. Historicamente tem sido quase impossível introduzir medidas nessa direção, mas a maior conscientização a respeito do problema ambiental e a politização de uma parte da população brasileira – especialmente dos jovens – podem abrir caminhos para que isso ocorra em muitas cidades.