Mobilização contra os golpes imobiliários na Rússia
As vendas fraudulentas de apartamentos na planta arruinaram dezenas de milhares de famílias russas. Em resposta aos protestos, o Estado começa a fazer indenizações enquanto promete melhorar a regulamentação do mercado. Isso bastará para convencer a população da ex-URSS que a habitação, antes um bem essencial oferecido pelo Estado, é uma mercadoria como as outras?
Para serem vistas pelos motoristas, barracas foram montadas na beira da estrada, e, para ajudar nas noites mais frias, os homens construíram um abrigo de madeira coberto com lonas e equipado com uma lareira. Dentro dele, uma cozinha e alguns beliches. No verão de 2020 – por exatamente 88 dias –, cerca de cinquenta membros do coletivo do complexo residencial Milovski Park, em Ufa, capital da República do Bascortostão, ao sul dos Montes Urais, revezaram-se nesse acampamento improvisado para chamar a atenção do poder público para um vasto golpe imobiliário que vitimou mais de 1.200 pessoas.
A capital do Bascortostão tem dezenas de novos edifícios abandonados em diversos bairros – mas o problema está por toda a Rússia. Em 18 de dezembro de 2020, o registro oficial do Ministério da Construção1 listava 2.910 imóveis fechados em 73 regiões (de um total de 85). Cerca de 200 mil pessoas2 foram oficialmente reconhecidas como vítimas. Entre elas, Liubov Poslavskaya, uma senhora de 60 anos que esteve ativamente envolvida no acampamento Ufa, onde trabalhava como cozinheira-chefe. No início de outubro, enquanto a cidade vestia suas cores de outono, ela exibiu em seu celular as fotos das grandes mesas de verão com enormes pilhas de panquecas e das noites de cantoria ao redor do fogo. “Tivemos momentos felizes, éramos como uma família. Houve muita solidariedade. Artistas vieram fazer um show para nos apoiar. Até estranhos paravam para oferecer ajuda, trazer batatas ou melancias.” Um momento de graça na luta coletiva que as pessoas ali instaladas travam há anos.
Depois de contar com moradia praticamente gratuita durante a era soviética (mesmo que às vezes levassem anos até conseguir seus metros quadrados regulamentares), em 1991 os russos descobriram a realidade do mercado imobiliário e, muitos deles, suas armadilhas. A história da família de Poslavskaya é um bom exemplo. “No início”, diz, “tínhamos um estúdio que minha avó recebeu do Estado.” Os aluguéis representavam menos de 3% da renda média (incluindo encargos), mas os moradores não tinham muito espaço e a coabitação entre gerações era comum. Registrada nesse apartamento desde a infância, a mãe de Poslavskaya se tornou sua inquilina principal. Em certo momento ela trocou esse estúdio por uma acomodação um pouco mais espaçosa, e repetiu a operação várias vezes. Como as transações imobiliárias em dinheiro eram proibidas, os soviéticos praticavam efetivamente a permuta de apartamentos. Dessa forma, algumas famílias conseguiam melhorar significativamente suas condições de vida, criando complexas cadeias de trocas, que chegavam a envolver mais de dez imóveis.
“Sentada sobre uma mala há onze anos”
A maioria das famílias, no entanto, aguardava na lista de espera até conseguir alguns metros quadrados. Algumas categorias de pessoas, como famílias numerosas e veteranos de guerra, tinham prioridade. Era o caso do irmão de Poslavskaya, veterano da Guerra do Afeganistão, em 1986. Quatro anos depois disso, a União Soviética deixou de existir. Embora a Rússia, como Estado sucessor da União Soviética, tenha mantido os direitos adquiridos no regime anterior, efetivá-los mostrou-se cada vez mais difícil. Tais direitos não foram abolidos, mas as autoridades foram pouco a pouco tentando monetizá-los, ou seja, converter a promessa de moradia em uma indenização em dinheiro. Assim, em 2013, após 27 anos de espera, o irmão de Poslavskaya recebeu um certificado no valor de 530 mil rublos (R$ 36 mil),3 que ele imediatamente emprestou à irmã para financiar a compra de um apartamento na planta. Ela planejava que seu filho logo fosse viver lá. Sete anos depois, porém, eles ainda moram juntos, no apartamento que ela herdou da mãe… “Não estamos na rua”, consola-se, “mas muitas outras vítimas desse golpe imobiliário estão em situação crítica. As pessoas estão endividadas, precisam pagar as prestações do empréstimo e o aluguel de outro lugar para viver. As autoridades precisam agir.”
Assim como seus companheiros de infortúnio, Poslavskaya não poderia imaginar o que a esperava. O presidente da República do Bascortostão, Roustem Khamitov, veio pessoalmente cortar a fita na colocação da pedra fundamental do empreendimento. Famílias numerosas, órfãos de heróis nacionais, veteranos de guerra: centenas de famílias modestas compraram ali um imóvel com custo reduzido por meio de diversos subsídios estatais, com destaque para o programa “Moradia para uma família russa”. O apoio dos grandes bancos federais, como o Sberbank e o Rosselkhozbank, inspiravam confiança.
Hoje, as construções inacabadas são um espetáculo desolador. Não há escolas, lojas, cafés ou qualquer outra infraestrutura prometida. Dos 35 edifícios, somente sete estão finalizados e ocupados. Dos outros 28, alguns estão 85% construídos, outros têm um ou dois andares… Os menos avançados estão na fase de fundação. Aqui e ali, pilhas de tijolos e sacos de cimento testemunham a parada abrupta das obras.
O que está no centro da questão é um sistema de financiamento que coloca o risco sobre os compradores. A venda é feita por meio de um “contrato de participação em construção partilhada”, no qual os compradores, que têm o status de acionistas investidores, adiantam o dinheiro às incorporadoras. Estas não precisam fazer empréstimos, e os futuros ocupantes pagam de 20% a 40% menos por metro quadrado do que em um apartamento acabado. Embora inicialmente permita contornar as fragilidades do sistema bancário, essa modalidade de financiamento, que ainda representava 80% do volume de vendas de novas construções em 2017,4 foi lançada sem salvaguardas legais nem proteções para os compradores.
Construções foram interrompidas em razão de cálculos de financiamento errados, de falência de incorporadoras, de fraudes organizadas em contextos de corrupção e suborno… Ao longo dos anos, os negócios se multiplicaram. No início dos anos 2000 surgiu o termo “investidores enganados” para designar as pessoas que pagaram por uma casa da qual nunca viram nem a cor. Após a crise de 2008, as inúmeras bancarrotas de incorporadoras aumentaram ainda mais o número de vítimas. Entre as mais espetaculares, está a da maior construtora da região de Moscou, a Urban Group, que em 2018 abandonou 20 mil unidades, com uma dívida de 70 bilhões de rublos (R$ 4,1 bilhões) e 3,5 milhões de metros quadrados inacabados. Em todas as grandes cidades do país, “investidores enganados” se organizaram em coletivos. Reuniões, piquetes, acampamentos, greves de fome: eles tentaram se fazer ouvir, e as mídias locais ficaram repletas de histórias de vendas fraudulentas com consequências financeiras e familiares trágicas para os compradores.
Em 2014, Nikita Sintsov comprou um apartamento no Milovski Park: 60 metros quadrados por 2,05 milhões de rublos (R$ 125 mil). O coordenador do coletivo de vítimas lembra muito bem o lançamento do projeto. “Os primeiros edifícios foram construídos muito depressa. Era a vitrine do complexo. As pessoas passavam nas vias ao redor e se diziam: ‘Está tudo bem, podemos comprar aqui’.” Em 2016, a construção foi paralisada. Só foi retomada pouco antes das eleições do novo presidente da República do Bascortostão, no fim de 2018. Desde então, nenhum avanço.
Em frente à imponente fachada soviética reformada do governo do Bascortostão, em Ufa, Sintsov nem sabe mais dizer quantas horas já passou ali, de cartaz na mão, em piquete – única forma de protesto espontâneo tolerada na Rússia, já que um agrupamento de duas pessoas pode ser considerado uma manifestação, portanto precisa de autorização. “Estou cansado de tudo isso”, suspira. “Infelizmente, só quando fazemos barulho as coisas mudam um pouco.” Ele sofre um grande sentimento de injustiça com a “impunidade dos bandidos”. “Os três dirigentes da Kilstroyinvest [incorporadora do complexo Milovski Park] nem foram para a cadeia. Um está em prisão domiciliar; os outros dois, sob supervisão judicial.”
Diante de inúmeras falências e fraudes, e após anos de mobilização dos compradores enganados, as autoridades tentaram regulamentar essas práticas. Foram feitas mudanças na legislação para garantir maior proteção aos “acionistas-adquirentes”. Desde 2004, uma lei regula mais os contratos, proibindo especialmente que as incorporadoras coletem dinheiro antes de terem obtido todas as licenças de construção, além de criar algumas menções legais nos contratos. Em 2010, uma nova lei federal impôs uma forma rígida a todos os contratos de vendas na planta, o que não impediu os golpes, pois incorporadoras desonestas sempre largam na frente quando se trata de explorar as brechas do sistema. Em Ufa, os integrantes do coletivo do complexo residencial Iglino sabem o que isso significa. “A incorporadora falsificou os documentos do alvará de construção, e o órgão responsável pela verificação não percebeu”, relata uma das vítimas, uma mãe de 54 anos que foi obrigada a viver numa casa de campo fora da cidade. Ela está convencida de que as autoridades regionais estavam em conluio com a incorporadora. “Ela não poderia organizar um golpe desses sozinha, sem cúmplices bem colocados”. Ela prefere manter sua identidade em sigilo, explicando que recebeu ameaças por causa de suas denúncias.
Em 2009, Marina, de 41 anos, e seu marido compraram um apartamento por 2,8 milhões de rublos (R$ 175 mil) em Ufa, em um enorme complexo residencial chamado Mercure. Eles moravam do outro lado da rua, com a filha, e assistiram de camarote ao início da construção. Com várias torres de vinte andares cada, esse imenso projeto iria redesenhar completamente a fisionomia do bairro. Para financiar a aquisição, o casal decidiu então vender sua propriedade – “um apartamento de um quarto comprado pelos pais de meu marido em 1999”, diz Marina – e se mudar para um apartamento alugado. “Desde então, pagamos um aluguel de 15 mil rublos [R$ 1,1 mil, ao preço atual]. Nós queríamos crescer e quem sabe aumentar a família. Minha filha tinha 9 anos na época; agora ela tem 20 e está indo para a faculdade. Resultado: não fizemos nada. Eu tenho a sensação de estar há onze anos esperando sentada sobre uma mala.”
A maioria das vítimas sente-se abandonada pelas instituições, que, acreditam, não assumem suas responsabilidades. Elas também se sentem manipuladas ao sabor das sucessões eleitorais. Sem saber a quem se dirigir, muitos compradores desesperados recorrem diretamente ao presidente Vladimir Putin, o único que acreditam ser capaz de resolver seu problema. Os compradores do Mercure escreveram em letras gigantes na fachada do condomínio inacabado: “Putin, nos ajude”. Isso foi em 2019. A fachada foi repintada para cobrir a mensagem, mas o apartamento de Marina ainda não foi concluído. “Eu não entendo”, diz. “Somos boas pessoas. Minha filha fazia trabalho voluntário para a cidade…”
A questão dos “acionistas enganados” é ainda mais sensível na Rússia, onde a moradia é considerada um “direito social, essencial à dignidade humana”.5 Esse direito foi formalizado na primeira metade do século XX e começou a se afirmar após a Segunda Guerra Mundial. No fim dos anos 1950, o Partido Comunista prometeu “moradia individual para todas as famílias até 1980”. Os apartamentos comunitários, localizados em edifícios burgueses dos centros históricos e que abrigam várias famílias, transbordavam; os barracos nas periferias das grandes cidades eram comuns. Uma grande onda de construções foi iniciada. Era a época dos khrushchevkas, prédios de cinco andares, idênticos em toda parte, erguidos aos milhares. Entre 1955 e 1970, o estoque de moradias urbanas mais que dobrou e 127 milhões de pessoas foram realocadas, cerca de metade da população da União Soviética.6
Mesmo com esse ritmo alucinante, a oferta não foi capaz de suprir toda a demanda. Em 1990, às vésperas do desaparecimento da União Soviética, uma em cada quatro famílias ainda aguardava sua acomodação individual. O partido não cumpriu sua promessa, mas criou expectativas – expectativas que sobreviveram à afirmação da propriedade privada e do mercado imobiliário, mas que não se encaixaram na nova realidade econômica. Em 1991, o Estado lançou a privatização gratuita da moradia. Qualquer cidadão podia solicitar a escritura do apartamento onde vivia. Por causa da qualidade muito desigual dos imóveis, a privatização não teve o sucesso imediato esperado. O governo prorrogou os prazos diversas vezes. Temendo os altos custos de manutenção, os moradores de imóveis em mau estado se abstiveram, principalmente quando estavam na lista de espera aguardando um apartamento novo. Em 2009, 25% da moradia da capital não havia sido privatizada. Dez anos depois, porém, 88,6% do estoque habitacional da Rússia já era privado.7
Paralelamente a esse processo, em 1992 o Estado tentou desenvolver empréstimos hipotecários no modelo norte-americano8 – de novo sem muito sucesso. No período de 2001 a 2002 havia apenas 10 mil empréstimos imobiliários em todo o país, no valor total de 5 bilhões de rublos (R$ 378 milhões) – um volume que quase dobrou ao longo desses dois anos. Embora o crescimento do número de empréstimos hipotecários tenha se acelerado – 25 bilhões a 30 bilhões foram emprestados em 20049 –, o Estado desejava ir além. Em 2007, o presidente russo prometeu “civilizar o mercado” – em outras palavras, regular e apoiar o setor de incorporação imobiliária. A construção de moradias foi declarada “projeto nacional prioritário”.
Para apoiar sua ação, em 2006 o governo criou o “capital materno”, um subsídio federal de 250 mil rublos (R$ 20 mil) concedido às mulheres pelo nascimento ou adoção de um segundo filho. O valor podia ser usado na compra de um imóvel residencial, para despesas com educação ou para a aposentadoria da mãe. A ideia era estimular o setor imobiliário e elevar a taxa de natalidade, muito baixa na Rússia.10 Inicialmente, a soma alocada não podia ser gasta antes de o segundo filho atingir a idade de 3 anos. Mas, em janeiro de 2009, em um contexto da crise econômica global, o governo permitiu que as famílias recebessem imediatamente o capital materno caso tivessem de pagar um empréstimo imobiliário. Uma grande campanha foi feita para divulgar a possibilidade de usar o capital materno para o pagamento de hipotecas. “Precisamos criar condições que permitam ao maior número possível de pessoas comprar novos apartamentos e melhorar suas condições de vida por conta própria, principalmente por meio dos empréstimos hipotecários”, declarou Putin em fevereiro de 2010, quando era primeiro-ministro do país, em uma reunião da presidência do Conselho para a concretização dos projetos nacionais prioritários.

Um gasto que triplicou
A despeito de todas essas atitudes por parte do Estado, o volume de empréstimos hipotecários em curso permanece limitado na comparação com outros países. Na Rússia, em 2019, eles representaram 6% do PIB, contra 50% e 44% nos Estados Unidos e na França, respectivamente, ou ainda 20% a 30% em outros países do Leste Europeu, como a Polônia e a República Tcheca. As famílias são pouco inclinadas a contrair dívidas de longo prazo. Essa relutância se explica pelas altas taxas de juros e por um contexto econômico incerto – crise de 2008, sanções europeias e norte-americanas que levaram a uma queda na renda da maioria da população a partir de 2014 –, mas também por uma forte resistência cultural.
Após trinta anos de economia de mercado, o balanço das condições habitacionais parece bem desfavorável. A participação desse item (aluguéis e encargos) no orçamento familiar quase triplicou entre 2000 e 2019 (passou de 6% para 16%)11 – e o cálculo nem considera as taxas relativas a empréstimos. Contudo, embora os custos tenham explodido, a área média per capita teve apenas um leve aumento. Em 1995, registravam-se 18 metros quadrados por pessoa; em 2019, eram 26 metros quadrados (em comparação com 39 na França e na Alemanha, e 70 nos Estados Unidos).12
Sem conseguir honrar a promessa de resolver a questão habitacional por meio de subsídios ao mercado imobiliário, o Estado esforça-se para tentar coibir os abusos mais graves. Em 2017, Putin deu três anos para o governo resolver o problema dos “investidores enganados”. Assim, foi criado às pressas o Fundo de Proteção dos Direitos do Cidadão Participante da Construção, no qual as incorporadoras precisam depositar 1,2% do custo de cada contrato. Cada região também deve criar seu próprio fundo, que se encarrega de identificar os problemas em seu território e avaliar a melhor opção para cada caso: conclusão da obra ou indenização financeira das vítimas.
O Estado também reformou o sistema de financiamento. Uma lei que entrou em vigor em 1º de julho de 2019 prevê que os compradores depositem seu dinheiro em contas judiciais. O banco financia as despesas da incorporadora de acordo com o orçamento acordado, e os fundos dos compradores só são repassados a ela quando a obra for entregue. Com esse sistema, o problema da fraude na construção de moradias compartilhadas está “em processo de resolução”, avalia Natalia Zubarevitch, pesquisadora-chefe do Centro de Análise de Renda e Padrões de Vida da Escola Superior de Economia de Moscou. Mas ela esclarece que as construções agora estão mais caras, pois seu custo inclui os empréstimos bancários tomados pelas incorporadoras…
Para o Estado, o projeto político continua sendo o do endividamento em massa, que ele espera contribuir para “melhorar as condições de vida” da população. Em um contexto incerto e economicamente difícil, em abril de 2020 Putin anunciou um subsídio hipotecário estendido até julho de 2021 – estabelecendo uma taxa de juros máxima de 6,5% para a compra de apartamento em um edifício novo. Poucos meses antes, em seu discurso anual de política geral, o presidente russo havia dito que o capital materno seria estendido ao primeiro filho e depois que seria aumentado a cada ano. Em 2021, ele chegou a 483.800 rublos (R$ 36 mil) para o primeiro filho e a 639.400 rublos (R$ 47 mil) para o segundo filho, ou a 155.600 rublos (R$ 11,5 mil) caso a família já tenha recebido capital materno para seu primeiro filho. No total, o Estado planeja alocar 443,3 bilhões de rublos (R$ 33 bilhões) para o capital materno em 2021 (em comparação com 97 bilhões de rublos em 2010).
“Com essas medidas, a demanda por hipotecas aumentou, mas o número de metros quadrados em construção diminuiu, o que elevou os preços”, constata Zubarevitch. O mercado está particularmente aquecido nas duas maiores cidades do país, Moscou e São Petersburgo, bem como no sul. “Nos últimos anos, observam-se movimentos de migração interna muito significativos para essas três áreas”, esclarece a pesquisadora. Resultado: as famílias que se mudam são forçadas a contrair empréstimos para compensar a diferença nos preços dos imóveis.
Essa tendência é encarada como um verdadeiro presente para os bancos, que veem a Rússia como um eldorado do crescimento dos empréstimos imobiliários. “Continuamos com um nível de endividamento muito baixo em comparação com outros países. Temos margem para crescer”, celebra Natalia Orlova, economista-chefe do Alfa Bank. “Nos próximos anos, o país não terá escolha: a população será incentivada a tomar mais empréstimos se quiser manter seu padrão de vida.”
Há algumas décadas, a criação de uma nova legislação civil e comercial – que deveria acompanhar o desenvolvimento dos empréstimos imobiliários – vem minando as garantias sociais herdadas do período soviético. Muitos russos ainda acreditam que uma pessoa pode evitar o despejo caso prove que não tem outro lugar para morar. Mas por que um banqueiro faria um empréstimo se não pudesse confiscar a propriedade que seu cliente colocou como garantia? De fato, sem que a população tenha plena consciência disso, desde 2004 o Código de Processo Civil especifica que essa proteção não se aplica aos bens imóveis sobre os quais recaia uma hipoteca.13 Essa proteção foi ainda mais reduzida em 2019, após uma decisão da Corte Suprema do país. Agora, qualquer imóvel pode ser hipotecado em um processo de superendividamento. Basta provar que sua revenda permite a aquisição de um imóvel de tamanho suficiente para realojar a pessoa e sua família, depois de quitada a dívida.14 A cada ano, o número de apreensões aumenta. De acordo com o Serviço Federal dos Oficiais de Justiça, entre 2015 e 2019 elas passaram de 326.447 para 551.776 – uma curva que, se o volume de empréstimos continuar aumentando, não está nem perto de ser revertida.
A fiscalização da atividade das incorporadoras e a indenização dos consumidores enganados trazem a promessa de um mercado imobiliário enfim civilizado. Mas o endividamento da população pode muito bem forjar um mercado igualmente brutal, embora legal. Os “acionistas enganados” conseguiram se organizar – será que as famílias superendividadas cujas moradias serão hipotecadas conseguirão fazer a mesma coisa? A relutância dos russos em relação ao crédito imobiliário talvez seja resultado de sua percepção do perigo…
*Estelle Levresse é jornalista.
[1] “Registro unificado das construções problemáticas” (em russo), Sistema de Informação Unificada sobre Moradia, Ministério da Construção.
[2] Finmarket, 3 abr. 2020. Disponível em: www.finmarket.ru.
[3] Todas as conversões para reais são baseadas na taxa de câmbio média anual da época.
[4] Rossiskaïa Gazeta, Moscou, 10 dez. 2017. Disponível em: www.rg.ru.
[5] Jane R. Zavisca, Housing the New Russia [Moradia na Nova Rússia], Cornell University Press, Ithaca e Londres, 2012.
[6] Ibidem.
[7] Kommersant, Moscou, 4 jul. 2016. Disponível em: www.kommersant.ru.
[8] Jane R. Zavisca, op. cit.
[9] Hélène Richard, “Du troc au marché: le marché immobilier à Moscou” [Da permuta para o mercado: o mercado imobiliário em Moscou], Autrepart, v.4, n.48, Paris, 2008.
[10] A taxa de natalidade em 2009 foi de 12,4 por 1.000.
[11] Rosstat (www.rosstat.gov.ru).
[12] Tass, 24 ago. 2020.
[13] Lei federal “que modifica o artigo 446 do Código de Processo Civil da Federação Russa”, de 29 de dezembro de 2004. Disponível em: www.consultant.ru.
[14] Kommersant, 12 dez. 2019.