Moreno é raça?: A palavra que camufla o racismo no Brasil
O ponto central, portanto, é político. Por que evitamos dizer “negro”? Por que tantas pessoas negras, com traços negroides, se dizem morenas? E por que tantas pessoas brancas, mas que não se reconhecem como parte da branquitude, também preferem o termo “moreno”? O que se esconde por trás dessa escolha aparentemente inofensiva?
Quem são os “morenos” do Brasil? Aqueles que, em tantas fichas, cadastros, entrevistas, músicas e conversas informais, surgem como categoria identitária, mas que, na prática, não se sustentam como grupo racial reconhecido. “Moreno” é uma dessas palavras que se aloja no conforto da ambiguidade, disfarça desigualdades, e, muitas vezes, opera como uma forma sutil de negação da negritude — tanto por quem é negra quanto, sobretudo, por quem não é.
A origem do termo já é um indício do problema. “Moreno” deriva de “mouro”, e este, por sua vez, era o nome atribuído pelos europeus aos povos do Norte da África durante a Idade Média, categorizados como invasores, bárbaros e inferiores. A palavra, portanto, nasce da necessidade de nomear o outro, o estrangeiro, o que não pertence à branquitude cristã europeia. Usada hoje, a palavra carrega esse ranço colonial: na maioria das vezes, é uma tentativa de nomear o que não é branco, mas sem chamar de negro.
A definição do dicionário Aurélio para “morena” também revela o caráter escorregadio do termo: “mulher cujo tom da pele está entre o branco e o pardo, por determinante genética ou por efeito de bronzeamento; mulher de pele azeitonada ou amarronzada.” Ou seja, um termo que parece descrever tudo e nada ao mesmo tempo. É uma categoria que não tem cor, tem gradação. E onde há gradação, há hierarquia. Há quem bronzeia para parecer “morena” no verão, mas há quem nasceu com essa cor e carrega sobre si o peso da desvalorização.
Ao longo do tempo, o termo foi se consolidando como uma espécie de zona de conforto linguística. Um espaço simbólico em que não se assume nem a branquitude com seus privilégios, nem a negritude com seus estigmas — e, sobretudo, com sua potência política. O uso do “moreno” funciona como uma estratégia de apagamento das marcas raciais, suavizando tensões e diluindo responsabilidades. É a escapatória perfeita para um país que insiste em dizer que o racismo não existe.
O ponto central, portanto, é político. Por que evitamos dizer “negro”? Por que tantas pessoas negras, com traços negroides, se dizem morenas? E por que tantas pessoas brancas, mas que não se reconhecem como parte da branquitude, também preferem o termo “moreno”? O que se esconde por trás dessa escolha aparentemente inofensiva?
Segundo o IBGE, mais de 53% da população brasileira se identifica como negra (somando pretos e pardos). No entanto, ainda somos ensinados, desde a infância, que a “cor da pele” é aquele lápis rosado ou bege claro — tom que representa apenas uma parte dos brasileiros. O racismo estrutural naturaliza a branquitude como universal e relega a negritude ao campo do desvio. Por isso, “moreno” surge como um refúgio sem identidade, uma tentativa de escapar do rótulo que carrega o peso histórico da escravidão, da violência, da marginalização.

A crítica não é nova, mas precisa ser retomada. Na década de 1990, o movimento negro já denunciava o termo “moreno” como um dos principais obstáculos ao reconhecimento da identidade racial. O “moreno claro”, o “moreno jambo”, o “moreno escuro”, o “moreno quase preto” — essas gradações linguísticas reforçam a ideia de que ser negro é algo que se deve evitar nomear diretamente, ou no máximo suavizar. E cada nuance dessa “morenez” sustenta a lógica do colorismo, em que quanto mais escura a pele, maior a exclusão — e, portanto, mais forte a vontade de se nomear de outro modo.
Como diz a filósofa e escritora Sueli Carneiro: “A branquitude não é percebida como identidade racial, mas como um lugar de neutralidade, de universalidade.” Assim, o branco não precisa se nomear, mas o negro, sim. E quando se nomeia, a palavra “negro” incomoda. Para muitos, ela ainda soa como ofensa. Por isso, inventa-se o “moreno”, para suavizar o incômodo, para tornar palatável o que não se quer enfrentar.
Essa ambiguidade permite também que o racismo se reinvente. Ao se afastar da linguagem da segregação explícita, como no apartheid ou na segregação americana, o racismo brasileiro se sofisticou. Como aponta o historiador Joel Rufino dos Santos, o Brasil inventou “o racismo sem racistas”. A lógica da “morenez” é uma engrenagem fundamental nessa invenção. Ela mascara o privilégio branco, disfarça o preconceito e transforma o racismo em um problema sem autor.
É claro que há um uso cultural do termo. As músicas populares, a literatura, as novelas — tudo está permeado de “morenas” e “morenas tropicais”, como canta Jorge Ben Jor. E não se trata aqui de revisar a arte com olhos moralistas, mas de questionar o quanto essa repetição reforça uma narrativa de miscigenação harmônica que oculta as violências do racismo à brasileira.
Além disso, é preciso observar como o termo “morena” também é amplamente usado para se referir a mulheres brancas de cabelo escuro, sobretudo no imaginário da sensualidade brasileira. A “morena da praia”, a “morena do samba”, a “morena da novela das oito” — todas essas figuras fazem parte de uma construção cultural que erotiza e exalta um tipo de mulher que, embora branca, carrega uma suposta aura de exotismo por conta da cor do cabelo ou do bronzeado. Essa representação não apenas reforça estereótipos estéticos, mas também contribui para a confusão racial e o apagamento das mulheres negras e pardas, cujas características reais são muitas vezes utilizadas como inspiração, mas não são reconhecidas em sua subjetividade e existência. Nesse jogo simbólico, o termo “morena” serve tanto para suavizar a identidade racial quanto para embranquecer o desejo, escondendo mais uma vez os marcadores de raça por trás da sedução.
O historiador Kabengele Munanga nos oferece uma chave importante: “A ideologia da mestiçagem serviu de disfarce para manter o racismo operando de forma silenciosa e eficiente no Brasil.” Em outras palavras, ao invés de enfrentar as diferenças raciais, o Brasil tentou apagá-las com um mito de harmonia. O “moreno” é um dos protagonistas desse mito. Ele não assume a branquitude — com seus privilégios — nem a negritude — com suas dores e resistências. Ele paira no meio, escorregadio.
É preciso reconhecer também que o uso do termo “moreno” muitas vezes não vem de um lugar de má-fé. Muitos que assim se autodeclaram o fazem porque, ao longo da vida, não foram autorizados a reconhecer sua própria negritude. As escolas não ensinam história da África, os livros didáticos ainda ilustram com crianças brancas, os brinquedos quase sempre são eurocêntricos. O apagamento da identidade negra começa cedo. Por isso, a sociologia da linguagem nos mostra que o problema não é só o uso do termo, mas o sistema simbólico que o sustenta.
A socióloga Nilma Lino Gomes lembra: “O reconhecimento racial é um processo político, pedagógico e afetivo. Assumir-se negro é um ato de resistência.” Nesse sentido, dizer-se negro é também dizer-se parte de uma história, de uma luta, de um projeto de futuro. E negar essa identidade é, muitas vezes, contribuir — mesmo sem intenção — para a perpetuação do racismo.
Vivemos um tempo em que os discursos precisam ser mais nítidos, os posicionamentos mais firmes. A linguagem importa. O modo como nomeamos a nós mesmos e aos outros não é neutro. Usar a palavra “moreno” como escudo ou atalho é perpetuar um Brasil que ainda se recusa a olhar de frente para sua própria história.
Portanto, a pergunta inicial permanece: quem são os morenos do Brasil? Talvez a resposta mais honesta seja esta: moreno é uma invenção, uma zona de conforto, uma categoria de negação. E enquanto não encararmos isso de frente, continuaremos presos a um vocabulário que deseduca, que disfarça e que impede o avanço das lutas por igualdade racial.
Herlon Miguel é bacharel em administração, produtor cultural e escritor, destaca-se como criador da plataforma Ative a Cidadania, dedicada à formação, capacitação e lançamento de autores e autoras negras. Além disso, é fundador da plataforma de comunicação Negrito LAB.