Morte para exportação
Como viver no país que luta para que não haja luto
Para além de soja, jogadores de futebol e cocaína, o Brasil colocou no mercado das trocas globais, sedento por inovações, outro produto raro — e excêntrico — para exportação: a ausência de luto coletivo. Ele não é tão novo assim para uma economia dos afetos, em que, como pontuou recentemente um de nossos filósofos, o anúncio da morte de um vizinho no elevador do condomínio choca mais do que as estatísticas absurdas da pandemia no jornal. Porém, jamais havia existido uma oportunidade tão fortuita, um alinhamento histórico tão ideal, uma conjunção tão perfeita de fatores, para que este país apresentasse ao mundo uma mercadoria que, de fato, seria lucrativa — se pudesse ser comprada no varejo. Como não há economias afetivas nem próximas à nossa neste mundo, o fenômeno fica em desequilíbrio: há a oferta, mas não a demanda.
Não é um produto inteiramente desconhecido: quando a América Latina conseguiu vender seus romancistas mais brilhantes, nos anos 1960, seus livros estavam repletos de descrições densas sobre ele. Gabriel García Márquez dedicou um capítulo inteiro de seu clássico “Cem Anos de Solidão” ao episódio real do Massacre das Bananeiras, no Caribe colombiano, em dezembro de 1928. Júlio Cortázar deu o sugestivo nome de “Nicarágua Tão Violentamente Doce” a uma de suas obras menos conhecidas, fruto de uma viagem à América Central, e mesmo o criticado Mário Vargas Llosa se encantou com a história nebulosa do arraial de Canudos, no sertão baiano, em seu “A Guerra do Fim do Mundo”. Todos esses livros são, no entanto, também a tentativa de inserir na massa informe com a qual a história deste lado do mundo é esculpida, justamente o que a fábrica brasileira jamais teve condições de fazer: se enlutar autenticamente com a morte do outro.
É por isso que essa é coisa nossa, tal como “o samba, a prontidão e outras bossas” que Noel Rosa elencou em uma composição dos anos 1930. Para que este país fosse forjado optou-se, desde o início, pelo extermínio dos povos originários. Escolhemos não nos contar essa parte da história, como tantas outras. Foi assim que também fomos matando não apenas gente, mas principalmente a história, a memória, a existência abstrata dessa gente. Afinal, para que o Brasil pudesse nascer, quantos cadáveres africanos foram jogados ao mar? E quantos corpos que sobreviveram às viagens não conseguiram deixar de ser mercadoria? Quantas revoluções foram rapidamente enterradas em valas comuns? Quantas resistências às ambições autoritárias foram aniquiladas do espaço e do tempo? Quantas violências foram se afeiçoando cada vez mais aos cotidianos? E então, como se enlutar, se comover pela morte do outro agora? A pandemia de covid-19, longe de ser o pesadelo em uma rotina de sonhos bons, é apenas uma lembrança cruel que nos revisita todas as noites com essas mesmas perguntas.
A morte no Brasil é qualquer coisa — até mesmo o luto silencioso e solitário de quem fica, mas também morre um pouco, como argumenta a antropóloga Catarina Moraswska — de normal, de banal, de naturalesco, de primitivo, quando não de necessário, dependendo de quem morre. É uma pessoa em situação de rua em uma padaria de Ipanema. São duas crianças na rua de uma favela. São pessoas em privação de liberdade amontoadas. É um número que aparece diariamente no jornal da manhã. É o genocídio da população negra, o extermínio das populações indígenas, são as vítimas da Covid-19. Muita morte individualizada, restrita ao círculo familiar, que morre um pouco, mas pouco luto coletivo.
Produto antigo, feito em escala desde os tempos coloniais, a ausência de luto permanece no presente não apenas como tradição, mas como ato, porque o passado se mantém no presente não por meio dos livros, mas principalmente quando escolhemos repeti-lo. Até porque se tem algo que nós, brasileiros, fazemos muito bem, é conviver com a violência contra os outros, com o extermínio daqueles com os quais não queremos conviver — ou queremos apenas quando é conveniente. É um eterno descaso com a vida dos outros.
Tudo isso enquanto pensávamos que estávamos finalmente construindo uma democracia — este regime social em que deve prevalecer, justamente, a vida coletiva, em que a morte dos outros é também a própria morte. Em um país feito a partir de tanta violência, no entanto, morrer jamais foi uma ruptura. É, ao contrário, o cotidiano. Os nossos sociólogos ainda hão de notar que o Brasil pode confirmar ao mundo aquela antiga teoria estrangeira de que não há sociedade, mas apenas “as pessoas e suas famílias”. A diferença é que, no lugar onde ela foi forjada, a afirmação tinha o efeito de negar o que outrora se acreditou existir. Aqui, talvez descubramos, bestializados, que tudo não passou de um conceito fora de lugar.
A morte no Brasil não é comunal, não é um sentimento nacional, porque não pôde sequer ser uma história. Ela é razão de Estado, notícia bruta, resultado biológico, até mesmo as vidas atingidas que ficaram. Em um texto brilhante sobre as mães enlutadas da comunidade de Peixinhos, na periferia de Recife, Moraswska relata justamente o esforço de um grupo de mães para narrar as mortes dos filhos para além lógica tecnicista estatal: ao “um corpo, um número”, a permanência e a ausência de quem morreu, mas que continua como memória. A morte deve ser contada a partir daqueles que ficam. Maria Julia Kovacs tem contado como, para uma mesma morte, podemos ter em torno de 6 a 10 pessoas enlutadas. São as pessoas próximas, que vivem o luto como individualidade. O coletivo permanece intacto.
Um corpo está, na lógica das mães de Peixinhos, não para um, está para seis, sete, dez doze… Mas trata-se, sobretudo, de um trabalho inglório em um país que até hoje não aprendeu a contar os seus mortos: em Canudos, em Serra Pelada, no Araguaia, em São Paulo, no Jacarezinho, na pandemia (em que um consórcio de jornais precisou assumir o trabalho diante da recusa do governo federal em divulgar dados confiáveis). Contar é um verbo polissêmico. Não contabilizamos, nem narramos as histórias das mortes. O que sobra são, felizmente, algumas iniciativas esparsas, que remam contra uma maré fortíssima.
Afinal, quantos brasileiros não aprenderam a conviver com mortes e processos de lutos recorrentes nestes últimos meses? Quantos órfãos a Covid-19 não deixará em nosso país? O que contaremos a eles sobre as escolhas políticas deste governo? Mais do que isso, como explicaremos a essas crianças que, durante a maior tragédia sanitária do nosso país, parte de nós estava tomando água de coco nos parques, caipirinha nos bares e botecos, se divertindo com os amigos na praça?
Pior do que o relato é o pano de fundo: não há surpresa nenhuma nisso. Este é, na pureza dos seus aspectos, o Brasil.
Neste país pandêmico, nesta necrossociedade (outro produto para exportação sem nenhum cliente), talvez a descrição do anjo da história de Walter Benjamin seja ideal: “seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as joga aos seus pés. Ele gostaria de deter-se para despertar os mortos e reunir os vencidos, mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele dá as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.
Carla Baranzini é bacharel em Direito e Ciências Sociais.